Clemente Rosas

JOCA VIRIATO E SUA DESCENDÊNCIA

Não cheguei a conhecer meu avô paterno, que morreu na casa dos cinquenta, e muito menos seu irmão Joca e meus primos, descendentes deste.  Mas fiquei sabendo alguma coisa sobre eles, através do meu pai.

Dos filhos do meu tio-avô, tivemos notícia de dois: Edson e Ananias.  Se houve outros, nunca soubemos.  Mas os três personagens já merecem um autor, embora as novelas não sejam necessariamente exemplares.

Sala de armas

Em seus últimos anos de vida, os filhos já tendo tomado destino, Joca Viriato vivia só, na modesta casa grande da Utinga.  Quando meu avô foi visitá-lo, um dia, perguntou se ele, com tantos inimigos, conquistados com suas brabezas e impetuosidades, não temia um possível atentado.  E ele:

– Aí pelos caminhos, pode ser que me peguem. Mas aqui dentro eu estou seguro.  Não me pegam não.

– Mas por quê? – perguntou meu avô.

Ele afastou a cadeira onde estava sentado, meteu as duas mãos sob a mesa em torno da qual conversavam, e puxou, de dois ganchos, um rifle papo-amarelo carregado.  Ergueu-se, virou a banda de uma janela, e lá estava outro, pendurado na parede.  Levantou a tampa de um baú da sala, e dali arrancou um terceiro.

Por esse dispositivo de segurança ou por destino, Joca Viriato não foi abatido pelos seus inimigos.  Morreu de morte morrida, como se costumava dizer no tempo.

Estafeta do Presidente João Pessoa

No tempo da Aliança Liberal, quando o Governo da Paraíba enfrentava o “Território Livre de Princesa”, comandado por José Pereira, apoiado pelo Governo Federal através da fronteira com o município de Triunfo, em Pernambuco, o posto avançado das operações da Polícia Militar estava instalado em Piancó.  Para comunicar-se com essa frente de combate, o presidente João Pessoa não confiava na repartição de correios, serviço federal e, portanto, suspeito.  Contratou, como estafetas, dois motociclistas, equipados com possantes Harley Davidson, e com juventude e disposição para encarar o longo percurso da capital até o sertão, num tempo em que simplesmente não havia estradas asfaltadas na Paraíba.  Um deles era Edson, o filho mais velho de Joca Viriato.

Numa das viagens, em noite sem lua, com o farol da motocicleta danificado, ele continuou, guiando-se apenas pelo esbranquiçado da estrada.  Bateu num obstáculo e desmaiou, acordando apenas em leito de enfermo.  Tinha colidido com uma vaca, dormindo atravessada no caminho.

O segundo acidente, que lhe foi fatal, ocorreu no Recife, onde hoje está a Avenida Caxangá.  Chocou-se com um veículo pesado.  Não teve a glória de morrer em serviço.

As caçadas de Ananias

Seu irmão mais novo, Ananias, foi personagem de histórias pitorescas, que começam quando ainda era menino, e insistia em ir caçar com o irmão mais velho.  Naquele tempo, toda a região no entorno de João Pessoa era coberta por densa mata atlântica, só interrompida pelos limitados plantios de cana dos engenhos, nos vales.  E a fauna era copiosa, com destaque para os porcos do mato, que andavam em bandos e eram caçados à noite.

Em seus percursos, os caititus formavam trilhas dentro da mata, o que facilitava a ação dos caçadores.  Colocava-se alguém numa “espera” bem disfarçada, e batedores, dando um giro, provocavam o deslocamento do bando na direção desejada.  Para atender aos pedidos de Ananias, sem expô-lo a riscos, Edson deixou-o numa espera em trilha que supunha já abandonada.  Mas, para surpresa dele, foi por ela mesmo que os porcos selvagens enveredaram.  Fato consumado, Edson, à frente dos batedores, gritava:

– Sustenta o dedo, Ananias!

Mas, sem se ouvir qualquer estampido, a caça passou incólume pela espera.  E Ananias não estava à vista.  Só quando, afinal, o encontraram, em cima de uma árvore, é que tiveram a explicação do caçador neófito.

