Sérgio C. Buarque

Foto de 1971 no pátio da Casa de Detenção do Recife (em frente à quadra de futsal). Da esquerda para a direita acima: Inocêncio Uchoa, Sérgio C. Buarque, José Arlindo Soares, e Ivan de Barros Falcão. Na linha de baixo da esquerda para a direita: Érico Dornelles e Vando Nogueira. O conto é uma ficção e os personagens não são necessariamente os da foto.

Foto de 1971 no pátio da Casa de Detenção do Recife (em frente à quadra de futsal). Da esquerda para a direita acima: Inocêncio Uchoa, Sérgio C. Buarque, José Arlindo Soares, e Ivan de Barros Falcão. Na linha de baixo da esquerda para a direita: Érico Dornelles e Vando Nogueira. O conto é uma ficção e os personagens não são necessariamente os da foto.

Eram seis camas espalhadas pelo ambiente e encostadas nas paredes brancas, únicos móveis e objetos da sala estreita, além de uma mesa de metal no centro. Dois jovens, sentados numa das camas, com ar tenso, conversavam em voz baixa como se trocassem segredos inatingíveis. Na cama da frente, do outro lado da sala e sob uma grade de ferro que dava para o pátio, dormia Juarez com aparente serenidade, espalhando o corpo entroncado na diagonal. Próximo da cama, Alberto, homem maduro de barba grossa e óculos de aro, estava de pé observando, através da grade, o movimento do lado de fora como se procurasse uma forma de fugir do tédio. Tinha um livro aberto na mão, mas sua atenção se concentrava do outro lado daquela grade na forma de janelão.

Júlio estava acordado no canto esquerdo, sentado na cama e encostado na parede, apenas pensando, com olhar melancólico e distante. Pensava na vida e na sua situação, isolado naquela sala desconfortável, acompanhado de alguns estranhos e forçado a uma convivência incômoda. Júlio refletia sobre os seus últimos dias naquela sala, os eventos que o levaram até àquela cama, os afetos distantes. Ele se sentia meio desprezado pelos outros cinco habitantes do ambiente, que pareciam formar dois pequenos grupos rivais que deviam refletir afinidades eletivas do passado.

Distraído nas suas elucubrações, Júlio pegou sua meia e começou a brincar ocupando as mãos e distraindo a mente; recolheu alguns panos sujos e velhos do seu limitado guarda-roupa, encheu a meia, apertou e deu uma volta na parte superior; com dois movimentos e um nó, criou uma pequena bola com alguma rigidez gerada pela pressão das peças de tecidos. Segurou a pequena bola na mão por alguns minutos, sorrindo com a sua criação, levantou o braço e jogou nos dois jovens que conversavam à sua direita. Susto e irritação com a agressão. Um dos atingidos levantou gritando e ameaçando violência física, contida pelo amigo menos tenso.

Enquanto os dois discutiam, Júlio ria e se desculpava. A bola rolou até os pés de outro jovem que caminhava impaciente de um lado para o outro, expelindo sua depressão. Quase sem intenção, ele parou a bola com o pé esquerdo, olhou em volta e chutou forte com o pé direito. A bola bateu na barriga de Júlio e rolou pelo chão liso de cimento queimado. A cômica situação daquele objeto preto e redondo deslizando pela sala acabou com a discussão. O riso tomou conta do ambiente, alguns discretos outros descaradamente altos, criando uma momentânea e estranha alegria com a pequena bola se oferecendo aos seus pés. Mesmo Alberto, sério e compenetrado, voltou a atenção para o interior da sala e acompanhou a alegria geral do grupo. Em poucos segundos, aquela insignificante e improvisada bola de meia quebrou a tensão e a desconfiança dos homens que dividiam involuntariamente aquele espaço.

