Luiz Alfredo Raposo

Karl Marx by Haus Tafel.

Ils n’ont rien appris ni rien oublié

Abade Talleyrand, sobre os Bourbons

Na juventude, nos anos 60/70, conheci, conhecemos o charme da Revolução. Depois, não só escapei a ele, como aprendi a lhe ter horror. Mil vezes a ideia mais antiga do natura non facit saltus. Mas a outra é teimosa e está vivinha, ainda que pelo avesso, na pulsão de moralizar geral a política, na impaciência de “passar a limpo”, que tomou conta do Brasil pós-Lava Jato.

Anoto, porém: se o Marx economista e profeta que nós amávamos perdeu o encanto, é inegável a perenidade do Marx sociólogo. Aquele que via a política como “peça da cumeeira” e a moral, como um produto de classe (e taí o multicondenado Lula: deus do povão…). E detectava na moral “classe média” (a “beatice pequeno-burguesa”,  alvo de suas diatribes) um enorme potencial de reacionarismo. E é essa beatice que dá combustível à atual onda moralista. Como sugerido, contrarrevolucionária: revolucionária na filosofia da tábula rasa e reacionária, se não nas intenções, fatal e tragicamente nos resultados. Na República de Weimar, também intelectuais e povo estavam até aqui com política e políticos. Enojados do jogo parlamentar. Deu no que deu…

O que é de pasmar é ver gente progressista, que vem da esquerda, parecer esquecida de tudo o que leu e aplaudir as razias moralistas contra a “classe política”. Ingressou na beatice, convenceu-se ligeiro demais, não só da culpabilidade de alguns, mas, acima de tudo, do caráter inerentemente sujo do próprio “modo de fazer” política democrático-liberal. Um sujo a priori, independente de circunstâncias, alternativas e resultados. Feito sujo de TOC… Mais produtivo seria fazer a tais movimentos um contraponto dialético, que pudesse orientar-lhes o ímpeto, tornando a indignação funcional em vez de disruptiva. E que teria (o contraponto) por diapasão os resultados concretos que o salafrário do governo e o salafrário do Congresso estivessem entregando…

Mais: parte da intelligentsia encampa a ideia moralista (obviamente cara aos togados) do judicial como a via maior para o combate à corrupção. Quando este depende muitíssimo mais de instrumentos sistêmicos, preventivos, tais como adotados em outros países, nas áreas pública e privada (bancos e corporações). Pleitear, aí, primazia às armas do Judiciário (feito para agir depois do ilícito) é o mesmo que querer pilotar pelo retrovisor. Se o fazer político atual contém vícios, a conclusão deveria ser da urgência de melhorá-lo, acentuando a componente preventiva. A visão prospectiva. A desatenção com a estrada à frente, com o preventivo, mata no berço, como agora, a pressão social  por medidas do gênero (pressão que, dada a natureza das medidas, deveria partir dos intelectuais). Algumas, como o seguro-garantia obrigatório para obras públicas, dormem numa gaveta do Congresso.

Na mesma linha, vem, e vejo apoiada com ligeireza por grupos progressistas, a corrosão do Direito como Forma prefixada, de vigência geral e duradoura. Fato parecido (não falo de grau) com os de que alguns, no passado, foram vítimas, essa corrosão se detecta em coisas como as prisões preventivas indefinidas (“ah, fazer cantarem os passarinhos…”), a sedução por uma espécie de “Direito da convicção”, sem cerimônia com o protocolo probatório sancionado, a tendência a criminalizar antes da lei (caso do caixa 2)…  Por fim, uma onda de grilagens de competência constitucional contra o Legislativo (como a Blitzkrieg pelas “10 Medidas”) e, mais recentemente, contra o Executivo (neste 2018, anulação do corte de reajuste do funcionalismo, impugnação de uma ministra nomeada etc.). Sem falar na armação (depois desvendada, mas a que custo!) de agentes públicos associados a um empresário delinquente contra ninguém menos que o presidente da República. Tentaram induzi-lo à prática (ou confissão) de crimes. Isso, sim, um crime.

Essas violências, vendidas como ações para “salvar o país” de seus representantes eleitos(!), que maravilhas produziram? Pelo menos duas: 1) provocaram um enorme estrago na capacidade operativa do governo. Em particular, a última inviabilizou para já uma providência vital, como a reforma da Previdência. 2) Estão sendo decisivas na montagem de um cenário escuro para as próximas eleições presidenciais. Fazendo o país provavelmente vir a ter de optar entre candidatos da antipolítica: um, dos que não estão nem aí para moralidade em geral; e outro (jair, jejuno ou algum “bufão varrido pela dor”), dos que não estão nem aí para política. Já vimos ambos os filmes. Nenhum deu final feliz.

Em resumo: sei que, no momento, a política subordina, mais que a economia, a vida do país. Por isso, deve ter a precedência. E ser tratada com extremos de sensatez prática: o norte nos resultados. Eu esperava esse entendimento dos progressistas. Mas vejo vários deles virados beatos pequenos-burgueses, funcionários da própria pureza. Imperdoável pureza! Antes a seriedade-sem-medo de um Raul Jungmann ou um Aluísio Nunes Ferreira. E eis aí minha confissão-quase-uma-queixa. Faço-a torturado, mas faço porque sinto que, sobretudo agora, franqueza é moeda forte. Feio seria calar. Ou cair no espírito do padre Malagrida e usar a palavra para esconder o pensamento.

Freguesia do Poço da Panela, Recife, fevereiro/2018