Clemente Rosas

Mar bravio.

Corriam os anos 70 do século passado, e eu trabalhava como executivo de uma empresa produtora de papelão ondulado do Grupo Klabin, com unidade industrial na cidade de Goiana e escritório na capital de Pernambuco.  Seu presidente, Armando Klabin, era velho amigo do meu pai, desde a vinda do irmão dele, Israel, ao Nordeste, nos anos 50, visita que deu origem a outro empreendimento do Grupo na Paraíba, uma fábrica de fios de sisal (“baler twines”). Israel foi acompanhado pelo meu pai em seu mergulho na dura realidade do sertão paraibano em plena seca, e foi um dos integrantes do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste – GTDN, de que resultou a criação da SUDENE.

A COSIBRA – Companhia Sisal do Brasil tinha uma casa para uso eventual de sua diretoria em Tambaú, onde o Dr. Armando costumava passar, com a família, alguns dias dos verões nordestinos.  E foi num desses verões que eu, curtindo férias na minha Praia Formosa, fui convocado para acompanhar o Dr. Eduvaldo, sogro de Armando, num programa de caça submarina em afamado ponto pesqueiro do alto mar de Tambaú. Uma tarefa de cortesia ao meu chefe, mas também de pleno agrado para mim.

Dr. Eduvaldo era aficionado do esporte, e já fora presidente de uma associação de caça submarina no Rio.  Mas, àquela altura, estava um tanto fora de forma, bem acima do seu peso de jovem.  Tanto que, para ajudar-se, usava uns pés-de-pato gigantes, coisa de um metro, que precisava amarrar nos tornozelos, para que não saltassem dos calcanhares, na movimentação.  O destino da jornada náutica era o “Queimado”, um navio que afundara por incêndio, em tempos remotos, e que, ao lado do “Alice”, constituía um dos dois locais preferidos pelos mergulhadores, no mar de Tambaú.  Foi no Queimado que, anos antes, um grupo de professores de educação física conseguiu arrancar das profundezas um mero gigante, de mais de 300 quilos.  Tão pesado era o peixão que não se pôde improvisar um monta-cargas para suspendê-lo, e fotografá-lo na vertical, como é de praxe.  A revista “Visão”, antecessora da “Veja”, reportou o feito, com uma foto do bicho na horizontal, ao lado dos seus caçadores.

Mas devo apresentar ainda os dois outros personagens da aventura.  Jessé, nosso guia e piloto, morenão e parrudo, faca presa na perna como de regra, era mergulhador experiente, de muitas águas devassadas.  E o Maturi (do tupi, cajuzinho novo, em formação) não passava de um barquinho, encomendado pelo Dr. Armando a uma carpintaria naval cabedelense, que, por indefinição quanto ao seu uso, acabou tendo uma concepção pouco feliz: não era aparelhado para vela, tinha casco aberto como uma canoa, e podia ser movido apenas por um motorzinho de popa, ou a remo.  Em suma, inadequado para mar aberto e águas encrespadas.

Até hoje me admira o senso de orientação do nosso guia. Sem qualquer instrumento balizador da navegação, valendo-se apenas de marcações na remota linha de terra, conduziu o Maturi por cerca de uma hora, até nos descobrirmos exatamente sobre a silhueta do navio afundado.  Estávamos naquele azul escuro intenso, de águas profundas, que é – ao mesmo tempo e surpreendentemente – de grande transparência: ao mergulhar, vê-se tudo, a seguras distâncias.

Ao cair na água, logo me dei conta dos riscos da operação. A profundidade era grande: mergulhando em apneia, eu mal chegava à metade do caminho, de onde via o veterano Jessé quase a roçar a barriga no costado do navio.  E ao voltar à superfície, um susto: onde estava o Maturi? Aí tive consciência do drama dos náufragos em alto mar, que dificilmente são avistados por grandes embarcações. Pior ainda: as pequenas embarcações também não são avistadas pelos náufragos.  Quando um está na crista da onda, a outra esconde-se na cava.  A partir desse momento, a minha preocupação passou a ser não perder de vista o barquinho.  Até porque, a cada descida, a turbulência e o puxão da maré nos afastavam dele.

A pescaria limitou-se a uma bicuda (barracuda), arpoada por Jessé.  Peixe de superfície, a bicuda é agressiva, tem dentes à mostra, e pode morder como um cão. Não raro, uma cavala fisgada “no corso” não chega inteira às mãos do seu pescador: a bicuda a leva pela metade. Mas o que se passou conosco, naquele ermo aquático, superou qualquer emoção de arpoar um peixe valente, como se verá.

Cansado dos mergulhos, eu subira ao barco para tomar fôlego, e, olhando em torno, não consegui avistar o Dr. Eduvaldo.  Esperei algum tempo, e quando o Jessé emergiu, chamei-o e reportei o problema:

– Não estou vendo o Dr. Eduvaldo.  Parece que ele desapareceu.

– Rapaz, não me diga uma coisa dessas – assustou-se o guia. O que é que vamos fazer?

Perscrutamos juntos a superfície do mar a sotavento, e nada descobrimos.  Esfriando a cabeça, raciocinei: se ele tivesse afundado, por algum mal súbito, não teríamos nenhuma chance de achar e resgatar o corpo das profundezas.  Nada a fazer, nesse caso.  Mas o mais provável é que tivesse sido arrastado pela corrente, sem condição de resistir, apesar das nadadeiras gigantes.  E propus:

– Vamos levantar ferro, ligar o motor, e seguir bem devagar na direção das ondas, para ver se o avistamos.

E assim foi feito.  Equilibrando-me de pé na proa do Maturi, depois de alguns minutos consegui vislumbrá-lo, flutuando entre respeitáveis vagalhões.  Com algum trabalho o reembarcamos.  Mas o quase náufrago não se deu por achado.  Quando perguntamos o que teria havido, dissimulando a tensão, respondeu:

– Nada não… Já estava voltando, para encontrar vocês…

E assim a pescaria submarina foi encerrada.  Mas, se a maior aflição ficara para trás, as atribulações continuaram.  Na volta, com o vento sudeste soprando forte a bombordo, a nossa casquinha de noz começou a se encher de água, com os respingos das ondas.  Foi necessário, reduzindo a velocidade, iniciar uma operação permanente de esvaziamento, com uma caneca.  E passei todo o percurso do retorno curvado, quase de quatro, nessa penosa tarefa.  E quando, enfim, chegamos em terra, Dr. Armando já se dispunha a organizar uma missão de resgate para os temerários navegantes.

Décadas depois, a convite de um filho com curso de mergulho em águas profundas, voltei, desta vez com cilindros de oxigênio e compondo um grupo de turistas, a visitar um barco naufragado em Tambaú.  Por questões de tempo e de ventos, ficamos no Alice, mais perto de terra. Talvez por isso, mesmo desta vez sem limitações para o mergulho, não reencontrei aquele azul profundo e aquela transparência que me deslumbraram no Queimado.

Quanto ao Maturi, conhecendo a prudência e a meticulosidade do seu dono, posso garantir que não voltou a singrar as águas do Atlântico.