Fernando Dourado

Banana flambada com sorvete de creme.

1 – Pedir desculpas pela objetividade, e muitas vezes pela contundência, é o que manda a boa norma. Mas a marca identitária paulistana aflora quando o sujeito alega que a rudeza de modos advém do fato de que trabalhou no mercado financeiro, onde tudo é “pão pão, queijo queijo”.  Assim, além de cortar o interlocutor no meio da fala, atribuir-se uma origem ligada à mesa de operações e à dissecação cirúrgica de planilhas e apresentações, confere ao dito cujo uma aura de onipotente, de portador de dons prodigiosos. Ademais, se foi um operador, e agora não é mais, está implícito que fez muito dinheiro e, como ele mesmo dirá, só saiu “do mercado” para ceder às pressões da família. Ou seja, aposentou o instinto matador em prol da felicidade. “Só não sei até quando”, falará como um adicto em recuperação.

2 – Fingir espanto com o tamanho descomunal da sobremesa é a cara de São Paulo. Assim sendo, mesmo as mulheres que estão acostumadas desde a infância àquelas colossais bananas flambadas com sorvete de creme, ou com fatias gigantescas de torta de queijo com calda de goiaba, dizer “nossa, que grande, não sei se vou aguentar isso até o fim”, é chique e esperável. Ai da mulher que não o disser. Seria tão grave quanto uma gueixa que não cobrisse a boca com a mão em concha ao sorrir. Um desavisado que só tivesse acesso ao áudio, pensaria, a deduzir pelas palavras, que ela está na iminência de ter uma relação sexual de algum risco, o que não deixa de ser verdade. Cumprido o ritual do falso espanto, a paulistana vai comer com prazer, lambendo a colher em momento de indefesa sensualidade.

3 – Excusar-se porque pigarreou profusamente, ou “limpou a garganta”, como dizem os americanos, é um cacoete local. Pensando bem, nada há de tão grave nisso, levando em conta que se vive numa das cidades mais poluídas do mundo. Mas é típico do paulistano demorar-se em pedidos de desculpas inócuos. Tanto por uma interrupção involuntária da fala alheia, quanto por um espirro ou mesmo por mero pedido de informação. Criar formalidade em torno de filigrana e dar prova de uma sensibilidade exacerbada, “pega bem”. É igual a desejar Feliz Ano Novo em pleno fevereiro. Só se for o ano chinês, há de se pensar. A dissonância cognitiva eclode quando esse mesmo cidadão, palmeirense inveterado, desancar um corintiano com um palavrório quase tão chulo quanto o que ouviria se a situação fosse a inversa.

4 – Imitar o sotaque caipira e falar “bão” no lugar de bom ou enroscar-se nos “erres” em “a porrrca de tão gorrrda não passa pela porrrta” é considerado muito engraçado. Parisienses fazem isso com o sotaque marselhês, aliás, e logram o mesmo efeito na audiência. Também é comum que adultos imitem as construções mal-ajambradas dos imigrantes, especialmente ao espezinhar o subjuntivo: “Você quer que eu compro o jornal?” Outro clichê inelutável é indicar, por redundância, a quem se destina um pedido: “Cê poderia trazer um frango a passarinho bem sequinho para nós?” Ora, para quem haveria de ser? E o suburbano acha lindo acrescentar ao pedido um estranho fazendo o favor. “Cê traz uma cerveja bem gelada, fazendo o favor?” É uma cafonice que demonstra respeito e polimento. Acredite se quiser.

5 – Não perder o rebolado ao ver uma criança horripilante de feia num carrinho de bebê, é uma arte difundida nas ladeiras dos Jardins. Então, assustadas porém finas, elas dirão: “Nossa, como ela já está grandinha, não? Logo será uma mocinha”. É de praxe também confortar os pais daqueles adolescentes insuportáveis, quase homicidas: “Ah, aproveitem o máximo essa fase. Passa tão rápido, viu? Logo vocês terão saudades, as companhias serão outras”. É recomendável também, mesmo ao som dos berros de uma criança no avião, frustrada sua enésima tentativa de ler um parágrafo, dizer aos pais: “Fiquem tranquilos, nós todos aqui na cabine já passamos por isso. Deve ser só uma dorzinha de ouvido, vai passar”. É a quintessência do bom-mocismo e poucos se furtarão a esse cabotinismo que só agrava o que está ruim.

