Luciano Oliveira

Carta.

“Caro Luciano

Saudações!

Os leitores da Revista Será? manifestam uma saudade danada dos seus textos.

Eu também…..

João Rego”

Caro João!

 

Fico lisonjeado com a saudade dos nossos leitores (“Queremos Luciano! Queremos Luciano! Queremos Luciano!” [ahahahahah…]), e mais ainda com a sua.

 

O meu problema fundamental é a preguiça, João.

Por incrível que pareça, porque meus textos parecem fáceis, você não imagina o trabalho que me dá torná-los agradavelmente legíveis.

Não sou como Fernando, que senta na frente do computador e, de um jato, produz quatro, cinco, seis páginas esmeradas.

A simples localização na frase de um pronome oblíquo me ocupa uma, duas, três versões diferentes…

Um artigo de duas páginas, pra mim, não leva menos de três dias!

Enfim!

 

Lógico que assunto é o que não falta.

Muitas vezes provocado até por textos publicados na nossa Será?, onde entro semana sim, semana não.

Só um exemplo: as reformas trabalhista e previdenciária.

Imprescindíveis, se diz.

Imprescindibilidade mais de uma vez enfatizada por pessoas queridas como Sérgio, mas também Zé Arlindo, para não falar de outros colaboradores.

Nesses momentos sinto, quando leio, uma vontade danada de postar um comentário.

Mas aí vem a preguiça…

 

É um assunto sobre o qual gostaria de dizer alguma coisa.

Por exemplo: acho que a reforma trabalhista (em grandes linhas, essa que está aí proposta) é necessária e inevitavelmente virá.

(Lembra da famosa metáfora topográfica da base e da superestrutura do velho Marx?… Acho que é o caso.)

Como também acho que uma reforma previdenciária é necessária.

Mas, por incrível que pareça, no sentido inverso ao que está sendo proposto!

Isto é: não concordo que nesse assunto de previdência social podemos embarcar numa lógica atuarial…

Em todo caso, não devemos.

Explico-me.

A flexibilização, ou precarização, como preferem seus críticos, é um fato.

E a reforma trabalhista, inevitável, vem ao encontro disso.

Mas isso deve ser contraposto por uma lógica (aqui apelo para Durkheim) solidarista.

Se apelei para Durkheim, é porque ele, além de ter sido um conservador (imagine que ele queria, na Europa industrial, recuperar a ideia das corporações medievais…), foi um adversário do pensamento antimarxista. Assim, protejo-me do reproche de ser mais um marxista retardado que não tem mais nada a dizer hoje em dia…

 

Mas minha referência a Durkheim não se deve só a essas razões, digamos assim, estratégicas. Deve-se ao fato de que ele achava que um estado social em que as pessoas fossem regidas apenas por cálculos monetários e onde prevalecesse um isolamento dos indivíduos uns em relação aos outros, era (cito de memória) uma “monstruosidade sociológica”.

 

Da mesma maneira, poderia apelar para outro conservador, Ferdinand Tönnies, e seus conceitos, tornados clássicos, de “comunidade” e “sociedade”.  Sociologicamente (e ele sabia que não haveria retorno), vivemos numa sociedade, um tipo de organização em que prevalece a lógica do cálculo, do custo benefício etc. Para fazer frente a isso, para evitar que a sociedade se tornasse a expressão (cito mais uma vez de memória) de um “puro negócio”, ele propunha recuperar princípios da comunidade, uma organização social em que as pessoas estão ligadas por laços afetivos e morais.

 

É, outra vez, a ideia de “solidariedade social”, tão durkheimiana.

Um dia desses li um artigo (não sei mais onde, não sei mais de quem) em que o autor falava de um novo conceito, acho que algo rebarbativo como “flexicuritização” (um mistura de flexibilidade com securitização) que está sendo trabalhado por teóricos, se não me engano, daqueles países nórdicos. Fiquei contente. Senti que não estava pensando sozinho, que não estava sendo simplesmente mais um eclético ingênuo.

 

E o que a reforma da previdência tem a ver com isso?

Tudo.

A lógica atuarial (o que não quer dizer que ela deve ser abandonada de todo), aplicada implacavelmente a um assunto tão crucial como a proteção das pessoas depois de uma vida de trabalho, é, além de eticamente condenável, politicamente perigosa…

A insegurança (e sobre a segurança de ser um funcionário do governo há um episódio delicioso envolvendo ninguém menos do que Roberto Campos!), a insegurança, como dizia, é um bom ninho para a gestação de vários “ovos da serpente”…

Quando, meu caro João, leio, num registro um tanto crítico, o que se diz sobre o montão de gente que passou a vida trabalhando no cabo da enxada e que agora têm benefícios previdenciários sem terem contribuído para a previdência, sinto uma vontade danada de dizer alguma coisa!

 

Bem, por tudo o que escrevi (e, acredite, comecei a redigir esta resposta há dois dias… – o que me leva outra vez à história do quanto é penoso para mim escrever), por tudo o que escrevi, como dizia, sinto que tenho coisas a dizer.

Coisas que, eventualmente, constituiriam, digamos assim, uma vertente de “esquerda” na Será?, que atualmente vejo não existir.

Eu poderia ser essa faceta.

E até acho que ela seria bem recebida por pessoas como você e Sérgio.

Afinal, não sou nenhum carbonário.

Não sou nenhum leninista, guevarista, fidelista, chavista – ou coisa que os valha.

Até por temperamento, morro de medo da ideia de revolução.

Como certa vez escutei de alguém cujo nome infelizmente não guardei, “há guerras justas, mas não há guerras limpas”.

Vade retro!

Mas, como certa vez disse meu querido e admirado Lefort, “O comunismo pertence hoje em dia ao passado. Mas a questão do comunismo sobrevive ao seu naufrágio: ela permanece no coração do nosso tempo”.

Eu poderia, para anunciar minha “rentrée”, escrever algo por aí.

 

Mas e a preguiça?…

 

Abração,

 

Luciano