Teresa Sales

25 de outubro de 2018

Retomo neste artigo algumas considerações que fiz a propósito do editorial desta revista em 28 de setembro último. Um dos argumentos da “Opinião” era que, sem uma recuperação das finanças públicas e da economia, o país iria mergulhar numa crise tão profunda que poderia levar ao caos e à anomia social. E eu dizia: nessa crise já estamos. O comentário de Helga Hoffman, na mesma linha do editorial, citava Quino, da Mafalda, para me dizer que “o pior é que o pioramento pode piorar”.

Todos nós temos nossos vieses de formação acadêmica. O dos economistas, independente de filiação teórica, é privilegiar em demasia os fatores econômicos. Aqui vou privilegiar o meu: os fatores sociais. Ninguém de sã consciência vai negar a necessidade de recuperação das finanças públicas e da economia. Por que será que as decisões de voto passaram quase ao largo desses fatores? Será por que os candidatos não foram convincentes?

Não. É que essa campanha eleitoral, mais do que qualquer outra, foi norteada pelo medo. Foi uma campanha contra. Contra fantasmas, por vezes. O comunismo? Aonde? Como dizia um ex-prefeito de Garanhuns a um eleitor de seu curral eleitoral, que pela terceira vez foi lhe pedir autorização para votar no conterrâneo. “Pode votar em Lula, compadre. Porque isso agora não tem nenhuma importância. O comunismo se acabou”. Aqui no Brasil, sobrou nomeando um partido político que em nada se diferencia de todos os outros quanto às práticas de governo. Ou bandeiras vermelhas podem significar diferentes bandeiras de lutas, não necessariamente o comunismo. Meu Deus, que conversa atrasada.

Sim, estamos vivendo uma situação de crise econômica e anomia. Durkheim, um dos fundadores da sociologia, cunhou essa expressão para nomear uma sociedade sem normas. O que estamos presenciando em nossa sociedade é mais sério do que apenas uma anomia. É um medo que contagia todas as relações sociais e que está sendo o fator impulsionador dessas eleições. Ouvia na rádio CBN um programa que entrevistava pessoas na rua a respeito de suas experiências pessoais de entrar em pânico, a partir dos resultados de uma pesquisa realizada (não deu para anotar a fonte, estava no trânsito) em vários países. Segundo os dados dessa pesquisa, depois dos afegãos, os brasileiros são o povo que mais tem medo.

Desde que foi instaurada nossa República pós Abolição da Escravatura, vivemos a maior segmentação social de nossa história. E as causas, sabemos, remontam a fundamentos da sociedade que vão além de governo este ou aquele. Os dados econômicos, em geral baseados em níveis de renda, apontam oscilações que em geral são analisadas a posteriori para apontar as causas: foi a década perdida, foi o milagre econômico, foram os programas sociais do governo, e por aí vai.

A sociedade, qual um monstro que desconhecemos, segue um caminho que não necessariamente passa por conjunturas. Veio acumulando mazelas, quais células malignas, que contaminam o cotidiano dos cidadãos, segmentados hoje, mais do que nunca, nas cidades, onde vive predominantemente a população brasileira. Como se estivéssemos numa guerra civil, e cada um se defende como pode. Fugindo das ameaças que permeiam os espaços públicos. Como pode-se falar em cidadania sem o espaço público?

Os pobres, para irem ao trabalho em transporte público, são assaltados nos ônibus. Morando nas periferias das cidades sob o domínio do tráfego de drogas e de um mundo do poder privado, presenciam diariamente o assassinato de jovens vizinhos. Ao começo deste ano, assisti nas areias da praia do Pina, onde moro, uma manifestação de cerca de 53 organizações e igrejas cristãs. Eram 1.000 cruzes pretas de madeira, cada uma simbolizando os jovens, negros, moradores da periferia (90% dos casos, estimativamente) que foram assassinados somente no primeiro trimestre deste ano de 2018, em Pernambuco. O número oficial é divulgado pelo Estado mês a mês, no dia 15. O ano passado, foram 5.427 homicídios no Estado, quase 10% de todas as mortes no Brasil, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Os jovens dessas organizações, predominantemente evangélicas, que dão apoio às famílias que perderam parentes na luta diária nas ruas, pedem mais. Que o Estado publique essas cifras discriminadas por cor, gênero, idade, local de moradia. Pelo menos isso. De alguma forma, a sociedade se move.

Acredito que enquanto os jovens, sobretudo os de classe média, não ocuparem as ruas, espaço de cidadania para o cotidiano de suas vidas (e não somente nas manifestações, seja lá de qual cor), de pouco adiantarão as políticas e os discursos e os planos econômicos, que mudam como as modas, de combate às doenças sociais. Parafraseando o saudoso Gonzaguinha, “Eu acredito é na rapaziada / Que segue em frente e segura o rojão /Eu ponho fé é na fé da moçada / Que não foge da fera e enfrenta o leão /Eu vou à luta com essa juventude /Que não corre da raia a troco de nada / Eu vou no bloco dessa mocidade /Que não tá na saudade e constrói /A manhã desejada. (Muitos de minha geração fazem política pelo retrovisor, estão na saudade).

A sociedade está envelhecendo, não é apenas pela evidência demográfica da pirâmide etária. Poderia ser uma velhinha saudável. Mas está doente. Encolhida de medo.

Nós, brancos e ricos (pois cá entre nós, sendo ricos, somos brancos), estamos igualmente amedrontados. Vivemostrancafiados em fortalezas e nos espaços privados dos automóveis no trânsito, paralisados pelo medo dos assaltos, anunciados à exaustão nas mídias e redes sociais.

A migração para fora do país mudou de configuração. Na década perdida dos anos 80 do século passado, migrava uma classe média baixa, originária inicialmente de Minas Gerais, da região do vale do Rio Doce (Governador Valadares à frente). Essa continua, porém a passos mais lentos. Porém a ela se acrescentou um novo tipo de emigração, principiada aos dois decênios do século XXI: da burguesia e da classe média alta, conservadora, abandonando o país em busca de segurança no estrangeiro. Quem de nós não conhece alguém que já fez ou está em vias de fazer essa mudança de vida? Só falta quantificar e qualificar. Aliás, um bom tema de pesquisa.

Irmão gêmeo do medo, o ódio. Foi o que não faltou nessa campanha eleitoral. Simples diferenças de opção política dividiram amizades e famílias. Dos dois lados que polarizaram a reta final. Esse discurso do ódio cresceu, qual irmão siamês, junto do medo. E não é de hoje. Cito mais uma vez um programa de rádio, desta vez da Emissora da Universidade Federal de Pernambuco, e muito antes das eleições. Uma das entrevistadas, professora doutora, líder (ou ex-líder) do movimento docente da UFPE. Falava, sem fundamentos outros que não os ideológicos, tal como fazíamos no meu tempo de militante da AP, sobre o neoliberalismo, responsável por todas as cifras terríveis que ela citava. Abstraí o conteúdo da entrevista, que nada me acrescentaria, e fiquei a prestar atenção ao tom de sua voz raivosa. Substituísse o neoliberalismo pelo demônio, o tom era o mesmo de uma pastora de igreja evangélica.O mesmo ódio tem a classe conservadora a Lula. Ou ao comunismo, à esquerda, personificados hoje em Cuba e Venezuela. Como Gabeira, acredito que nosso país, com as instituições democráticas relativamente sólidas, resistirá a qualquer das opões que vier a ser vitoriosa pelo voto do povo. E vamos em frente, que atrás vem gente.