6 –  Abrir um sorriso de aeromoça diante da tragédia iminente para manter as emoções represadas, é cláusula pétrea do convívio urbano. Você vai à porta da UTI onde o amigo está por um triz. Dez minutos antes de ele morrer, a irmã insistirá: “Ele está ótimo, foi só um susto, ele está aqui há dois meses, mas logo terá alta. O resto da recuperação será em casa”. Então surge alguém e diz que o fulano morreu. “Chato, não?” ela dirá. Chato, minha senhora? Só isso? No terreno da empostação vocal ou de sentimentos, dar voz ao cachorro como debiloide tatibitate é “cool”: “Diga pala titia que vochê vai agolapassear no parque”. Ou falar com filhos sobre os próprios pais como eles faziam aos 3 anos: “Por que você não liga para o vovô para convidá-lo?” Não é nem para seu avô nem para meu pai. É para o vovô, bem regressivo.

7 – Chamar as pessoas pela primeira sílaba do nome é o máximo da fofura. Então Suzana vira Su, Marília vira Ma e Denise vira De. Denota carinho, proximidade. O pior é que até bissílabos precisam ser agraciados com o mimo. Então força-se a barra a pé de cabra: Iara vira Iá, Ada vira “Ahh” e Ida vira só “Ihh”, todos alongados. As formas participiais também podem ser mutiladas: “A estrada estava tão boa que, não fosse pela chuva, poderíamos ter chego mais cedo”. Sem se dar conta, podem dizer, com toda naturalidade: “Você precisa confiar ni mim“. E não se espante se chamarem carnes – ave, pescado ou bovina – de mistura. Eis um mistério que nunca esclareci. É tão nefando quanto ser chamado de tio por garotos estranhos. “Dá oi pro tio, lindão”. Rebata delicado: “Ele sabe que não sou tio de porra nenhuma”.

8 – Chamar nordestino de nortista decorre quase sempre de ignorância, mas pode ser intencional, na tentativa de nivelar por baixo: “Eles são animados assim porque são lá do Norte, parece que da Paraíba”. Se é nortista quem vem da Paraíba, o que dizer de quem vem do Amapá, madame? “Ah, não são vizinhos? Desculpa viu, é que para mim dá tudo na mesma”, então cora e ri ao mesmo tempo. Para compensar o “faux pas”, diz que sabe que carne de sol é uma variante da carne seca e que tem que ser muito bem curada porque as moscas podem por ovos nas mantas. E, para deitar erudição, demonstra que sabe que “no Norte”, aipim é macaxeira e abóbora (ou moranga) é jerimum. Se bem ilustrada, dirá que tangerina, no Sul, é bergamota. E com isso terá dado ampla contribuição às letras nacionais.

9 – Dar prova de encapsulamento étnico, quase tribal, significa saber demarcar territórios e poupar os seus de contaminações indesejáveis. “Onde estão Maria e João?” “Eles não foram convidados, a festa é só para a família”. “Mas vocês são amigos há 30 anos…” “Eu sei, mas eles não são da família”. “E aqueles delinquentes que estão trôpegos ali no canto?” “Ah, eles são amigos das crianças” “Estes então são admitidos? Colegas de classe que são hoje e não serão amanhã, tudo bem. Mas João e Maria, depois de 30 anos de amizade, não valem tanto quanto ser da mesma escola de sua filha?” Então ela emudece porque a fonte secou por falta de argumento. Então, para desviar o foco, diz: “Você viu que tivemos as 4 estações do ano hoje? Nossa! Saí de malha logo cedo e ao meio-dia estava pingando”.

10 – Reforçar que são ignorantes politicamente (como se fosse preciso), é um clichê bem disseminado por todos os bairros. “Para mim, político é tudo igual, viu”. Nesse contexto, muitos atribuem os males do País aos políticos ditos do Norte. Não obstante, dizem com orgulho não lembrar em quem votaram na última eleição. “Acho que foi no Maluf. Pelo menos ele faz, né?” Falando em política, é importante saber botar aspas na entonação da palavra para mostrar que ela é alheia ao universo eclético do cidadão. João Doria, por exemplo, que agora está Prefeito, faz isso com frequência: “Estamos aqui entrevistando o diretor da empresa que faz chapinhas para estirar cabelos, não é isso? Explica então pra gente o que é mesmo uma chapinha?” Um certo ar de nojo não impede que embolse o cachê do merchandising.