O barulho despertou Juarez, que logo estava correndo também atrás daquele objeto mágico que transformava o ambiente desagradável em uma festiva reunião de amigos. Em pouco tempo, estava organizada uma pelada, dividindo os presentes em dois times que corriam pela sala trocando passes, chutando a bola e procurando metê-la num espaço entre as camas. Acabou o tédio, terminaram os segredos e as conversas isoladas e todos passaram a jogar uma animada partida de futebol com uma bola de meia, barras formadas pelos pés das camas e uma alegria impensada para as condições cercadas de medo e insegurança.

Durante mais de uma hora de alegre e festiva pelada, algumas entradas duras e reclamações irritadas, vários gritos de gol e uma pequena briga, os seis homens viraram moleques de rua, desligados e esquecidos do mundo real. Suados e muito cansados, pararam quando já não suportavam correr e pular. Riam e conversavam sobre os lances, erros e jogadas, cada um ressaltando suas discutíveis habilidades futebolísticas. A água fria e rala do único chuveiro disponível caia no corpo suado provocando uma felicidade transitória e efêmera que recuperava o humor e a energia coletiva.

A bola ficou embaixo da cama esquecida e ignorada naquela noite. Mas foi a responsável pela grande transformação na vida dentro daquelas quatro paredes. A partir daquele dia os seis homens criaram uma afinidade; e foi se formando entre eles um afeto que moderava a sua angústia e insegurança. A pelada tornou-se um ato de celebração do grupo e de sublimação da realidade. Aquela pequena e simples bola de meia simbolizava uma espécie de momentânea libertação, quando se esqueciam de tudo e gozavam os prazeres do corpo e da atividade lúdica e coletiva.

Aos poucos, foram sendo introduzidas inovações que melhoravam o campo improvisado: reforçaram a meia com mais tecidos e com uma pressão mais forte; colocaram algumas camas acima das outras, para ampliar o espaço e, portanto, permitir mais movimento e correria atrás da bola; e depois, desceram as cobertas pela cama até o chão para impedir que a bola passasse para baixo, como se tivessem criado uma margem do campo. E definiram algumas regras para acirrar a disputa, facilitar o gol e estimular a concorrência que simbolizavam e sublimavam latentes rivalidades pessoais e políticas.

Com o tempo, Júlio, que era o mais isolado do grupo, passou a ser o grande animador, lembrado sempre como inventor da bola e, portanto, iniciador de uma nova relação que começou a se formar entre os seis, facilitando o diálogo e estimulando a confiança que permitia compartilhar as suas histórias e os seus segredos. Desde o princípio, por alguma afinidade não conhecida, formaram-se dois times que permaneciam nas várias peladas jogadas nos dias seguintes. Alberto, o homem maduro, ficava mais recuado e não tinha muita habilidade com a bola, o que era compensado por outros dois de melhor desempenho. Ao mesmo tempo em que construía uma afetividade e ampliava a amizade no grupo, as peladas foram gerando uma rivalidade futebolística entre os dois times.

“A bola de meia é a maior arma da revolução”, gritava Juarez empurrando e provocando os adversários. “O socialismo”, respondia Júlio, “é o direito do povo à bola. A revolução socialista deve garantir uma bola de meia para todo cidadão”. “Viva a bola de meia! Bola de meia para todos!”, gritavam.

Como a resistência física e a musculatura dos seis estavam bastante fragilizadas por vários meses de sedentarismo, não custou para que surgissem distensões e lesões que dificultavam a movimentação e as partidas. Naqueles dias, o maior sofrimento para eles seria uma eventual incapacidade física que os impedisse de jogar a pelada do final da tarde, momento sublime de entrega e plenitude. Logo no primeiro dia, dois deles tiveram uma distensão que os acompanhou por algum tempo; não conseguiam se recuperar porque não paravam de jogar, mesmo que a perna continuasse doendo e dificultando os movimentos mais ousados de disputa de bola e chutes.

