Chico de Assis >

Charge de Angeli sobre a Lei da Anistia

Charge de Angeli sobre a Lei da Anistia

            Vou direto ao ponto: a anistia aprovada pelo Congresso Nacional, a 21 de agosto de 1979, e promulgada pelo então ditador de plantão João Batista Figueiredo, a 28 de agosto do mesmo ano, foi parcial, excludente,  restrita e até certo ponto mesquinha. Qualquer outra classificação é produto de uma interpretação capciosa,  que deu à expressão “crime conexo” – contida no artigo 1º da Lei sancionada e explicitada no parágrafo 1º deste artigo – uma extensão capaz de contemplar todos os crimes cometidos no período de 1961/1979,  inclusive os tidos historicamente como imprescritíveis e não anistiáveis.

            Às margens  da chamada, à época, abertura  lenta, gradual e segura, deu–se forma a um verdadeiro monstrengo jurídico, cujas filigranas chegaram perto do inacreditável. Por enquanto, fiquemos apenas na apreciação dos parágrafos 1º e 2º  da Lei,  exemplares típicos da arte de estabelecer “contradições em termos”, tão cara aos nossos juristas acólitos do poder, quando se trata de  preservar  os interesses dos poderosos a que servem:

 “§ 1º Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

§ 2º Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal”.

 Como assim? São conexos e passíveis de anistia “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”. Não são conexos, e por isso excluídos da anistia, “os crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. Que natureza fantasmagórica seria essa dos “crimes de terrorismo”, impedida de ser enquadrada nos “crimes de qualquer natureza”, em que se configuraram os crimes conexos? Por conta dessa natureza esdrúxula, eu e dezenas de outros companheiros só saímos da prisão meses depois, ainda assim por força do instituto da Liberdade Condicional, que nos manteve monitorados pelo sistema em alguns casos até 1985.  Quais seriam então os crimes conexos?  A resposta seria imediata:  os crimes de tortura, estupro, sequestro, homicídio, ocultação de cadáveres, praticados pela criminosa máquina estatal que prevaleceu no país por 21 anos. Mas por que não foi explícita essa intenção, como veio a ser  a exclusão dos envolvidos em crimes de sangue, entre os opositores do regime? Como explicar a utilização de pesos e medidas tão diferentes, na curta distância de separação dos dois parágrafos? Não sendo explícita, a inclusão de torturadores assassinos na anistia decorreria apenas de uma interpretação tácita. Mas essa interpretação tácita tem força de Lei? Para Ricardo Lewandowsky, atual ministro da nossa Corte Suprema, “a simples menção à conexão no texto legal contestado não tem o condão de estabelecer um vínculo de caráter material entre os crimes políticos cometidos pelos opositores do regime e os delitos comuns atribuídos aos agentes do Estado, para o fim de lhes conferir o mesmo tratamento jurídico”.

            O brilhante Carlos Ayres de Brito, ex–ministro e ex–presidente do STF, arremata:

            “Quem redigiu essa lei não teve coragem, digamos assim, de assumir essa propalada intenção de anistiar torturadores, estupradores, assassinos frios de prisioneiros já rendidos”.

            Eu diria ainda mais: não foi só a covardia. Foi também a certeza de que, se contemplasse tamanha ignomínia, o projeto não passaria. Mesmo com o disfarce obtido pelo vago e múltiplo sentido do “crime conexo”, mesmo num Congresso ainda desfigurado pela presença de 1/3 de senadores biônicos (nomeados pelo regime), mesmo no clima de medo que ainda se respirava, o projeto governamental foi aprovado por uma ínfima maioria de 4 (quatro) votos.

         Esse simples fato desmente outra falácia  de larga circulação: a   de que a anistia de 79 foi produto de um acordo.  Tal acordo seria feito – e aceito –, em troca da pacificação do país. A anistia de 1979 não foi resultado de um acordo. E esteve longe, muito longe, de promover uma real  pacificação do país.  Como tentaremos, resumidamente, demonstrar.

REFRESCANDO A MEMÓRIA

            O ex–deputado Fernando Coelho, ativo participante do momento em que se discutiu e aprovou a Lei, hoje presidente da Comissão Estadual da Verdade D. Hélder Câmara, faz questão de detalhar, em minúcias, como se deu aquela votação. Membro atuante do MDB autêntico, vice–lider da bancada,  ele conta que as galerias foram ocupadas por militares à paisana logo cedo, para evitar que o povo as ocupasse mais tarde. Afirma também que – apesar da destacada posição que ocupava – não teve sequer conhecimento de qualquer acordo ou entendimento, em torno do projeto em discussão.

              O projeto governista  – cujo teor discriminatório foi apenas atenuado por uma emenda do deputado arenista Djalma Marinho, encampada pelas forças oposicionistas – foi  aprovado, como já dissemos, por uma ínfima maioria de 4 (quatro) votos e empurrado goela adentro da nação,

                E a pacificação prometida? Falar sobre ela, seria cômico, se não fosse trágico. Alinho apenas três fatos, ocorridos 1, 2, 3 anos depois da promulgação da anistia, para configurar quão mistificador foi esse argumento:

  1. explosões de dezenas de bancas de jornais e revistas, em atentados cometidos quase diariamente para atingir os jornais da imprensa alternativa – Opinião, Movimento, Em Tempo, Pasquim, entre outros, que tiveram decisivo papel no processo de democratização do país.
  2. assassinato de D. Lydia Monteiro, secretária da OAB–RJ, ao abrir uma carta–bomba,  endereçada ao então presidente daquela  Ordem, Seabra Fagundes, às 14 horas do dia 27 de agosto de 1980, um ano depois da promulgação da anistia.

