Sérgio C. Buarque 

Ray Charles.

Ray Charles.

“Cansei, ceguinho! Vou dar uma volta e fumar um cigarro”, falou Renato levantando e depositando na mesa um pesado livro. “Vai lá malandro, descansa esta garganta”, respondeu Gerson com simpatia. Depois que Renato saiu da sala, Marlene se aproximou de Gerson com carinho, mas, certa irritação na fala. “Como é que você aceita ser tratado deste jeito pelo Renato, Gerson? Essa forma depreciativa de falar da sua deficiência visual”.

– “Oxén! Tu queria que ele falasse como? Eu não sou cego mermo!”, reagiu Gerson levantando a cabeça e procurando a interlocutora.

– “Ceguinho!? Gerson, isso é forma de falar? Ele pensa que é melhor do que você e pode falar com desprezo do seu problema”, insistiu Marlene.

Gerson virou a cabeça para o lado, como se buscasse os olhos da amiga, parecia não entender a insistência de Marlene. Com paciência comentou: “Menina, ele é melhor do que eu sim. Ou tu acha que eu posso ler alguma coisa? Ele pode, e já começa com uma vantagem arretada nesta vida de Deus”.

– “Ta bom, Gerson, mas ‘Ceguinho’ não é teu nome”, falou a amiga. “Porra, protesta, exige respeito, exige que chame pelo teu nome e não por uma deficiência que não é a tua essência”.

Irritado e levantando da cadeia apoiado na mesa, dedo em riste procurando o rosto de Marlene, Gerson tentou encerrar a conversa: “Para de besteira, Marlene, a cegueira é o que mais me diferencia mesmo deste mundo e de vocês todos que vêm, se emocionam com movimentos e cores, conseguem ler, sentem os contornos das faces dos amigos, seus sorrisos e choros, sei lá…”.

Marlene não continuou a polêmica mas reclamou baixinho que achava inaceitável um tratamento deste por parte de um amigo. Gerson era cego e, como costuma acontecer, tinha um grande poder auditivo. Escutou o resmungado da amiga, tentou se conter mas terminou partindo para o ataque: “Quanto tempo você já sentou a bunda nesta cadeira pra ler um livro chato de Direito Constitucional para um desgraçado de um ceguinho como eu, hein!? Marlene, quanto tempo gastou com um ceguinho metido a besta que teima em estudar?”

Diante de um tímido “você nunca me pediu” de Marlene, Gerson já começava a falar gritando: “Eu nunca pedi a Renato para fazer isso. Eu pagava para alguns profissionais; ele se ofereceu e, atualmente, minha cara, dedica várias horas do seu tempo, que não deve ser menos importante que o seu, para ler pra mim um tratado insuportável de direito. Você sabe o que é isso, Marlene? Sensibilidade, solidariedade, ou, seja lá o que você quiser. Ele me chama de ceguinho com um carinho que você não pode entender, minha amiga, o mesmo carinho que o leva a ler para mim, simplesmente para compensar minha cegueira”.

Quando voltou do seu descanso, Renato ficou espantando com a tensão do ambiente e a gritaria de Gerson. Parou na porta procurando entender o que estava acontecendo, e caminhou para o centro da sala ouvindo a última frase de Gerson. Quando percebeu melhor a confusão, dirigiu-se para Marlene como um delicado professor: “Helô, sabe o que acontece? Você trata Gerson com pena, essa historia de ‘deficiente visual’ é pura hipocrisia para esconder o desprezo penitente; ‘coitado do ceguinho, não consegue ver a bundinha das meninas, não assiste aos filmes de hollywood e não sabe sequer o que é um arco-iris, oh! Meu Deus’!”.

