Sérgio C. Buarque

Presidente Salvador Allende no Palácio de La Moneda resistindo ao golpe militar de 1973.

Presidente Salvador Allende no Palácio de La Moneda resistindo ao golpe militar de 1973.

Há 40 anos, numa manhã cinza e amarga, os chilenos acordaram com o pronunciamento grave e sereno do presidente Presidente Salvador Allende anunciando o golpe de Estado que terminaria com a curta experiência de socialismo democrático na América Latina. De dentro do palácio La Moneda, cercado pelas tropas golpistas e logo bombardeado pela Força Aérea, Allende afirmou, enfático, que cumpriria até a morte o mandato que lhe foi confiado pelo povo chileno e, num grito de dor e esperança, conclui: “Saibam vocês que muito mais cedo que tarde, outra vez se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre para construir uma sociedade melhor”.

Naquele dia nublado do final do inverno, o golpe militar de 1973 encerrou também um longo período da história política do Chile com uma tradição democrática, um dos mais democráticos países da América Latina, que parecia vacinado contra as fantasias populistas, e com forças armadas profissionais. E completou o ciclo de ditaduras militares da América Latina (a Argentina teria apenas um curto interregno de desastrado peronismo) superando em violência e destruição as ditaduras mais antigas do continente, violência que estava na proporção direta da força e da influência política da esquerda chilena, principalmente do Partido Socialista e do Partido Comunista, ambos muito bem estruturados e enraizados entre os trabalhadores e os segmentos médios da sociedade.

Eleito presidente em 1970, numa coligação de partidos de esquerda – Unidad Popular – e com um programa declaradamente socialista, Allende contou de início com grande apoio popular e com a simpatia ou tolerância de parte relevante da classe média, mesmo moderados e conservadores ligados ao Partido Democrata-cristão. Inicialmente, o Partido Democrata-cristão aceitava o governo de Allende e aprovou várias iniciativas políticas da Unidad Popular. Mas este ambiente durou pouco e a radicalização política substituiu a tolerância e superou o espírito democrático dos chilenos, menos por conta das reformas implementadas pelo governo popular e muito mais pela desorganização da economia chilena a partir de 1972. De início provocada por descontrole na condução da política macroeconômica, a crise econômica foi agravada por manipulações do mercado.

Em 1972 a inflação alcançou 200%, apertando os salários reais, o déficit do governo passou de 13% do PIB, comprometendo a capacidade de gasto e investimento público, e as reservas cambiais caíram para apenas 77 milhões de dólares. O governo tentou controlar os preços e os canais de distribuição de mercadorias gerando, como resultado, a intensificação da economia clandestina, do mercado negro e do açambarcamento de mercadorias por parte de comerciantes, grandes e pequenos.

No primeiro semestre de 1973 ficava claro que o Governo socialista não conseguia mais controlar a economia e perdia rapidamente a simpatia da classe média abrindo um processo acelerado de radicalização. Mesmo assim, em março, a Unidad Popular recebeu 44% dos votos nas eleições parlamentares, consolidando a base de apoio do governo de Allende num país totalmente dividido em paixões políticas. Durante meses, milhões de chilenas vinham às varandas e janelas, numa mesma hora da noite, batendo panelas num barulhento protesto conhecido como “panelaço”. Em meados de 1973, quase três anos de governo socialista, a economia chilena vivia uma profunda desestruturação: inflação acelerada, declínio da atividade industrial, déficit fiscal e esgotamento das reservas cambiais, desabastecimento e mercado negro de produtos e divisa.

Com a opinião pública dividida e a classe média assustada, as forças conservadoras deram o golpe fatal com a promoção de açambarcamento de mercadorias e a prolongada greve de caminhoneiros que agravou dramaticamente o desabastecimento nas cidades. A classe média e, com ela, a Democracia Cristã se aproximaram da direita e Allende perdeu o controle político do país, a esta altura, mortalmente fraturado em um violento antagonismo político e uma forte radicalização. E a Unidad Popular se dividia entre uma negociação política com os democrata-cristãos, defendida por Allende, ou pelo contrário, a aceleração das reformas, a ocupação de fábricas, e intervenção estatal no mercado. Grupos da direita fascista praticavam atentados e assassinatos, e os movimentos e partidos radicais de esquerda proclamavam a insurreição armada.

O golpe parecia iminente e inevitável. No caso de uma resistência armada, para a qual a Unidad Popular não parecia preparada, o mais provável seria uma guerra civil devastadora com limitadas chances de vitória do governo, a julgar pela desorganização e pela divisão interna nos partidos e grupos de esquerda. Allende deveria saber disso. Escolheu, ao contrário, uma resistência heroica e suicida do Palácio presidencial com apenas alguns próximos auxiliares como forma simbólica de defesa do mandato popular. E no seu discurso, o presidente ainda pediu prudência à população e recomendou que evitasse sacrifícios desnecessários mas que não se deixasse humilhar pelos golpistas.

No tumultuado inverno de 1973 não faltaram argumentos de partidos e líderes de esquerda a favor de uma insurreição que se antecipasse ao golpe, principalmente depois do fracasso do chamado “tancazo”, ensaio golpista desconexo e isolado do Regimento de Blindados nº 2 cercando o Palácio La Moneda para derrubar o governo. O levante foi abafado em poucas horas pelo General Carlos Prats, comandante das Forças Armadas e militar constitucionalista leal a Allende. Em resposta, quase um milhão de chilenos saíram em passeata em repúdio aos golpistas e apoio ao governo. Excitada, a massa gritava: “a cerrar, a cerrar el Congreso Nacional”, dando argumentos para os lideres mais radicais da Unidad Popular favoráveis à insurreição.

Allende insistiu no caminho constitucional e tentou aprovar o Estado de Sítio para desarticular o movimento golpista e enfrentar a os atos terroristas da ultradireita mas o Congresso de maioria opositora rejeitou. Nas vésperas do golpe, Allende pensou em anunciar um Plebiscito para que os eleitores decidissem o caminho a seguir diante do impasse político que dividia o Chile e numa última tentativa de impedir o golpe e recuperar a confiança política. Mas já era muito tarde e de duvidosa eficácia diante da dramática fratura política e da completa desestruturação da economia chilena.

A despedida de Allende foi um grito de otimismo mas parecia esconder uma enorme amargura. Amargura pelo final do seu projeto socialista, amargura pelo que deveria antever da violenta repressão da ditadura militar que iria se implantar no Chile. Amargura e decepção com a falsidade e a vilania dos comandantes das Forças Armadas, especialmente do General Augusto Pinochet. “Estas são as minhas últimas palavras e tenho certeza que meu sacrifício não será em vão. Tenho certeza que será, pelo menos, uma lição moral que castigará a perfídia, a covardia e a traição”. Quarenta anos depois daquele discurso nobre e lúcido, e daquele gesto de coragem e honradez, as grandes alamedas se abriram e Salvador Allende se eleva como um dos grandes estadistas e humanistas das Américas, enquanto o seu algoz Pinochet tem seu nome jogado na lama da história como um dos mais violentos ditadores da América Latina.