Fernando Dourado

Vitosha Boulevard in Sofia, Bulgaria.

Vitosha Boulevard in Sofia, Bulgaria.

Se você é uma dessas pessoas que têm um mínimo de aversão à incerteza, por certo encontrará dificuldade ao encarar algumas circunstâncias com que deparamos na vida. Dou um exemplo prosaico para ilustrar a tese. Um par de anos atrás, depois de ter passado cinco dias em Bucareste, na Romênia, senti chegada a hora de viajar para a Bulgária. Mas como me deslocaria? Ora, ambas as capitais não são tão distantes. Era coisa talvez de quinhentos quilômetros até Sofia, motivo determinante para viajar por terra. Mas então começou o absurdo bem característico dos países do leste da Europa. Sim, havia um trem, mas ele normalmente vinha lacrado da origem, ou seja, ninguém era autorizado a embarcar, só podia desembarcar. Por que razão? Ora, isso se devia a acordos internacionais, disse a matrona com reverência e voz baixa, como se cochichasse um segredo maçônico. Tratava-se de um trem que provinha de Moscou e cobria Minsk, Kiev, Kishniev, Bucareste e, afinal, Sofia. Já o vira sair da estação Bielorusskaia, na antiga capital do Império. Só não sabia da tal restrição. Bem, se ninguém embarcava, podíamos dizer então que não tinha trem, certo? Sim, ela até concordou. Sob essa ótica, efetivamente, não tinha. Mas, em tese, o fato é que tinha trem. Não, rebati, se o trem que tinha, não nos servia ao propósito da conversa, então não havia trem algum. Com um gesto brusco, ela fechou o guichê na minha cara.

Alguém então se meteu na conversa e disse que eu poderia tomar uma composição que partia perto da meia-noite e chegava a Sofia às 14 horas, se não houvesse atraso. Fiquei irritado pois detesto uma notícia ruim, dada por um bem-intencionado apalermado. Então quer dizer que o trem vai a 35 quilômetros por hora, cavalheiro? Nesse caso, convenhamos, melhor seria ir a pé. Ironia à parte, me pareceu certo de que não seria de trem que viajaria. O rapaz de uma agência de viagem não resistiu à discussão que começou a ficar acalorada e disse com ares sentenciosos que o melhor mesmo seria pegar um avião e gastar uns duzentos euros pelo conforto e pontualidade. Ademais, ainda ficaria com o trecho de retorno garantido. Mas eu não pretendia voltar lá tão cedo, argumentei. Portanto, seria melhor para quem? Só se fosse para ele. Além disso, o que iria ver das alturas do avião? Reiterei que não havia hipótese de fazer isso. Nem que a alternativa fosse ir para a estrada, mesmo com o risco de ser estraçalhado pelas matilhas de cães vadios, até conseguir uma carona. Eles deram de ombros e tocaram adiante. Gadjo, devem ter pensado. É a palavra cigana para estrangeiro, não-gitano. Certo é que eu não desistiria. Nem que para lograr o intento de passar a fronteira, viajasse para a última cidade romena e atravessasse a pé a divisa entre os dois países.

Afinal, apenas um dia depois, encontrei uma menina esperta e teimosa no café da livraria Bastille. A conversa com ela foi tão abrangente que até de cinema brasileiro falamos, tendo ela demonstrado interesse pela obra de Hector Babenco, bom amigo de meus melhores amigos. Depois de lhe conquistar a simpatia, voltei à carga com o tema que então me atormentava. Queria ir por terra a Sofia, atravessar o rio Danúbio, sentir a transição entre a cultura de batata e polenta para outra que se notabilizava pelos tomates sumarentos. Seria possível? Num blog de viagens de uma amiga, ela achou uma condução terrestre – não se sabia se ônibus, micro-ônibus, van, carro ou motocicleta – que saía da Gare de Nord às sete da manhã. Mas a estação era enorme. De onde exatamente? Ela não soube responder. Ou melhor, disse que bastava chegar lá e ir perguntando a uns e outros. Uma hora alguém saberia dar uma indicação mais precisa. Entendi. Decidi que chegaria cedo e então me deixaria guiar pelo instinto – nada que as pessoas que têm pavor ao risco e à incerteza topariam fazer. Para pegar a tal condução às sete da manhã – sem saber de onde sairia -, precisava chegar lá pelo menos às seis e meia. Resultado: dormi só duas horas na minha última noite na capital romena. Mas o que é um pouco de sacrifício diante da possibilidade de atravessar uma fronteira?

