Helga Hoffmann

Um frágil cessar-fogo na Síria já dura mais que as previsões que se faziam quando ele começou a valer, em 27 de fevereiro. Desde então, comboios de ajuda humanitária puderam chegar a uma parte das localidades sitiadas (por tropas rebeldes ou soldados do ditador em Damasco), levando alimentos e remédios. Conforme o acordo, o governo de al-Assad  permitiu o fornecimento de ajuda humanitária, inclusive em algumas áreas controladas por rebeldes. Não só bombardeios, mas fome matava gente nas zonas cortadas das rotas normais de abastecimento pela guerra.  A ONU estimou a presença de quase meio milhão de pessoas sitiadas, e esperava levar alimentos a 150 mil pessoas até o início de março.

Até quando vai durar essa suspensão das hostilidades? O acordo exclui os terroristas do Estado Islâmico e Jabhat al-Nusra, o ramo sírio de al-Qaeda. Acontece que esses grupos operam às vezes junto com os outros grupos rebeldes contrários ao governo de al-Assad, e essa dificuldade de distinção, já durante os bombardeios anteriores pelos caças russos, trouxera acusações de que Moscou na verdade não combatia o EI, como alegava, e sim, apoiava as tropas do governo sírio contra quaisquer ataques. Violações do cessar-fogo seriam difíceis de verificar.

Depois da suspensão provisória de hostilidades, reiniciaram-se negociações de paz em Genebra, coordenadas pelo enviado especial da ONU para a Síria, Staffan de Mistura, com o fito de alcançar uma transição política que permita o fim permanente da guerra na Síria.  Até agora os representantes de Bashar al-Assad têm rejeitado qualquer proposta que implique sua saída do governo, enquanto os diferentes grupos de oposição querem um governo de transição sem al-Assad. Esta semana os russos, cuja força aérea dava apoio as tropas de al-Assad desde setembro passado, começaram a retirar seus caças do espaço aéreo sírio, reanimando especulações sobre o futuro do governo em Damasco e sobre as intenções de Putin. E há notícia até de que voltaram a ocorrer, depois do cessar-fogo, manifestações pacíficas contra a ditadura na Síria.

Março marca o quinto aniversário dos primeiros protestos contra a ditadura de Bashar al-Assad na Síria. A primeira manifestação pró-democracia, em 15 de março de 2011, pacífica, foi reprimida com violência pelo governo de Damasco. Hoje, o país está destroçado: há cálculos de que a guerra já custou à Síria mais de 600 bilhões de dólares. Os líderes das primeiras revoltas estão no exílio na Turquia ou no Líbano e os rebeldes moderados das primeiras horas foram perdendo território, para as tropas de Al-Assad de um lado, e, de outro, os terroristas armados do Estado Islâmico, que ocupou o vácuo onde a estrutura do estado fora destruída nos confrontos entre grupos rebeldes e forças do governo. Há lideranças pró-democracia que, em retrospecto, dizem que o erro da oposição ao ditador foi, primeiro, pegar em armas, e depois, não rejeitar desde o início os militantes do EI que se juntavam a eles nos protestos contra o governo.

Junto com as armas, os mortos, e os feridos, o conflito se internacionalizou, pelos apoios do exterior aos diferentes grupos envolvidos. Al-Assad tem apoio militar da Rússia e, direta e indiretamente, do Irã. Os Estados Unidos durante algum tempo deram apoio material ao grupo que se denomina Exército Livre da Síria, porém mais tarde se concentraram em formar uma coalizão cujo principal objetivo é combater o EI na Síria.  A crise dos refugiados na Europa escancarou que a guerra na Síria havia se transformado em tragédia humanitária que atingia o mundo inteiro. Quando, desde o ano passado, a ONU negociava o cessar-fogo, Estados Unidos e Rússia estavam na mesa de negociações e determinavam o seu sucesso ou o seu fracasso. A União Europeia não fazia parte ostensivamente dessas negociações para uma transição na Síria, mas é claro que tem algum poder sobre as decisões, na medida em que vêm da Europa, sobretudo da Alemanha, as principais sanções contra a Rússia que ainda restam por sua intervenção na Ucrânia.