Gerson ria e balançava a cabeça com o discurso do amigo. Renato terminou, sentou e enquanto Marlene, quase chorando, se encolhia numa poltrona, acrescentou: Gerson tentou desfazer o mal-estar com uma ironia: “Ora, se vocês não vêm que eu sou cego, então, meus amores, vocês também são cegos”. Depois gritou: “Eu sou cego, eu sou cego e isto é uma merda”! Renato sorria com o escândalo. E depois que Gerson silenciou, passou a gritar: “E eu sou ‘viado’, gosto de homem, acho bom. Odeio o preconceito, mas, quer saber? detesto mesmo é a mentira hipócrita dos que me tratam com deferência (…) medo de ser chamado de homofóbico, quando, na verdade, são mesmo”. Renato ficou muito sério, foi na cozinha e voltou com duas xicaras de café, ofereceu uma Marlene e sentou na ponta da mesa.

Depois de um silêncio desconfortante na sala, Renato falou baixo mas suficiente para que todos ouvissem, escondendo mas insinuando a ironia: “Me tratam com pena como se eu fosse um desgraçado dum ceguinho, porra! Não, não sou cego, felizmente. Sou bicha mas vejo tudo, entendeu, entendeu, completou passando a mão na cabeça do amigo”. Marlene olhou assustada para Renato até entender a brincadeira quando Gerson retrucou com gesticulação debochada: “Prefiro ser cego que bicha. Não vejo nada, mas sinto as xotas molhadas das meninas, e você, meu amigo, só leva por trás cacete te furando todo”.

Marlene agora ria acompanhando a cena de gritos e risos dos dois amigos. Deu um gole no café, andou pela sala, pediu silêncio e disse que queria fazer uma declaração. Parou de pé por um momento enquanto os dois esperavam, olhou para os amigos, pensou e levantou também um grito triunfante: “E eu sou uma gorda feia e baixinha; muito pior que o ceguinho bonito e gostoso; muito mais sofrida que a bicha alegre que, ao menos, encontra quem lhe enfie o pau”. E completou seu gesto de libertação levantando a saia e sorrindo: “Ninguém quer comer essas minhas carnes gordas e repletas de celulite, e o pior é que eu vejo, não sou cega e tenho que ver pra todo lado a tentação do sexo. Eu sou uma pobre coitada, meu ceguinho e meu viadinho, muito mais triste que vocês”. No meio de uma risada geral, Gerson ainda soltou o veneno:

– “E ainda por cima, é preta!”

– “Cor não é defeito, ceguinho filho da puta”, protestou Marlene. “Não escolhi ser preta. Gorda, sim, é defeito e eu podia evitar. Mas não consigo”.

– “Quer dizer, querida, que a cegueira é um defeito? A homossexualidade é um defeito?”, perguntou Gerson, completando meio melancólico: “A cegueira até que é, mas eu não escolhi ser cego, porra! O Renato sim, nasceu homem, a natureza deu a ele uma rola, mas ele gosta tanto, mais tanto mesmo, que quer a dos outros também”. Mesmo rindo da bobagem do amigo, Renato protestou:

– “Gerson, agora falando bem sério: eu não escolhi porra nenhuma. Eu tentei, insisti (…) simplesmente não deu. O corpo não combinou com o desejo”.

Parecia que a noite ia terminar com um ambiente deprimente de lamentações dos três amigos. Renato foi buscar outra xícara de café, desta vez para Gerson e ao voltar, quebrou a tensão com nova provocação.

– “Como Gerson é cego, e não vê o corpo redondo e flácido, ele pode comer Marlene que acabou de dizer que o ceguinho é bonito. Hein! Que acha Gerson? Tu goza e faz uma mulher feliz”.

– “Não, não gosto de preta”, respondeu Gerson com uma ampla gargalhada. “A gordurinha até que me agrada, mas (…..) preta, preta não”.

– “Que racista filho da puta!” protestou Marlene, “Você é a única pessoa no mundo que não pode ser racista, você não vê minha cor, porra!”.

– “Não vejo, mas, sinto, querida. Sinto no tato, uma pele mais quente e grossa, e sinto no olfato, cheiro adocicado. Só gosto de loura, pele lisa, morna e tão cheirosa!”.

– “Que ceguinho racista e metido!” gritou Renato levantando e dando uma tapa no braço de Gerson que neste momento balançava na cadeira com espalhafatosa gargalhada. Marlene se aproximou rindo com a ironia dos amigos. E todos se abraçaram numa celebração da amizade. Sincera e correta amizade, corretíssima.