Quando o bando se aproximava, ele havia olhado para o cão da espingardinha soca-soca, percebendo que a espoleta de papel estava fora do lugar.  E logo na frente do bando, que batia ferozmente os queixos, vinha uma porca velha com os filhotes, já de boca aberta para mordê-lo.  E ele recorrera à fórmula segura para se fugir a um ataque de caititus, queixadas ou javalis: subir em um “pé de pau” qualquer, nem que seja um simples arbusto.

– E a espingarda? – perguntou Edson.

– Sei não.  Sacudi fora…

 

Anos mais tarde, porém, já experiente, pôde Ananias reabilitar-se, na caça de outro espécime valioso: o tatu.  Este se pegava também à noite, mas cabendo ao cachorro farejá-lo e persegui-lo até a entrada do buraco.  Se o caçador não fosse rápido, arrancá-lo dali, puxando pela cauda, era tarefa penosa, só facilitada por método cruel e degradante para o tatu, que me dispenso de explicitar, neste relato.

No caso aqui focado, perseguindo o bicho, Ananias adiantou-se ao companheiro que carregava o facho, e, na obscuridade, caiu de joelhos na boca da toca.  Ao chegar segundos depois, e iluminar a cena, o parceiro, que já era gago, teve a língua ainda mais travada:

– Seu Na-ni… se a-levante que de-debaixo do seu “juêio” t-tem uma cobra!

De fato, era o que acontecia.  Felizmente, o joelho de Ananias prendia a cobra perto da cabeça, o que lhe permitiu livrar-se dela, com um golpe de facão, antes da mordida.

Caçada humana

Ainda quando rapaz, Ananias notou que, em suas caminhadas de retorno ao engenho, estava sendo seguido por dois desafetos, que aparentemente procuravam um local adequado, sem testemunhas, para atacá-lo.  Dirigiu-se ao pai, pedindo dinheiro para ir-se embora da Paraíba e livrar-se, assim, da perseguição.  A reação de Joca Viriato foi nos estilos:

– E você não é homem não?

Apanhou um dos seus rifles e lhe entregou.

– Tome isso aqui e se defenda.  Não tem que fugir de ninguém.

O filho seguiu à risca o conselho.  Na primeira oportunidade que se apresentou, fingiu não estar percebendo a perseguição, saiu momentaneamente das vistas dos perseguidores numa curva do caminho, pôs-se em tocaia, e a caça virou caçador: acertou os dois.  Em seguida, assustado com o que havia feito e sem poder avaliar os resultados, meteu o pé no mundo, varando, à noite, as matas entre Utinga e Marés, até sair, no outro dia, na terra do seu tio Mateus.  Mas meu avô, experiente naquelas coisas, observou:

Se vierem lhe procurar, este vai ser o segundo lugar aonde vão vir.  Aqui você não pode ficar.

E arranjou outro coito para o fugitivo.

Epílogo

Os descendentes dos senhores de terra do Nordeste, quando não orientados para a formação acadêmica, podendo passar à condição de doutores – profissionais liberais ou políticos – tendiam à decadência.  A terra se dividia, não sendo mais suficiente para todos viverem dela, e os herdeiros acabavam por vendê-la, em retalhos, consumindo-se na bebida, amparando-se num empreguinho público de baixo nível, ou afundando na miséria.

Foi assim que meu pai, então diretor de uma repartição pública estadual, foi procurado por Ananias, já reduzido a obscuro servidor público, de quem ele sequer tinha notícia.  A razão era a seguinte: separado da esposa, ele havia sofrido um desconto em seus vencimentos, à conta de pensão alimentícia determinada pelo juiz.  E não queria dar dinheiro à ex-mulher, em nenhuma hipótese.

Meu pai o fez ver que teria de cumprir a ordem judicial, não havia alternativa.

– Mas eu não quero dar nem um tostão àquela desgraçada.  O que é que eu faço?

E meu pai observou:

– Só tem um jeito: peça demissão.  Aí a coisa fica entre você e o juiz.

Pediu demissão no ato, e desapareceu.  Nunca mais meu pai teve notícia dele, ou de seus parentes.  A bruma do anonimato, do esquecimento ou da morte encobriu a todos.

Marés, retalhada e ocupada, converteu-se em bairro pobre de Bayeux.  E Utinga, hoje, é menos que um retrato na parede, como a Itabira de Drummond.  Ficou reduzida a   placa indicativa à margem da rodovia Recife/João Pessoa, que nem sei se ainda existe.