Nenhum balanço consegue mostrar a tragédia e o sofrimento de 11 milhões – homens, mulheres e crianças – forçados a deixar seus lares. Isso é metade da população da Síria, que antes do início da guerra era de 23 milhões. A ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) e diferentes ONGs contaram 250 mil mortos e 1 milhão de feridos. Mas fontes sírias falam de 470 mil mortes causadas direta e indiretamente pela guerra; 13.600 crianças estão entre os que morreram, e dessas mais de duas mil tinham menos de 8 anos de idade. Somente os refugiados sírios já registrados pela ONU somam mais de 4,8 milhões: 2,7 milhões na Turquia, 1,1 milhão no Líbano, 638 mil na Jordânia, 296 mil no Iraque, 119 mil no Egito. Fora os milhões de deslocados na própria Síria.

E isso antes de se difundirem pelo mundo inteiro as imagens de multidões, famílias inteiras, que caminhavam pelas estradas, florestas e campos nevados dos Balcans, e passaram pela Grécia para chegar à Alemanha, num total de mais de 1 milhão apenas em 2015. Desde 2014, mais de 7 mil morreram no caminho tentando chegar à Europa, muitos em botes infláveis e outras embarcações precárias que naufragaram no Mediterrâneo, os corpos desaparecidos ou recolhidos nas praias da Grécia e da Itália. Segundo o jornal Financial Times, “refugee” foi a palavra do ano de 2015 na Europa. E uma solução para a crise dos refugiados depende de paz na Síria.

Os naufrágios no mar Egeu em dado momento puseram o foco no negócio que mais se desenvolveu com a crise dos refugiados, o tráfico de seres humanos, exercida no Mediterrâneo e em alguns pontos das rotas terrestres entre a Turquia e a Alemanha, a França, a Inglaterra, a Suécia. É uma atividade já conhecida há muito aqui no Hemisfério, famosa pelos “coyotes” que guiam imigrantes na fronteira México-EUA em troca de um bom punhado de dólares. A organização “Transparency International” mostrou como a corrupção põe em risco a vida dos refugiados: os contrabandistas pagam propinas para conseguir passaportes e vistos fraudados, pagam fiscais nas fronteiras e donos de terras costeiras para deixar os refugiados passarem, cobram até US$3000 por pessoa e amontoam 30 a 50 refugiados em cada bote inflável, distribuem coletes salva-vidas imprestáveis, e capitães que abandonam as embarcações aumentam o risco ainda mais. Mulheres enfrentam o risco adicional de coerção sexual de parte dos contrabandistas.

Esse negócio de bilhões se baseia em corrupção em cada etapa entre o início e o fim da jornada. A atividade desses contrabandistas se ampliou ainda mais depois que se fecharam as fronteiras de países europeus na principal rota para a Alemanha. Quando a Macedonia fechou sua fronteira com a Grécia no início de março, 13 mil pessoas ali ficaram ao relento, sem ida nem volta: é claro que em situações desse tipo os refugiados são presa fácil de ofertas de contrabandistas para serem guiados por caminhos mirabolantes e perigosos. Depois que as Marinhas da Itália e da Grécia tiveram que recolher um grande número de náufragos, e depois que, de novo, mais de 300 migrantes morreram afogados nas costas da Turquia somente nos dois primeiros meses de 2016, a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) anunciou no domingo 6 de março que expandiria seus esforços para impedir os contrabandistas que oferecem esse transporte, conduzindo operações em águas territoriais da Turquia e da Grécia, em consulta e coordenação com esses países. Patrulhas da OTAN no mar Egeu fariam um monitoramento, mas, segundo o Secretário-Geral da organização, Jens Stoltenberg, os navios que encontrassem pessoas em perigo no mar não fugiriam de seu dever de ajudar.

Em paralelo, estava sendo negociado um acordo entre a União Europeia e a Turquia que igualmente visava desestimular esse tráfico pelo mar e pelos caminhos da Turquia à Alemanha, obtendo a cooperação da Turquia para uma transferência organizada de refugiados. Em uma próxima edição, será necessário analisar esse acordo, cujos detalhes têm suscitado muita controvérsia. O Alto Comissariado da ONU para Refugiados expressou sua preocupação com a devolução ao seu país de origem de qualquer refugiado protegido pela lei internacional. Mas, como notou The Economist, em seu comentário preliminar ao acordo EU-Turquia em vésperas de ser concluído, “tempos desesperados, medidas desesperadas”.