Fernando Dourado

Casal de idosos em Dresden, Alemanha.

Esta manhã, despertei em Dresden. Mal coloquei os pés no chão, já fui pensando em dar-lhe notícias, meu caro editor. Na verdade, para efeitos da conversa que teremos, pouca diferença faria escrever-lhe da beira do rio Elba ou do São Francisco. Certo mesmo é que a caminho de Berlim, sacolejando numa composição torta do sistema ferroviário alemão, decidi por fim que soou a hora de informar que encerro por aqui minha colaboração com sua prestigiosa revista. Não tome a forma abrupta como indicativa de má-vontade ou enfado. E sequer como uma decisão tardia de Ano Novo, dessas que normalmente já estão abolidas nesta terceira segunda-feira de janeiro, também conhecida como “Blue Monday”. Não conhecia a expressão? Eu tampouco. Permita-me, pois, explicar que se trata do dia mais triste do ano, segundo especialistas em ciências comportamentais. Pois estilhaçadas as metas que nos moviam até a primeira ou segunda semana de janeiro, o “Blue Monday” assinala o reatar com nossa mediocridade, com a procrastinação, com a incapacidade de agir preventivamente contra os desgastes do tabagismo e da dispersão. E no meu caso, você bem sabe, é esta última a que mais me transtorna porque é pilhéria atribuir às mulheres o dom da multitarefa, desonerada do cansaço. Ora, eu estou bem cansada, meu caro, creia-me.

Não, não pense que desta vez você me demoverá da decisão que já tomei. Contrariamente às ocasiões anteriores, quando o que mais pesava contra a sobrevivência de meu espaço literário era o perfeccionismo obsessivo que me desautorizava a mandar para publicação alguma coisa que não estivesse em acordo com um padrão elevado de exigência, desta feita o problema é outro. Se um pouco de conversa amiga bastou para que eu persistisse em escrever, independentemente do caráter transitório e efêmero da palavra impressa, agora tudo mudou de figura. E a razão cabal pode estar bem aqui a meu lado, dormitando entre silvos, enquanto um russo mal-educado vocifera no banco de trás, querendo fazer-nos crer que está dando ordens de compra e venda nas principais praças financeiras do mundo, nos ares gordurosos do vagão-restaurante. Sim, falo dele, falo de Alfredo, meu marido, o dorminhoco, que começa a não se aperceber de grande coisa à nossa volta, e que passou os últimos dias perscrutando os céus de Dresden à espera das bombas aliadas. Ainda hoje, a caminho da estação, repetiu, atoleimado: “O calor era tamanho que até os vidros derretiam”. Fiz de conta que era a primeira vez que ouvia a alusão à data fatídica. “Hoje dormiremos em Berlim, Alfredo. De que história você vai se lembrar?” Então, ele ficou repetindo: “Berlim, Berlim”.

Como você vê, estão delineados os primeiros indícios de demência à minha volta. Desde o diagnóstico, vínhamos esperando o recrudescimento dos apagões, mas o quadro se manteve estável por meses, a ponto de ele mesmo fazer um pouco de troça do que disse o neurologista. A ideia desta viagem, aliás, se inseria no quadro de que tínhamos mais que aproveitar a vida, sem dar muita bola para prognósticos sombrios. “Vamos nos divertir a valer. Vou aproveitar para fazer um diário de viagem para a revista. Cuidado com suas estripulias porque vou registar tudo, viu”. Mas percebi que havia algo de errado já em Munique, que foi nossa porta de entrada. Primeiro ele desrespeitou o pacto sagrado de não fechar a porta do banheiro, o que quer que ele vá fazer lá. “Já temos intimidade bastante depois de 40 anos de casados, não acha?” Desta vez, não funcionou. Ele virou a chave, sentou no vaso e ligou o chuveiro. Despertei com o alarme de incêndio que disparou por conta do vapor acumulado. Esclarecido o mal-entendido, Alfredo não fez caso de minha reprimenda enérgica e simplesmente adormeceu, mal voltou para a cama. Daí em diante parece que tudo só fez piorar. No passeio pela “Estrada Romântica”, estava apático e indiferente às paisagens. Deixou pratos pela metade, o que é grave em se tratando dele, e tinha o olhar baço e o sorriso triste.