    3.  o mais cruel e desatinado atentado terrorista de todo o período ditatorial – o atentado do Riocentro, em 30  de abril de 1981, cuja verdadeira dimensão somente agora a Comissão Nacional da Verdade permite esclarecer,  após análise dos documentos que estavam com o coronel reformado do Exército Julio Miguel Molinas Dias, assassinado em Porto Alegre no ano passado e na época comandante do DOI–CODI do Rio de Janeiro. Essas anotações demonstram ter sido aquele um atentado tramado nas entranhas do sistema, envolvendo dezenas de expressivos chefes militares à época.  Se realizado, o atentado provocaria provavelmente a morte de milhares de pessoas, entre as 20 mil que assistiam a um show em homenagem ao Dia do Trabalhador. Antes que a tragédia de incalculáveis proporções ocorresse, a bomba conduzida pelo sargento Guilherme Pereira dos Santos  e pelo capitão Wilson Luis Alves Machado (ambos do DOI–CODI–RJ) explodiu, acidentalmente,  no carro que os conduziria para a prática criminosa. O sargento morreu. O capitão ficou gravemente ferido, recuperou–se e hoje exerce cargo de relativa expressão no Exército.

             Não se pode evitar a ironia: belo acordo esse que teria sido feito para a oficialização da Lei da anistia. Bela pacificação essa que dele teria resultado.

               Infelizmente, o pior  ainda estaria por vir. Na tarde mais triste de toda a sua história, a 29 de abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal negou provimento à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF – 153), impetrada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Nela se argumenta não ser possível, consoante o texto da Constituição do Brasil, considerar válida a interpretação segundo a qual a Lei nº 6.683/79 anistiaria vários agentes públicos responsáveis, entre outras violências, pela prática de homicídios, desaparecimentos forçados, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor. Sustenta que essa interpretação violaria frontalmente diversos preceitos fundamentais, requerendo então declaração da Corte, no sentido de que a anistia ali concedida não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão, contra opositores políticos, durante o regime militar.

          Por uma maioria de 7 X 2, a Suprema Corte do país deixou de ser suprema e foi apenas corte, em minúsculas mesmo, à altura da desencontrada decisão que proferiu. A partir daí, o cipoal de sofismas, tergiversações e mentiras descaradas com que se tentou, ao longo do tempo, proteger reles torturadores e frios assassinos, ganhou cobertura legal e passou a ter, explicitamente,  força de Lei. É essa cobertura que precisa ser outra vez removida.

UMA REORIENTAÇÃO NECESSÁRIA

               Naturalmente, as forças democráticas acusaram o golpe. Foram várias as declarações, vindas de todos os lados e mesmo de honestos segmentos envolvidos na luta democrática,  a respeito da última pá de cal que  a decisão teria colocado em qualquer pretensão de punir torturadores. Segundo tais opiniões, eles poderiam  “dormir em paz”.

               Mas a história nem sempre segue direção tão linear. No curso dos últimos três anos, alguns acontecimentos fundamentais podem levar a resultados diferentes dos antevistos nas fatalistas declarações acima. Já em novembro de 2010, A Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) condenou o Brasil por não ter punido os responsáveis pelas mortes e desaparecimentos ocorridos na guerrilha do Araguaia, entre 1972/1974.  A Corte fundamentou sua sentença na Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário. No dizer do Juiz brasileiro Roberto Caldas, membro da Corte Interamericana, “convenção ratificada é compromisso assumido”. Claro que os componentes do STF logo se apressaram a negar qualquer possibilidade de mudança da posição adotada a favor dos torturadores. Mas que o Brasil ficou numa posição constrangedora não há nenhuma dúvida.

                 A 16 de maio de 2012, o governo federal instalou a Comissão Nacional da Verdade, criada por Lei alguns meses antes. A expressão feliz da presidente Dilma Rousseff, na ocasião, diz bem do significado do  ato:

                        “a força pode esconder a verdade, a tirania pode impedi-la de circular livremente, o medo pode adiá-la, mas o tempo acaba por trazer a luz. Hoje, esse tempo chegou”.

                        O trabalho desenvolvido pela Comissão – e pela dezena de outras que a ela se seguiram, ora pelos Executivos, ora pelos Legislativos, ora por iniciativas de movimentos sociais – só veio dar força às palavras então proferidas pela presidente. Os desdobramentos desse trabalho, a publicização e o conhecimento dos  tenebrosos atos praticados pelos que exerceram ditatorialmente o poder, durante 21 anos, hão de criar – um pouco já estão criando – um sentimento de indignação e revolta que há de repercutir nas instituições – particularmente nas que respondem pela Justiça em nosso país.

                        Não por acaso, em declarações recentes a correspondentes internacionais, o atual presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa, admitiu claramente que a infeliz decisão adotada em 2010 poderia ser revista, desde que para isso o Tribunal fosse provocado (e ele já o está sendo, por  dois recursos em trâmite). Alegou que a composição do Tribunal já se modificara em 4 juízes, que ele mesmo não havia participado (por razões de saúde)  e perguntado a respeito respondeu que os agentes da repressão deveriam sim responder por seus atos delituosos.

            Não poderia haver melhor indicação do caminho a seguir. Cabe agora às forças democráticas em luta reorientar suas proposições. Não se trata de rever a Lei da Anistia (o que nos faria depender de um Congresso desmoralizado, desinteressado na questão e absolutamente incapaz de conduzir luta de tamanha envergadura). Trata–se de lutar por uma reinterpretação da Lei, particularmente do artigo 1º e seus parágrafos. Feita pela instituição a quem cabe no país interpretar as leis: o Supremo Tribunal Federal. Uma reinterpretação – a bem da verdade e da Justiça.