11 – Dizer que vai passar as festas no clube porque odeia viajar e a aviação não é mais o que foi, é conversa típica de dezembro. “Só tem baiano no avião, ô meu. Melhor ficar aqui, a cidade vai estar tranquila, não tem fila para cinema, teatro ou restaurante”. Na verdade, ele não vai a nada disso, só se for em começo de namoro, o que não acontece desde os anos 1990. A vida do sessentão consiste em pendurar a conta no bar do clube de que o pai é sócio. Aliás, quando este bater as botas, a primeira coisa que ele fará será vender a casa, e talvez o título do tal clube, para investir numa pousada no sul da Bahia. Torcer pela morte dos pais (“sem sofrimento, é lógico”) é uma constante nessa tribo integrada por homens que, apesar de crescidos, se confessam chocólatras, coisa impensável alhures. São bezerrões.

12 – Comer um virado com torresmo, couve e arroz branco, e nele reconhecer o sabor rústico da culinária bandeirante com um prolongado “hummm”, é uma imagem de marca. No fundo, paulistanos estranham condimentos ditos fortes (forma genérica de se referirem a wasabe, malagueta, raiz forte, limão, cominho, gengibre, coentro, salsão, aji e pimentas em geral), e se sentem mais em casa longe dos peixes e crustáceos. Chamam picante de ardido e isso pode descaracterizar culinárias inteiras como a japonesa, tailandesa e peruana. No afã de agradar os clientes, os cozinheiros colocam  o nefando “cream cheese” em tudo. Ou abacate. Apesar da profusão culinária da capital, o paladar não desgruda de certo conservadorismo e famílias inteiras podem sustentar um lugar decadente pela força do hábito e da fidelidade.

13 – Trabalhar para um nome pessoal que simbolize uma grife de sucesso é um subterfúgio quase sempre convincente de que charme se transfere e conhecimento também. Mas não é assim que as coisas funcionam na vida real. Dizer que “trabalho para o professor Delfim Netto”, não significa que você tenha elementos para argumentar sequer com um estudante de economia mais preparado. Significa que a rede do medalhão é tão grande, e tão provinciano é o mercado da inteligência em que este reina, que ele pode retalhar trabalhos para diversas equipes que, tão somente, vão levar-lhe de volta informações de cozinha com as quais ele continuará a alimentar essa mesma rede. O economista citado ganha a vida há seis décadas com a vaidade alheia, anabolizando a grife, indiferente aos crassos erros passados.

14 – Engolir o maior absurdo numa sala de reunião e não reagir a tamanho diatribe é de bom tom entre os bem nascidos. “Não quis passar por indelicado”. Pouco importa que você lembre que, por cortesia, Rimbaud dizia ter perdido a vida. Em momentos de euforia, é comum que o paulistano ria da própria piada, que, em vão, tentará contar. Digo tentará porque não consegue, tamanho é o sorriso que o sufoca. Diverte-se também em demonstrar que já não consegue guiar pelas ruas onde cresceu e que precisa acionar um aplicativo para ir comprar o pão na esquina da infância. Aqui muitas mulheres se esbaldam diante das bravatas de um homem que se apresenta como irreverente, como valente (sem ser violento) ou mesmo infantil, na linha do bufão. Em outras plagas, elas os ignorariam.

15 – Repudiar em bloco quem fala mal da cidade integra o dever básico de todo paulistano. Aqui estão incluídos os que têm em São Paulo sua terra de adoção, o que equivale a metade da área metropolitana. E, na verdade, se alguns destes se aventuram a eviscerar a cidade, como fez este escriba, e, além do mais, a dizer que têm muitas saudades da terra de origem – seja ela no Brasil ou lá fora -, a pergunta que ouvirá não mudará: “Porra meu, por que você não volta pra lá então, já que é tão bom?” Em suma: como os parisienses, os paulistanos até toleram que se fale mal da cidade. Mas essa prerrogativa é estrita dos que aqui vivem já há algum tempo. Haverá baixa simpatia a apupos de mal-agradecidos. No último dia 25 de Janeiro, aliás, São Paulo completou 464 anos. E, ela sim, acreditem, continua linda, meu.