Helga Hoffmann

Em Aleppo, grupos de milicianos rebeldes tratam de manter seu controle nas zonas que ocuparam, enquanto a população civil tenta sobreviver em meio às ruínas e os bombardeios em vários bairros. O governo de al-Assad, apoiado e armado pela Rússia, busca atualmente (outubro de 2016) retomar o controle desta que é a segunda maior cidade da Síria. Depois que foram suspensas as negociações entre os Estados Unidos e Rússia para um cessar-fogo, aviões russos e sírios bombardeiam a cidade sem trégua com munição incendiária e bombas de fragmentação, sem poupar nem hospitais nem comboios de ajuda humanitária da ONU.

Os pilotos russos são treinados para entender a batalha como apoio a um governo secular atacado por terroristas islâmicos extremistas. A ideia da cooperação russo-americana na Síria é o combate ao terrorismo do Estado Islâmico (EI), que emergiu na Síria em 2014 em meio às sombras e fraturas de um estado combalido. Acontece que os grupos rebeldes anti-Assad são diversos, com abordagens e interesses às vezes contraditórios, há mesmo rebeldes que querem apenas defender seu próprio bairro, e os partidários do califado do EI estão entre eles, às vezes até misturados numa mesma zona da cidade. Quando o EI apareceu em partes de Aleppo combateu não só o exército sírio, mas grupos rebeldes rivais que considerava apóstatas, mas se deram acomodações. Sob a alegação de eliminar o EI, o objetivo do regime de al-Assad parece ser o de esvaziar completamente a cidade, como já acontecera nas batalhas por Homs.

Já nas batalhas por Homs os grupos rebeldes eram diversos: tanto houve os que lutavam pelo califado do EI, como membros do F.S.A. (Free Syran Army), um grupo apoiado pelos americanos, que não chegou a angariar simpatia junto à população civil. Homs ficou sitiada por três anos, entre 2012 e 2014, alguns de seus habitantes morreram de fome e sede, enquanto a aviação e a artilharia sírias retomavam um após outro os bairros em que estavam os rebeldes, até que em maio de 2014 os que sobraram das milícias anti-Assad aceitaram um cessar-fogo e receberam salvo-conduto para deixar os escombros do que já fora um centro comercial vibrante e cosmopolita.

Terá Aleppo o mesmo destino? A guerra na Síria, desde 2011, já matou quase meio milhão de pessoas. Em Aleppo quase 300 mil pessoas estão em zonas sitiadas e podem morrer de inanição ou engrossar o fluxo de refugiados. A retomada é lenta, com uso de bombardeio, artilharia e bloqueio dos acessos para abastecimento. O Departamento de Estado americano continua a defender a criação de uma zona de interdição aérea. Mas tal proposta não foi sequer introduzida nas discussões do Conselho de Segurança da ONU. Com que meios impedir a aviação de Moscou e Damasco de sobrevoar o espaço aéreo sírio?

E se o objetivo é combater o EI, como complementar os bombardeios com combates no solo, de onde tirar forças terrestres treinadas quando ao mesmo tempo se prepara agora no Iraque outra batalha decisiva, a ofensiva para retomar Mosul dos militantes do EI? Já se teme em Mosul mais uma vitória acompanhada de crise humanitária. Pois a retomada de Mosul, por forças iraquianas apoiadas pelos Estados Unidos, pode deslocar um milhão de pessoas.

A complexidade das alianças de todos os lados tampouco ajuda: no Iraque, os Estados Unidos estão aliados a milícias shiitas (e aos curdos) para combater o EI, mas na Síria algumas dessas milícias, apoiadas pelo Irã, defendem o governo Assad. A Arábia Saudita, que lidera uma coalizão de países do Golfo Árabe que tem apoio dos Estados Unidos, na Síria fornece armas e apoio a grupo anti-Assad. Esses são apenas alguns dos entrelaçamentos. A variedade dos grupos em combate é tamanha que é compreensível a dúvida sobre quem seria beneficiado, em última instância, por uma interdição de voos. O cessar-fogo que russos e americanos levaram meses negociando fracassou em poucos dias, nem houve tempo para que comboios de ajuda humanitária chegassem às zonas sitiadas pelos rebeldes ou pelo governo. Em Aleppo alguns habitantes se preparam para o longo prazo: reuniram equipamento de perfuração para fazer poços quando o abastecimento de água parar.