Antes de retomar, uma confissão sem mácula. Noites muito curtas são para mim uma tortura. Dessa vez, contudo, tive só um longo e elaborado sonho, tendo meu irmão e minha mãe como protagonistas únicos. Eles estavam brincando numa espécie de salão; ambos riam de dobrar e ela o tratava como se ele tivesse cinco anos. A seu turno, ele a contemplava com uma veneração agradecida, como se ela fosse a única pessoa que contasse na Terra. Parecia pensar: nada no mundo se comparava a esta alma providencial; àquela senhora elegante e assertiva que tinha respostas para rigorosamente tudo e que assacava uma receita baseada nas três premissas que lhe norteavam a vida: cuidar da saúde; cuidar da aparência e controlar a opinião alheia sobre si própria e o rebento caçula. A cena lembrava a felicidade de um filhote de urso com a mãe numa corredeira de salmão, a treinar desajeitadamente as primeiras patadas da pesca. Ela parecia dizer: mas não se apresse, não, eu pesco por você. O que será que isso tinha a ver com meu momento? Tudo, ora. Bem, a estultice da auto-análise é tentadora. Fato é que acordei sob o chuveiro e enfrentei a escuridão fria e chuvosa da cidade onde passei dias tão especiais. No táxi, me sentia excitado com o despertar de Bucareste agora enevoada. Mas o sonho me acompanharia pelo resto do dia.

A caminho da estação, crivando o taxista de perguntas, me vi já saudoso dos bulevares imensos; das conversas nos cafés sobre as obsessões que tenho em comum com os romenos – Ceaucescu, Securitate, ciganos, Transilvânia -; dos prédios enormes; das aberrações do trânsito; da cultura fitosi dos novos ricos que lotavam os restaurantes da moda e faziam questão de ostentar todos os sinais de prosperidade que, na verdade, quanto mais bregas fossem, melhor serviriam ao propósito. É claro que arranjei um tempinho para as livrarias. Numa delas, descobri Gabriel Liiceanu que escreveu em suas páginas de diário sobre os desvãos da psique humana: “Para além da ´porta proibida`, ferve a vida moral de cada um de nós. É nesse cômodo, onde ninguém pode entrar sem nosso consentimento, e cuja porta fica a maior parte do tempo fechada aos outros, que se desenrola o drama da vida toda. É ali que moram nossas complacências para uso próprio; é ali o antro de nossas duplicidades e o armário onde nos abastecemos de desculpas para nossos atos. É igualmente ali que obtemos um novo prazo de graça, para poder percorrer o caminho que ainda nos resta cumprir”. Na véspera, lera Cioram e estaquei diante de uma frase seminal: “A inspiração de um escritor são suas vergonhas”. Viajar, viajar, viajar.

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Cheguei à Gare de Nord e fui perguntando. De repente, achei um local verossímil. Um ponto do estacionamento de carros que parecia morto; era como se o desuso o tivesse relegado ao transporte de ocasião, quase clandestino. Sequer flanelinha por perto tinha, o que era uma raridade. Devia ser ali, o único vazio virtual do metaespaço da estação. Cinco minutos de incerteza foram coroados com uma voz feminina cheia de atitude: “Vai para Sofia?”; respondi instintivamente em romeno “da” e começamos a conversar a sério em inglês. Era a doutora Patriicia Christodor, dermatologista de Timsoara, que estava na mesma expectativa. Teríamos ou não condução? Ela tinha um congresso profissional à espera. O motorista chegou pouco depois num carro novo, mas minúsculo. Entramos os dois e pegamos a estrada em direção ao Danúbio, fronteira natural dos dois países. Ela de vez em quando falava em resposta a uma pergunta que eu já dava por respondida. Pensei: é um padrão acautelado de quem já tinha 32 anos quando o Conducator foi deposto e fuzilado ao lado da mulher. O silêncio falava. Mas, no fundo, a voz dela funcionou como a narrativa sonorizada de um filme que se desenrolava à minha frente: igrejas ortodoxas no meio do nada, cercadas de sepulturas. No comércio, imensas coroas fúnebres apoiadas em cavaletes, dessas que vemos até hoje em cerimônias oficiais do Exército Vermelho.

Estava cansado, mas feliz. Saíra de Bucareste com tudo em dia. Era hora de curtir as paisagens. Na Romênia dessas bandas, tudo era plano, nublado e desolado. Na pista, jaziam cachorros atropelados. Nos campos de trigo, uma ou outra gralha. No céu, uma nuvem de pardais voejava para o sul em formação indecifrável. Apontei-a para meus dois companheiros de rota mais de uma vez, mas eles ficaram indiferentes. O que tinha de especial aquela cena banal? O motorista estava exausto e estimulei as paradas para um café. Ele pelo menos fumou fora do carro e lhe fiquei devedor dessa impagável gentileza. Então, na altura de Giorgiu, apareceu a enorme ponte.  Fronteira, minha paixão. Do outro lado, Russe, Bulgária. Um frêmito: era praticamente Roussef. Foneticamente, quase igual. Mas sabia que o pai dela era de Gabrov, não dali. O Danúbio nesse trecho é bonito e está próximo de terminar uma longa viagem de quase três mil quilômetros por oito países, antes de se jogar no Mar Negro. Entramos na Bulgária profunda e a paisagem foi mudando rapidamente. Borracharias e oficinas com letreiros em cirílico. Montanhas e chalés que lembravam a Eslovênia e fiapos de nuvens na boca dos túneis como se pedissem passagem para entrar. Mas, é claro, o calor dos carros as afugentava. Dormi com um olho só; o motorista estava fazendo o mesmo para dirigir, e isso me preocupava.