Sei que você dirá que posso perfeitamente cuidar dele e continuar escrevendo mesmo porque ninguém vive sem um pouco de distração e escapismo. Você não está errado de todo. Ocorre que ultimamente já vinha me perguntando em que moldura da vida se inscreve essa dimensão de escrever. Não seria hora de pensar em outra forma de expressão? Ou, quem sabe, de simplesmente viver a vida, justo agora que os intervalos de prazer diminuirão sensivelmente, e tudo indica que terá início uma romaria aos médicos, onde quer que eles estejam? Pois não é assim que fazem os que têm recursos e os que até ontem transbordavam de amor à vida? Depois, veja bem, até minhas colaborações para o jornal são cada vez menos lidas. Tempos houve em que para cada coluna, chegavam dezenas de cartas com comentários, o que propiciava farto material para as próximas. Mas isso agora é passado. O maior prazer que a “Gazeta” me deu ultimamente, se você quer saber, foi o que tive ao me deparar com um exemplar no mercado público, onde fui comprar peixe. Ver o meu nome rasgado, espetado na dentição prognata do bicho, deu vida ao clichê e, de certa forma, me pareceu uma lisonja. Afora esse episódio, quase mais nada há a destacar, a não ser os vitupérios que me dirigem as falanges políticas, mais risíveis do que intimidadoras.

Alfredo continua cochilando, indiferente às paisagens brancas. Logo mais fará noite fechada, antes das cinco da tarde, e não me espantaria nada se ele me perguntasse onde estamos e o que estamos fazendo aqui. O russo aqui atrás parece ter entendido que eu não estava nada impressionada com suas bravatas e que, pelo contrário, elas me incomodavam bastante. Foi então berrar ao telefone na junção entre os dois vagões, onde faz um frio de dois dígitos negativos. Pelo sim pelo não, meu olhar ainda inspira algum respeito neste mundo. E agora, o que nos espera em Berlim? Prefiro não pensar. Passemos, portanto, à minha desistência anunciada, se é que você ainda está lembrado dela. Pois bem, vou parar de escrever para a revista. Um compromisso que tire da mesa, saiba que já me trará grande alento. Mesmo porque esta não é hora para pensar em perdas, mas no mínimo que se pode fazer para minorar o sofrimento de quem está ao lado. Que artigo, que ensaio e que comentários podem ser mais relevantes para mim, ou para nós? Pergunto-me em que lugar se aloja essa necessidade de compartilhar sentimentos e fabular mentiras? Pois bem, como locadora, expulsei a locatária inútil. Não poderia me permitir tamanho luxo psíquico, agora que Alfredo promete se enredar num nó sem fim de confusões e dúvidas, de inseguranças e fragilidade.

De resto, estaria faltando com a verdade se negasse o quanto gosto de escrever para sua revista, meu caro Rafael. Nunca me faltou assiduidade e, tanto quanto possível, um irrestrito compromisso com a qualidade, o que não deixava de ser uma luta contra minhas limitações de engenheira metida a beletrista. Mas tanto na sua revista quanto em outras, nossos artigos de há muito perderam a razão de ser. Não precisamos ir longe. Basta ir a um consultório médico e observar as pilhas de revistas intocadas que se acumulam sobre as mesas. Ninguém parece interessado em ler artigos que se pretendem completos, quando a diversão buscada se exaure nas redes de WhatsApp, onde a informação vem empacotada por amigos e, convenhamos, toma uma forma lúdica, não raro divertida, que afaga e satisfaz. Juro até que pensei em abandonar essa sisudez que traz rugas ao meu rosto e me força a pintar os cabelos a cada três semanas. Ser leve e espirituosa, contudo, nunca esteve a meu alcance – talvez porque gente leve e espirituosa não me inspirava o respeito devido -, e doravante acho que estará muito menos, já que me competirá zelar pela dignidade dessa fase da vida  de Alfredo e organizá-la de forma a que a família não se ressinta tanto do estado de nosso querido patriarca. Vê-lo reduzido a um bebê me apavora, se quer saber.