Resta a indignação. Esta semana George Soros lembrou (The New York Review of Books, “The bombing of Aleppo”) os esforços heroicos de organizações de civis como os “Capacetes Brancos”, que arriscam suas vidas para resgatar dos escombros os feridos e as crianças, e pede que a opinião pública mundial proteste contra o bombardeio de Aleppo, que ele classifica como “crime de guerra do mundo moderno”. Mas parece que até a “opinião pública mundial” está assoberbada. Ainda falta pensar nos milhões de refugiados africanos, em particular do Sudão.

Esta semana Sanaa substituiu Aleppo nas manchetes sobre bombardeios. Sanaa, a cidade de beleza surpreendente de filmes de Pier Paolo Pasolini, cidade maravilhosa do documentário (“Le mura di Sana’a”) em que Pasolini pedia à UNESCO que protegesse a cidade antiga, que vem do século IV, como patrimônio cultural e histórico da humanidade (e assim conseguiu em 1980). Em Sanaa, hoje capital do Yemen, o país mais pobre do Oriente Médio, neste sábado, 8 de outubro, bombardeiros da vizinha Arábia Saudita atacaram o funeral do patriarca de uma família tradicional yemenita. Mais de 500 pessoas foram feridas e pelo menos 115 pessoas morreram, inclusive o prefeito da cidade e líderes políticos e militares que favoreciam um acordo de paz. No dia seguinte, domingo, ocorriam os funerais das vítimas e milhares de pessoas protestaram diante do escritório da ONU em Sanaa, contra os ataques aéreos da coalizão liderada pela Arábia Saudita. O Irã pediu apoio para que os feridos em estado crítico fossem tratados no Irã, mas o aeroporto de Sanaa está fechado.

Sanaa está sendo bombardeada com maior intensidade desde agosto, quando se interromperam negociações de paz apoiadas pela ONU. É zona de guerra desde 2014, quando rebeldes Houtis tomaram a capital e afastaram o governo. Os Houtis tem apoio militar de um ex-presidente, Ali Abdullah Saleh, e lutam pelo controle do país contra grupos fieis ao presidente exilado Abdu Rabbu Mansour Hadi, que tem o apoio da Arábia Saudita, e algum controle no sul do país, no porto de Aden.

Os Estados Unidos são tradicionais fornecedores de armas e munições aos sauditas e oferecem treinamento e combustível para a Força Aérea saudita. Após os bombardeios de 8 de outubro, um porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos declarou que será conduzida “imediata revisão” do apoio à coalizão liderada pela Arábia Saudita. O Secretário de Estado John Kerry pediu imediata cessação de hostilidades. Mas o que se teme agora é mais uma escalada da violência.

Mesmo com a sensação de impotência política e fracasso humanitário que vem com os últimos acontecimentos no Oriente Médio, houve piadas. Não foi o humor negro de algum humorista inspirado na tragédia: no mesmo dia em que foi concedido o Prêmio Nobel da Paz ao presidente colombiano Juan Manuel Santos (por seu esforço em obter a paz com os rebeldes das FARC) o presidente venezuelano Nicolás Maduro anunciou outro prêmio da paz. Maduro concedeu O “Prêmio Hugo Chavez para a Paz e a Soberania dos Povos” ao presidente russo Vladimir Putin, acentuando: “um líder que considero o mais notável no mundo hoje, um lutador por paz, equilíbrio, e construtor de um mundo pluripolar, multicêntrico”. A imprensa internacional foi irônica, ao notar que, de fato, Putin estava precisando melhorar sua imagem, e que o prêmio consistia em uma miniatura de uma estátua de Chavez, já que a Venezuela empobrecida, com milhares de seus cidadãos cruzando as fronteiras em busca de alimentos e remédios, não tinha como emular cerca de um milhão de dólares do Prêmio Nobel.

Foi com alguma ironia, também, que boa parte da imprensa internacional tratou da polêmica que arrebatou a França durante este verão europeu, a do uso do “burkini” em suas praias e piscinas e a tentativa de impor à força o liberalismo e a república laica. Como palavra, de criação recente, o “burkini” já começa errado, pois é fusão de “burka” com “bikini” e, de fato, não é isso, pois dentre os tipos de véu que protegem a modéstia das muçulmanas religiosas, a burka é o mais extremo, todo negro, que cobre inteiramente o rosto, a respiração garantida através de uma rodelinha de pano de mosquiteiro também negro apenas sobre boca e nariz.

