Clemente Rosas

Militante do Partido Comunista Russo.

Militante do Partido Comunista Russo.

 

– Por favor, apresente-me àquele seu amigo, que senta ao seu lado, na conferência – a moça soviética havia pedido ao Bezerra, que se apressara em me dar a notícia.

Já havíamos notado aquela bela loura, de tipo esguio, mais nórdico que eslavo, trabalhando como intérprete no Congresso. Ela nos observava também, com um leve sorriso, mordendo às vezes os lábios. Eu não compreendia bem aqueles discretos sinais de interesse e menos ainda imaginava ser o seu objeto. Para complicar, acompanhava-a sempre um tipo alto, elegante, que tomamos pelo marido – e era mesmo.

Agora, porém, com a novidade, havia uma onda de excitação na numerosa bancada verde-amarela. Todos procuravam encorajar-me. Em dado momento, alguém trouxe a informação – errada – de que o cavalheiro acompanhante seria argentino. Era a dica que faltava para a irreverência do nosso Marco Aurélio:

– Vai em frente, rapaz! Argentino é corno fácil! Amanhã já estará compondo um tango: “Clemente me trayó!”

Na festa de encerramento, deu-se, afinal, a apresentação. Dançamos um pouco, e, para fugir à molecagem dos companheiros, que a vodca ia fazendo impertinentes, saímos a passear pela noite de Leningrado. Pulamos o gradil de um jardim público, fechado àquela hora tardia, e nos acomodamos em um banco, romanticamente.

Chamava-se Svetlana, era engenheira e casada. Mas como ela e o esposo já não se amavam, permaneciam livres e amigos, apenas formalmente ligados. Enquanto não tivessem interesses alternativos, não havia por que procurar o divórcio. Uma atitude tipicamente européia, não sei se motivada também por alguma conveniência de moradia, própria do socialismo. Isso explicava a naturalidade do marido, imune, como se vê, às portenhas dores de cotovelo.

Nosso idílio foi interrompido com a aproximação de dois guardas. Esfriei. Havíamos cometido uma transgressão, entrando clandestinamente naquele parque. Um deles começou a falar, de forma amistosa, intercalando observações ao companheiro. Minha amiga mantinha-se silenciosa, como se não entendesse, e quando lhe perguntava o que estava acontecendo, respondia apenas que não era nada grave. Depois de algum tempo, eles se foram, voltando com um ramalhete de flores, que nos ofereceram.. Um final surpreendente para a imagem de truculência que se tem dos policiais soviéticos. E talvez a prova de que um pouco de vodca sempre faz os corações generosos.

Quando eles se afastaram de vez, Sveta me contou o que ocorrera. Haviam-nos tomado, a ambos, por estrangeiros, talvez pelos distintivos do Congresso, que usávamos. E ela, espertamente, deixou correr o engano. Por isso, haviam sido condescendentes. Disseram ainda que compreendiam nosso desejo de estar sós, desejaram-nos felicidades e, jovialmente, colocaram em sua própria boca as palavras que, achavam eles, eu lhes diria, se soubesse falar russo: caiam fora!

Conservo a mais cara lembrança dos momentos de amor improvisado que tivemos sobre aquele banco, no refúgio de um jardim, dentro da fresca madrugada do verão russo. Não houve oportunidade para novos encontros, já no dia seguinte eu deixava Leningrado, iniciando uma longa jornada de retorno. Ainda trocamos cartas, por algum tempo, como amantes à moda antiga. Mas nunca lamentei tanto a minha timidez, como quando a ouvi dizer, naqueles breves momentos que passamos juntos, e que não se repetiriam:

– Why didn’t you come to me before?
(Agosto de 1962)