A próxima parada já será em Berlim. Ainda não na estação central, que é onde desceremos para rumar de táxi para Friedrichstrasse, mas numa estação secundária do trajeto. Tenho tempo, portanto, para te dizer que a partir de hoje também deixo as redes sociais que, querendo ou não, me tomam mais tempo do que eu gosto de admitir. De mais, não vou veicular em minhas páginas o lento calvário que consumirá em fogo brando meu marido, e tampouco pedir opiniões a este ou aquele sobre onde devo comprar fraldas geriátricas, e que exercícios preciso impor-lhe para que se mantenha minimamente operativo. Não será à base de emojis sorridentes ou pesarosos, de aplausos ou de corações, que vou administrar a raiva surda que me inspira a atitude de nosso casal de filhos. Ele, Alfredo Filho, quando a doença foi detectada ainda em estado preliminar, nunca mais teve qualquer assunto comigo que não girasse em torno da repartição de bens, como se já estivéssemos vivendo o day after da morte do pai. Sei que tem alguma razão e que o pragmatismo não é de todo ruim. Só me choca o total descompromisso com a dimensão humana da tragédia, com a progressiva incapacitação de quem lhe deu mais do que a vida, a régua e o compasso que o tornaram tão bem sucedido. Quando a Margarete, bem, a ela só tocam os dramas de seus amigos, e a família é secundária.

É hora da despedida. Pode ser que o “Blue Monday” tenha me pegado de jeito, não duvido. Sei que essa deverá ser a última grande viagem que fazemos a dois, e que a Berlim que nos espera logo mais, pode quando muito ser a da rememoração das experiências vividas até pouco tempo atrás. Vamos almoçar na KaDeWe e Alfredo talvez se anime a entrar num cinema da Kurfürstendamm, como fazíamos nos anos em que o Muro ainda impunha a esta cidade uma aura sinistra. O frio não permitirá que nos sentemos diante do hotel Adlon para admirar o Portão de Brandemburgo, que assinalou aqueles dias malucos que jamais pensáramos viver. “Venha ver, venha ver, eles estão derrubando a marteladas o Muro, as pessoas estão passando por cima”. Foi mais ou menos naquela época que comecei a escrever. Escrever para entender, escrever para compartilhar, escrever para dividir. E ele quase sempre foi meu primeiro leitor, ou, pelo menos, o primeiro ouvinte, já que me pedia para ler-lhe os parágrafos em voz alta. “Por que você não tenta ser mais coloquial, Marta? Ou você acha que as pessoas falam todas como você?” Ou então: “Você já se deu conta de que há uma recorrência em suas histórias? Elas sempre começam com uma catástrofe, depois alguém faz um grande gesto e lá fica uma lição para a vida? Não estou criticando, mas é um padrão”.

Epílogo

Hoje é quinta-feira e três dias se passaram desde que te escrevi o acima, Rafael. Por uma razão que não consigo entender inteiramente, deixei minha carta na caixa de rascunhos, como se me faltasse coragem para te dizer todo o acima. Primeiro queria revisar o texto e enviá-lo do trem não teria sido a forma propícia de buscar meus deslizes ortográficos. Chegando ao hotel, apareceram outras prioridades, como você deve imaginar. Em segundo lugar, houve o telefonema de Margarete. Algo lacrimoso, é verdade, mas pela primeira vez em bastante tempo ela pareceu se preocupar com o pai e, entre as linhas, deixou transparecer que se arrependia em não nos ter acompanhado, conforme era desejo dele. Seja como for, ele gostou de saber desse sinal de vida. “É o segundo milagre que Berlim testemunha em 30 anos, quem diria…” Por fim, houve o bolinho de praxe no café Einstein e o comovente e inesperado desabafo de Alfredo: “Nem tudo é demência, às vezes é só defesa. O bombardeio de Dresden me remete a meu pai, que falava tanto dele e que, infelizmente, morreu jovem demais para vir aqui. Dormir no trem, ora, foi uma forma de deixá-la trabalhar em paz e me poupar dos berros daquele russo insuportável e catingoso. Relaxe, toquemos a vida”. Por essa e por outras, Rafael, fica aqui meu até breve. Com o abraço de sua amiga, M.