Patriicia, do banco de trás, de vez em quando recitava seus testemunhos em forma de mantra. É a mesma ladainha da geração: o comunismo foi duro, mas ninguém ficava desempregado. O capitalismo é a lei do mais forte. Ela mesma só precisava do hospital a que dedicava a vida; uma sopa à noite; uma cama quente e ver os filhos desabrochar. Recusou nos anos 1990 convites para ensinar nos Estados Unidos. Para que iria? Acaso precisava de uma garagem cheia de carros? O mundo estava doente e a satisfação imediata corrompia a juventude. Bem, pelo menos o sobrenome que trazia era a síntese da chatice de pessoa que era a Dra. Christodor, de 56 anos. Acho que o determinismo do nome lhe ditou as escolhas. Pena ter-lhe esculpido a autoimagem edulcorada, moralista e caga-regras. Enfim, nada de muito original, mas infantilmente distorcido. No fundo, Patriicia também era regida pelo padrão médio brasileiro pois ainda acreditava em governos. Ou pelo menos nunca se permitira pensar fora dessa moldura. Em outros tempos, acho que tentaria seduzi-la. Mas me fiz de desentendido com a pergunta dela sobre meus planos para mais tarde e me despedi com alívio daquela pessoa pesada. No centro de Sofia, dei 120 lei ao motorista e fui procurar um hotel, pois não reservara. Como reservar se não sabia se ia conseguir chegar? Mas já tinha feito o dever de casa e a memória me remeteria a caminhos de vinte anos atrás sem dificuldade.

Assim foi que consegui um bom quarto no hotel Arte dessa linda cidade, a noventa reais por dia e uma calefação central exagerada para os outonos repaginados que vivemos. Apesar disso, me sentia feliz e pouco tentado a viajar dentro do país. Como sair dessa cidade luminosa onde me apropriara do quarto amplo com tudo em seu devido lugar? Terno no armário; camisas dobradas; livros amontoados; o computador cintilando e uma sensação de ordem no ramerrão externo que me apaziguava a alma. Quanto mais não fosse para estudar os restaurantes de fora e escolher um. É que ali ao sul do Danúbio a civilização da batata e do trigo esmorecia visivelmente. E dava lugar aos tomates, às abobrinhas de bom calibre e, sobretudo, aos pimentões verdes e vermelhos. A coalhada já sabia mais ácida e a vizinhança com a Turquia se fazia notar em vários detalhes: os homens se entrelaçavam pelo braço nas calçadas e as mesquitas rivalizam com as igrejas ortodoxas. É cabeça com cabeça. Assim sendo, meu primeiro almoço foi na rua Vitosha que deve o nome à montanha que está para a cidade como o Etna para Catânia, na Sicília. Por outro lado, esperar a passagem dos dias sem implodir de solidão é de fato uma pequena arte. Mas pouco importava. Proeza mesmo para mim, teria sido sobreviver num lar de balbúrdias, reverberações e redundâncias. É certo também que exagerei de novo no exercício vão da autoanálise enquanto avançávamos.

Bem a propósito, lera naqueles dias o que Freud escrevera ao amigo Fliess sobre essa quimera: “Minha autoanálise continua suspensa. E entendi porque. Eu só poderia analisar a mim mesmo com conhecimentos objetivamente adquiridos – como faz um estrangeiro. A autoanálise propriamente dita é impossível, caso contrário não haveria doença. Como eu ainda estou lidando com enigmas em meu caso, isso tem forçosamente que interromper minha autoanálise também”. Consolemo-nos de que nesse mundo não existe mesmo a perfeição. No fim de tarde, a vista do quarto era o que havia de belo, apesar do calor. A avenida de pedras antigas que levava ao palácio presidencial resplandecia sob um sol outonal e as folhas amareladas se seguravam nos galhos pedindo mais uma noite de idílio. Enquanto isso, indiferente à poesia das palavras, o quarto esquentava exponencialmente. Verifiquei tudo e vi que não ligara a calefação por engano. Mesmo porque fazia um calor de quinze graus. Então, fui me queixar. A recepcionista respondeu que nada podia fazer. A culpa não era dela e sim do Controle. É que o hotel obedecia a uma programação já estabelecida – tivesse gente no quarto ou não. Então, pela segunda vez em uma semana, uma mulher fechou guichê sob meu nariz. Hoje rememoro tudo isso com saudades e embalado pelo desejo de que ainda possa fazer muitas travessias de fronteira como foi aquela.

Pois viajar é a ocasião mais nobre para entreter esses pensamentos amalucados. É trilhar o atalho seguro para acessar verdades tão determinantes como talvez só aquelas que brotariam de um divã ao cabo de anos.

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