No quinto dia da nova vida entre as quatro paredes, no auge de uma pelada, com gritos de alegria a cada gol e muita discussão e alguma pancadaria entre os adversários, o capitão da guarda apareceu na grade de entrada, observou por alguns segundos e gritou com a arrogância emprestada pela farda e pela arma: “Que palhaçada é essa? Vocês acham que estão num clube recreativo, porra! Isso aqui é uma prisão de comunistas e terroristas”. No susto, os seis homens pararam ao mesmo tempo, e a bola rolou solitária para o meio da cela, a realidade reassumindo o deprimente comando da situação. O capitão apontou para Júlio e ordenou que pegasse a bola e a trouxesse para ele. O jovem não respondeu e permaneceu parado no canto do salão olhando para a grade de entrada.

Após alguns poucos minutos de elevada tensão, o capitão explodiu de raiva, tirou a pistola e elevou os decibéis do grito: “Estou mandando pegar esta porra de bola e me entregar. Tem três segundos para cumprir minha ordem ou eu vou começar a atirar!” Como Júlio não reagisse e formava-se um ambiente explosivo, antes que houvesse uma tragédia, o sargento pediu calma ao capitão e começou a abrir a grade para buscar a bola. O capitão entrou e dirigiu-se para Júlio que continuava imóvel e recusando obedecer a sua ordem. “Capitão”, disse Júlio tremendo e gelado, “eu sou um prisioneiro político e não seu empregado. Não vou …. “. Não conseguiu terminar a frase porque o capitão deu uma coronhada no seu rosto que o derrubou.

Para evitar que a situação fugisse do controle e gerasse consequências mais dramáticas, Alberto apanhou a bola e a entregou ao capitão. Este pegou bruscamente aquele simples objeto de prazer e de discórdia e saiu da cela dando ordens para que algemassem Júlio na grade.

No meio da noite, após o toque de silêncio e enquanto o capitão dormia, o sargento veio até a grade com um enfermeiro que examinou o rosto de Júlio bastante machucado, passou um antiinflamatório na parte roxa do rosto e deu um analgésico para amenizar a dor. Em seguida, o sargento teve o cuidado de afrouxar ao máximo as algemas e prendê-la o mais baixo possível. Mais tarde, os companheiros e parceiros das peladas trouxeram um colchão para dar um pouco de conforto e permitir que Júlio dormisse mesmo algemado.

No dia seguinte, o comandante do quartel, depois de informado do incidente, mandou tirar as algemas de Júlio e cuidar do seu hematoma no rosto. Mas a bola de meia, aquele símbolo de libertação humana no meio da desgraça, tinha sido destruída, acabando com os momentos de plena alegria dos jovens prisioneiros.

O dia foi de desânimo e muita discussão entre os seis, com críticas a Alberto por ter entregado a bola ao capitão, “abrindo as pernas para o inimigo e agressor”, como argumentou Juarez. Menos emotivo que os mais jovens, Alberto recebeu com tranquilidade os protestos e não se intimidou, ponderando que o oficial estava descontrolado e poderia provocar um incidente muito grave, ameaçando a integridade física ou mesmo a vida de Júlio. “É preciso saber ceder quando não se pode enfrentar o inimigo, companheiros. Júlio mostrou firmeza e coragem, mas alguém precisava tomar a iniciativa de parar a violência do capitão”, explicou Alberto com paciência e cordialidade.

De tarde, a discussão já tinha acabado e todos se espalhavam pelas camas numa grande melancolia, alguns dormindo, outros apenas meditando com uma carência aguda do movimentado jogo. Tinham formado uma agradável relação de amizade por cima das diferenças de atitude diante da situação adversa que viviam e mesmo na diversidade de visão de mundo e adesão política. Aceitavam com tristeza, mas resignação, a perda do seu principal passa tempo no meio do tédio e da ansiedade. Ao longo do dia tentaram jogar xadrez, ler alguma coisa. Conversaram e se entregaram à melancolia.

No final da tarde, deitado na cama, Juarez pegou a própria meia e foi compondo, sem pressa, outra bola, enchendo-a com uma camisa velha. Concluída a tarefa, Juarez jogou a bola para o alto. “A luta continua, companheiros”, gritou com uma grande gargalhada enquanto a bola caia com um som abafado no centro da cela.