Sérgio C. Buarque

Gal. Henrique Teixeira Lott, ao centro, ladeado por generais.

Gal. Henrique Teixeira Lott, ao centro, ladeado por generais.

História é passado. Já houve, é irredutível e irreversível. Resta aos historiadores interpretar e explicar o passado através da análise da cadeia de acontecimentos, das circunstâncias e das iniciativas. Cabe apenas entender o que aconteceu e explicar como e porque o mundo evoluiu de determinada forma observando o processo complexo de interação das variáveis determinantes que movem e definem a realidade. Não se pode mudar o passado. E, no entanto, o passado preparou e condicionou o presente. E pode iluminar o futuro. Mas, o que houve no passado era inevitável? Observado e analisado com os olhos do presente, aquela configuração de eventos e processos parece predeterminada, como um determinismo histórico. O passado poderia ter sido diferente?

Em sistemas complexos os eventos são apenas componentes particulares de uma cadeia não linear de variáveis em interação. De modo que, em determinadas circunstâncias, uma pequena alteração em um evento singular poderia desencadear mudanças significativas que levariam a processos históricos distintos. Como um “efeito borboleta” no qual o bater de asas de borboletas na China pode provocar uma tempestade na costa leste dos Estados Unidos. Assim, bastaria que apenas um pequeno evento do passado não tivesse ocorrido para ter desencadeado uma sequência de mudanças que levaria a um processo histórico diferenciado. E, portanto, a uma realidade presente distinta da que temos hoje.

Vamos pensar na história do Brasil da década de sessenta do século XX. A eleição de Jânio Quadros para a presidência República, evento singular em qualquer democracia, desencadeou uma sucessão de fatos e decisões determinantes do nosso passado recente. Renúncia do presidente eleito, posse tumultuada do vice-presidente após tentativa de golpe, emergência dos movimentos sociais, instabilidade política, convergindo para um golpe e a implantação da ditadura militar. Populista e psicologicamente instável, Jânio se elegeu com uma base partidária frágil e renunciou ao mandado antes de completar o primeiro ano (supostamente tentando uma virada de mesa), abrindo caminho para a posse do vice-presidente, João Goulart, getulista e trabalhista de esquerda que despertava a suspeita dos militares.

Depois da tentativa militar de impedimento da posse, o vice assume depois de um entendimento em torno de uma reforma parlamentarista e no meio de uma mobilização social em larga escala em todo o país pelas reformas sociais, instabilidade política e motins de sargentos. Termina com o golpe militar de 1964. A ditadura militar se implanta, a esquerda radicaliza, a repressão se intensifica ao mesmo tempo em que a economia se moderniza e cresce, praticamente definindo até hoje a trajetória política, econômica e social do Brasil. A escolha dos eleitores brasileiros em 1960, a loucura de Jânio, a fragilidade e vacilação política de Jango, a conspiração militar, o golpe e a ditadura militar formam uma sequência de eventos que marcou e definiu a história recente do Brasil.

Mas, a história do Brasil naquele período poderia ter sido diferente? E se o evento de partida tivesse tido outro comportamento? Quais os desdobramentos que poderiam ser imaginados para o Brasil? O Brasil de hoje foi preparado pelos processos desencadeados pelos eventos singulares que deram partida ao processo histórico, entre os quais, as eleições presidenciais daquele ano. Digamos que o resultado das eleições presidenciais tivesse sido bem diferente e que o general Henrique Lott tivesse derrotado Jânio Quadros. Era possível? Claro que era possível. Os dois partidos que apoiavam Lott – PSD e PTB – tinham a mais poderosa máquina eleitoral da época e o candidato tinha enorme prestígio, embora não fosse populista. Conflitos entre os dois partidos, os coronéis do PSD e os radicais do PTB, atrapalharam a eleição do seu candidato e o presidente Juscelino Kubtischek não parecia muito engajado, pensando mais na sua volta em 1965 que numa continuidade da sua base política. A diferença entre os dois candidatos – Jânio e Lott – não foi grande, a vantagem de Jânio foi, principalmente, no Estado de São Paulo, onde tinha sido governador, e ele se elegeu porque, na época, não existia segundo turno (Jânio recebeu 48,26% dos votos e Lott 32,94% sendo que Ademar de Barros, também paulista, recebeu 18,79% dos votos). Tanto era politicamente possível que João Goulart, eleito vice-presidente, era da chapa derrotada de Henrique Lott, lembrando que, na época, a eleição do vice era desvinculada do candicato a presidente.

E se Lott tivesse sido eleito, qual teria sido a história do Brasil? O governo Lott poderia ter implementado algumas reformas estruturais, talvez mais que o muito pouco que João Goulart conseguiu, sem que houvesse ameaças graves à democracia e às regras constitucionais. Com Lott presidente, o Brasil provavelmente não teria vivido o ambiente de instabilidade política dos anos que antecederam e estimularam o golpe militar. O governo Jango fez mais barulho que reais reformas e não tinha autoridade política para conduzir o país no meio das pressões sociais, movimentos sindicais de um lado e classe média assustada do outro, menos ainda contornar a reação e antipatia dos militares.

Lott era um democrata convicto (provou isso em vários momentos) e simpático às reformas sociais além de nacionalista e estatista, conceitos que agradavam a grande parte dos militares, embora ele fosse odiado pela direita anti-getulista e anti-comunista das Forças Armadas. Sendo um militar de grande respeitabilidade, o presidente Lott teria tido condições reais para inibir a conspiração golpísta da UDN e dos militares mesmo porque ele não teria permitido a quebra de disciplina nas forças armadas como a revolta dos sargentos e marinheiros. Lott defenderia a autoridade e a disciplina, possivelmente necessárias naquele momento conturbado da história do Brasil, e não seria facilmente manipulado pelas velhas raposas políticas do PSD e do PTB. Com o apoio da esquerda e com sua sensibilidade social, o presidente Lott poderia ter iniciado, sem a instabilidade política que dominou o país no governo Jango, a reforma agrária, a extensão da legislação trabalhista no campo, a implantação do ensino público gratuito, todas propostas do seu programa de governo.

O jurista Sobral Pinto disse algo parecido: se Lott “…tivesse ido para a presidência do Brasil, teria instaurado um governo de legalidade e de respeito à pessoa humana, e uma vinculação com partidos políticos, porque era um democrata sincero, inteligente e honrado. Com Lott na presidência, não teríamos ditadura militar durante vinte anos, não teríamos a falência nacional. Nada disso teria acontecido”. Tudo isso não passa de especulação em torno “do que poderia ter sido”. Não muda os fatos e não altera a história. Não dá para dizer como seria o Brasil se o resultado daquela eleição fosse diferente. Mas, tudo indica que a história teria sido outra. E o Brasil de hoje poderia ser muito diferente. Talvez bem melhor. Esta especulação serve ao menos para mostrar que cada decisão da sociedade, a começar pela singular eleição de um presidente, que sintetiza a escolha de cada eleitor, desencadeia uma dinâmica política e social decisiva para o destino do Brasil.