O burkini é um maiô que cobre o corpo inteiro, deixa de fora apenas mãos, pés e rosto, mas é colado no corpo como roupa de surfista, e tem aparecido em muitas cores. Foi visto pela primeira vez em praias da Austrália, e as muçulmanas o consideram progresso, afinal podiam ir à praia com suas crianças, já que antes a alternativa era entrar na água com a roupa toda. Este ano, quando apareceu no litoral da França e em algumas piscinas, alguns defensores do estado laico sentiram-se ofendidos. Parlamentares, candidatos presidenciais, políticos de vários matizes e toda a imprensa francesa discutiram o burkini, dividindo-se entre os que proclamavam que o direito de mulheres vestirem o que quisessem incluía o burkini das muçulmanas, e os que alegavam falta de higiene, opressão da mulher, ofensa ao estado laico, perigo terrorista, perigo de avanço do islamismo radical, luta pela “alma francesa” (esta foi de Marine Le Pen), etc. Um após outro, começando por Cannes, alguns prefeitos na Côte d’Azur e na Riviera decidiram proibir o burkini e, num caso extremo, policiais obrigaram uma mulher, na praia, a tirar o burkini. Em algumas praias francesas, policiais pediram que muçulmanas cobertas deixassem a praia. As fotos correram mundo, junto a acusações de islamofobia. O Primeiro Ministro, o socialista Manuel Valls, apoiou a proibição, e chamou o burkini de “escravização das mulheres”. O Centro contra a Islamofobia apelou em Cannes e perdeu. Umas 30 prefeituras chegaram a proibir o tal maiô muçulmano. No fim, depois de um mês de debate acirrado, o Conselho de Estado da França, a suprema corte administrativa, decidiu que era ilegal proibir tal vestimenta. Mas várias prefeituras anunciaram que manteriam a proibição.

“Refugiados” foi a palavra mais usada do ano de 2015. Assim continua em 2016. O Brasil participa do drama não só com a chegada dos haitianos, mas agora com a entrada de algumas centenas de venezuelanos em Roraima – o que explica porque os países latinoamericanos, Brasil inclusive, estavam entre os que preferiam não distinguir entre refugiados (como definidos na Convenção de 1951) e imigrantes (fugindo de desastres naturais e/ou colapso econômico), quando discutiram o texto da declaração da Cúpula da ONU sobre refugiados, em Nova York este ano.  O mundo continua sem que a comunidade internacional tenha conseguido até agora algum acordo para a solução do problema. Há países sobrecarregados, cujos recursos vão se esgotando nessa emergência sem fim, sobretudo na vizinhança mais próxima das zonas de êxodo, como Líbano, Jordânia, Turquia, também a Grécia, e há países cujos governos ostensivamente se recusam a cooperar, sob a alegação de defesa da cultura, do estilo de vida e da civilização cristã.

Em tese, se todos os países cooperassem, a comunidade internacional teria a possibilidade de ao menos abrigar os que fogem da calamidade em seus países. Seja qual for a razão, o tratado internacional que se aplica a refugiados, assinado em 1951 e ampliado em 1967, está sendo desrespeitado, na letra e no espírito. A começar já nos próprios países que não garantem a proteção dos deslocados internos.

A dimensão do êxodo ultrapassa em muito a capacidade do órgão da ONU para refugiados, o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), mesmo com ajuda de organizações de voluntários que despontaram no mundo todo, mesmo com a campanha internacional de doações na internet. Está claro que o drama dos refugiados influenciou a indicação do novo Secretário Geral da ONU no Conselho de Segurança, que a Assembleia Geral da ONU acaba de confirmar. A partir de 1 de janeiro de 2017, o português Antonio Guterres substituirá o sul-coreano Ban Ki-moon. Guterres já foi primeiro-ministro de Portugal, e, por dez anos, de 2005 a 2015, dirigiu a agência de refugiados da ONU. Se depender de conhecimento, capacidade e entusiasmo do novo Secretário Geral, a ONU estará bem servida. Ao menos ele tem plena consciência da dificuldade de suas novas e nem tão novas tarefas.