Sérgio C. Buarque 

A maioria dos críticos de cinema, não só no Brasil, considera o filme “Aquarius” de Kleber Mendonça Filho uma obra prima. Opinião compartilhada por Teresa Sales em artigo recente publicado na Revista Será? (“Aquarius”, 14 de outubro). Lamentavelmente não consegui sentir nem perceber tanto encanto e beleza no premiado filme. Como simples espectador, diria apenas que achei o filme bom, talvez mesmo médio, nada espetacular, melhor que o “Som ao redor”, é verdade (aliás, não gostei nada deste primeiro sucesso de Kleber Mendonça), porque tem um roteiro consistente e envolvente. O filme desperta uma grande simpatia pela personagem central na sua luta contra a especulação imobiliária que recorre a métodos desonestos e violentos para expulsa-la do seu apartamento. Simpatia fácil de conquistar na medida em que se trata do combate da solitária sexagenária contra os poderosos capitalistas. No geral, o filme é interpretado como uma representação do conflito urbano em torno do uso e ocupação do solo, a disputa entre a especulação imobiliária que descaracteriza a cidade e a conservação do bairro expressa na preservação do velho edifício. Mas Clara, a proprietária do único apartamento que a construtora não conseguiu comprar, não se mobiliza pela consciência social ou por uma preocupação com a qualidade do espaço urbano como o movimento “Direitos urbanos”. Sua resistência é estritamente pessoal e reflete seus próprios valores e interesses individuais: continuar vivendo no espaço cheio de recordações onde construiu sua vida e criou seus filhos. Neste sentido, a guerra entre Clara e a construtora seria uma briga entre o direito da cidadã pelo seu espaço pessoal e o propósito comercial da empresa. O interesse coletivo não está presente na sua corajosa e teimosa resistência. Nem o interesse do restante dos ex-proprietários e ex-vizinhos que decidiram vender seu imóvel, com seus próprios interesses (tão legítimos quantos os de Clara), menos ainda os interesses coletivos da cidade numa eventual conservação de um patrimônio arquitetônico.

Aparentemente o edifício Aquarius não teria (na ficção) este valor arquitetônico ou histórico; em 2003, o Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural rejeitou proposta de tombamento do edifício Oceania que serviu de inspiração para o filme. Mesmo que se tivesse este valor não parecia interessar a Clara levar sua luta para um terreno mais amplo dos interesses coletivos da cidade. O filme tem, assim, o mérito de não mistificar Clara como uma militante dos direitos urbanos. Não permite, portanto, que se interprete a postura de Clara como a defensora dos direitos da cidade contra a perversão destrutiva da especulação imobiliária. Embora o eixo central do filme seja a briga de Clara com a construtora (a velha disputa do bem contra o mal), o conflito principal é outro: da senhora que se recusa a vender e se mudar do imóvel com os outros proprietários que preferiram, por suas conveniências também individuais, vender seus apartamentos. Uma operação comercial simples, venda de um apartamento, se transforma numa grave querela porque todos eles venderam seus imóveis a um único proprietário, no caso a construtora, e não receberão os valores enquanto não tiver sido construído o novo prédio; afinal, a construtora está interessada mesmo é no terreno à beira mar. O que é impedido pela resistência de Clara, seu direito legítimo contra o direito igualmente legítimo do restante dos ex-proprietários. A divergência de interesses se manifesta na agressividade de um jovem ex-vizinho, aparentemente expressando um sentimento do conjunto, em discussão com a teimosa e saudosista senhora.

O interesse coletivo da cidade não aparece em nada no filme. Seja porque o edifício Aquarius não tinha valor arquitetônico, seja porque Clara não estava absolutamente preocupada com a questão urbana. Embora o filme não aborde este conflito urbano, vale à pena refletir sobre as características urbanísticas e sociais de Boa Viagem, um dos mais ricos e modernos bairros do Recife utilizado pelo cineasta como locação para Aquarius. Para o bem ou para o mal, queiramos ou não, Boa Viagem não tem nada mais a ver com o aprazível bairro de casas e pequenos e antigos edifícios dos anos sessenta que guardariam a memória e a história da cidade, sendo Aquarius um dos últimos representantes deste passado. A “força da grana que ergue e destrói coisas belas”, como dizia o poeta Caetano Veloso, já mudou radicalmente o desenho do bairro. Com uma ressalva: esta força da grana não está apenas, nem principalmente, nas construtoras com o seu afã de ganhar dinheiro; ela reside, antes de tudo, numa emergente classe média e numa nova burguesia com dinheiro suficiente para comprar apartamentos caros que lhes permitem usufruir da beleza da praia e da vida urbana adensada. Apesar de algumas prováveis violências arquitetônicas, a mudança urbana de Boa Viagem permitiu uma ampla oferta de habitação e a formação de uma orla de grande beleza urbana (e arquitetônica), das mais belas do Brasil. Cabe à sociedade (cabia mais ainda no passado), através das instâncias de regulação urbana, definir as regras e os parâmetros para ocupação do espaço que permitam o adensamento urbano sem desorganização do espaço nem a degradação edificações do patrimônio de valor histórico ou arquitetônico. Com todas as deficiências da regulação e possíveis distorções urbanas, o crescimento de Boa Viagem nas últimas décadas transformou o bairro numa quase cidade média adensada com as suas incontestáveis vantagens para a vida urbana. Os entusiastas do filme Aquarius provavelmente vão discordar desta reflexão sobre Boa Viagem e os resultados positivos do adensamento. Mas podem dizer com razão que a mesma foi estimulada pelo instigante roteiro do filme, pelo que está explícito e pelo que deixa à especulação dos espectadores.