Clemente Rosas

Olhar de mulher negra.

Megeras, miseráveis e bufões

Chico Gaioleiro, assim chamado por fazer gaiolas de passarinhos, é o primeiro dessa lista de infelizes.  Com grave doença, não sei se hepática ou renal, era acometido de hidropisia, e se apresentava, com o ventre tão inchado que mal podia andar, ao meu tio, pedindo dinheiro para drenar o líquido num precário posto de saúde. Era de se esperar que não durasse muito.

A mulher sem rosto nem nome tinha.  Era a mais chocante dos mendigos que circulavam na feira de Cabedelo, para onde minha tia, às vezes, me levava como acompanhante, vestida com traje social, joias e sapatos altos, e escoltada por um empregado, que puxava um burro com dois caçuás, para trazer as compras.  A pobre criatura cobria o rosto com um pano, só deixando aparecer dois olhos aflitos, margeados por profundas olheiras.  E se o estender de mão para a esmola não fosse gesto suficiente, afastava o pano, e expunha a sua desgraça. Não se podia mais dizer que tivesse uma face: não havia lábios, nem nariz, nem dentes, só língua, e a úvula tremelicando no fundo da garganta.  Era uma caso dramático, penso eu, de “ferida braba”, a leishmaniose, que a atacara no rosto, e não nas pernas, como era mais comum.  Uma cena de horror, como poucas vi na minha vida.

Curimbaba, na língua tupi, quer dizer força, valentia, valor.  Mas a negra referida como tal não tinha nada disso, apenas a feiúra e a extravagância. Quando adentrou, uma única vez, o terraço de nossa casa, fiquei transido de pavor.  Vestia andrajos coloridos, e ostentava fitas, também multicores, na carapinha.  Ressalvando o que minha imaginação de criança assustada pode ter acrescentado à cena, fumava, ao mesmo tempo, uns três cigarros, e tinha outros tantos enfiados nas narinas e nos ouvidos. Com uma esmola, resmungando um agradecimento incompreensível, retirou-se.

Varjão tinha o nome do bairro humilde de João Pessoa de onde se supunha ter vindo.  E nada mais tinha.  Era um débil mental com uma postura entre ereta e agachada, que caminhava balançando-se e virando a cabeça para os lados.  Não tinha casa, nem roupa, apenas um calção velho.  Dormia em qualquer lugar e comia o que lhe davam.  Andou rondando uma “república” de jovens veranistas boêmios, a “Vereda Tropical”, onde mereceu algum acolhimento: restos de comida e um tratamento rústico, na base da faca, às suas crostas de “bichos de pé”.  Em retribuição, aceitou desfilar como baliza, à frente de uma troça carnavalesca formada pelos rapazes, com um chapéu feminino, de abas largas e arranjos florais, metido na cabeça.

Peixe Cachimbo, preto velho raquítico e alcoólatra, teve sua alcunha inspirada no mais feio e grotesco dos habitantes do mar: uma criatura quase pré-histórica, difícil até de se descrever.  Postava-se ao  lado do campo de voleibol onde jogávamos, lábios esbranquiçados de baba, cantando uma melopeia indecifrável.  Por molecagem, nós o fazíamos inserir na cantoria referências aos companheiros de jogo.  A principal vítima era um moreninho simpático e brincalhão, que chamávamos de Quinca Macaco. E Peixe Cachimbo entoava:

– Vem cá, meu filho Quinca!…

Profissionais

Calão ao ombro, suspendendo dois pesados balaios, o vendedor de bananas vencia o areal, sob sol escaldante, para oferecer o seu produto nas casas dos veranistas.  Seu pregão era abafado, como se viesse do fundo de um túmulo:

– Banana maçã madurinha!

Parava à sombra dos fícus das nossas casas,  arreava o calão e respirava fundo.  Creio que só se fixou na minha lembrança porque, com mais idade, compreendi a injustiça que lhe fazia em pensamento.  Achava o seu pregão fraco, ridículo, e sequer imaginava a razão disso: o pobre velho, esquálido e mal nutrido, não tinha forças para, ao mesmo tempo, carregar os pesados cestos com bananas, e apregoá-las.

Seu Tempero era tirador de coco, uma profissão hoje quase extinta.  Vi-o trabalhar várias vezes, derrubando os frutos e limpando os coqueiros do meu tio. Nessa atividade, o principal problema é a eventual presença, nas palmas dos coqueiros, de casas de maribondos, porque não há possibilidade de fuga rápida, por parte do tirador.  A “peia” que o prende ao tronco –  formada por duas correias de couro trançado (hoje, cabos de aço), uma terminando em estribo para o pé esquerdo, outra com uma alça para envolver a coxa direita, movimentadas alternadamente pelas mãos – não permite um deslocamento rápido, seja para subir ou para descer.

Mas, no caso do seu Tempero, não havia dificuldade, e isso explica o apelido.  Suarento e coberto da poeira escura dos coqueiros, cruzava os braços, passava as duas mãos nos sovacos, e agarrava com elas (bem “”temperadas”) a caixa de maribondos, esfarelando-a.  As vespas, estonteadas, não o atacavam.  Fui testemunha ocular disso.

O último de minha lista, o carpinteiro Vicente, entra nesta história na condição de coadjuvante.  O protagonista não tinha mais que cinco anos, e acompanhava o seu trabalho à sombra dos fícus, serrando peças de madeira.

– Já vai, seu Francisco?

– Vou almoçar. Vamos?

O velho quis ser gentil, mas não esperava a resposta.  Concordei prontamente, e incorporei ao programa uma mulatinha, filha da empregada de minha avó:

– Vamos, fulaninha?

E saímos os três por uma trilha ao pé da grande duna ao lado das casas, até a choupana do carpinteiro.  Lá, o pobre homem me ofereceu o que tinha: umas bananas de casca já escura, que não me interessaram.  E já sentia um desconforto difuso, à beira do choro, dentro da palhoça abafada, sombria e cheia de moscas, enquanto o meu anfitrião comia a sua farinha, para me levar de volta.

Mas fui, antes disso, resgatado por um pelotão de parentes, agregados e serviçais quase em pânico pelo meu desaparecimento.  Por já não suportar a areia quente do caminho, voltei carregado.  Acusado de evasão e sequestro, escapei do castigo: o susto havia sido grande demais para os meus familiares.

À guisa de fecho

Não me arrisco a especular sobre como figuras tão diversas contribuíram para a formação do meu espírito.  Como escreveu Humberto de Campos, cronista de grande conceito nas primeiras décadas do século passado, as almas humanas são poços insondáveis, abertos na sombra.  A psicanálise arrisca um olhar sobre essas profundezas, mas sem nunca poder provar suas hipóteses. Não tenho, pois, conclusões a apresentar, e, recorrendo a outro imenso cronista, mais moderno – Rubem Braga – chego apenas ao fim da minha crônica.

Tive uma infância e uma adolescência bem divertidas, e isso é tudo.