Helga Hoffmann

Angela Merkel continuará sendo “Frau Kanzlerin”, chanceler, depois das eleições parlamentares de 24 de setembro. Pesquisas de opinião também na Alemanha podem errar, mas ninguém duvida da vitória de Merkel neste domingo. Alguns jornalistas por isso consideraram monótona a campanha eleitoral dos últimos meses, porque não surgiram brechas maiores no grande consenso político de centro que abrangeu o partido de Angela Merkel, o cristão democrata CDU[1], seu sócio menor CSU (que predomina na Bavária), e o socialdemocrata SPD, do principal candidato de oposição, Martin Schulz.

De todos os países europeus, a Alemanha é aquele em que o centro do espectro político se mantém mais forte, onde, apesar do ganho mais recente do populismo nacionalista do AfD, os partidos extremistas ainda não atingiram índices tão elevados de aprovação. Mesmo assim, se foi monótono o debate Merkel/Schulz, proporcionam susto suficiente os últimos resultados de pesquisas de opinião que apontam para a possibilidade de ter como principal partido de oposição no Parlamento o AfD, em cuja liderança aparecem neonazistas, segundo tem insistido o ex-presidente do SPD Sigmar Gabriel, atual Ministro das Relações Exteriores.

Talvez quando foi fundado em 1945, e mesmo poucas décadas mais tarde, esta inclusão do socialdemocrata SPD em um grande consenso de centro causasse estranheza de um ponto de vista programático, e o próprio SPD se dizia “esquerda”. Hoje A Esquerda (Die Linke) é um pequeno partido extremista. Nestas eleições de 2017 é assim, SPD é centro, e não é apenas porque desde 2005 tem feito parte da coalizão governamental na maior parte do tempo, e continuamente desde 2013. O CDU tradicionalmente se autodefine como “centro”, mas Angela Merkel gradualmente deslocou o CDU para o centro do novo espectro político, tomando nas plataformas dos maiores partidos aquelas demandas que ela passou a defender.

Em 2011 murchou, por assim dizer, o partido Os Verdes (Die Grünen) quando, na esteira do desastre nuclear de Fukushima, transformou-se em opositora da energia nuclear, com um programa de desativação das usinas. No mesmo ano, atendeu o partido liberal FDP que tinha no seu programa a abolição do serviço militar obrigatório (ainda que mais recentemente, em reação aos atentados terroristas, algumas vozes peçam a volta da conscrição obrigatória). Em janeiro de 2015 foi instituído o salário mínimo, velha reivindicação da socialdemocracia. Em meados de 2017, Angela Merkel de novo desarmou críticos à esquerda ao abandonar sua oposição à votação do casamento homossexual, que foi aprovado pelo Parlamento alemão em julho.

Os socialdemocratas do SPD tinham como ênfase programática a justiça social (aposentadoria, emprego precário, creches). Mas com isso não conseguiram diferenciar-se em época de contenção geral do gasto público e uma população em geral contente, com a economia crescendo, se beneficiando das reformas da “Agenda 2010” e da globalização, baixo desemprego, e pesquisas que indicavam menos de 10% da população expressamente infeliz com sua condição econômica. Não puderam nem ao menos se opor a Merkel na idade para a aposentadoria, que ela deixou em 67. No início do ano o SPD tinha caído para 20% nas pesquisas de opinião. Quando Sigmar Gabriel renunciou à presidência do SPD e Martin Schulz foi eleito por unanimidade presidente do partido e candidato a chanceler, em março deste ano, houve uma euforia momentânea, e o partido subiu nas pesquisas de opinião. Mas às vésperas da eleição o SPD está de volta aos 20%, um pouco mais talvez.

Boa parte da explicação é que Angela Merkel ocupou o espaço político socialdemocrata. Ela desarmou quase todas as suas diferenças com os verdes e os socialdemocratas. O eleitorado a conhece. Até agora o principal candidato de oposição, Martin Schulz, era desconhecido do público interno, pois seu ascenso político se deu no exterior. Ele tem currículo respeitável, não é mero pregador de direitos sociais a expressar empatia. Mas podem ter surgido dúvidas quanto à sua credibilidade: ainda que o SPD seja o partido que mais inspira confiança em questões de justiça social, os eleitores ainda não esqueceram, talvez, que foi um chanceler social democrata, Gerhard Schröder, o responsável por reformas que destravaram o mercado de trabalho, mas foram em sua época percebidas como perda de direitos sociais.

E não houve tempo para recuperar a confiança do eleitorado social democrata que Merkel conquistara. As qualidades que tornaram Martin Schulz famoso no Parlamento Europeu e como seu presidente não foram aproveitadas. Sequer a oratória. Oxalá sejam aproveitadas (a depender da futura coalizão de governo) na imprescindível batalha contra o nativismo distorcido e agressivo do AfD no próximo governo.

Fora questões de justiça social, os principais temas da campanha eleitoral podem ser agrupados em política externa, imigração, segurança interna e economia. Houve algum ruído relativo à interferência do presidente russo Vladimir Putin em favor do AfD, em especial junto à comunidades de alemães vindos da Rússia, que chegaram a carregar cartazes em russo em favor dos nacionalistas anti-imigrantes. E mais ruído com a recomendação do Presidente turco Recep Tayyip Erdogan para que turcos não votassem nos partidos da coalizão, criando na Alemanha um partido só de imigrantes turcos depois que foi impedido de levar pessoalmente sua campanha eleitoral às comunidades turcas residentes na Alemanha.

Foi a crise de refugiados, contudo, que trouxe os momentos mais tensos nas discussões. Fato é que também aí Angela Merkel foi aos poucos mudando o rumo e desarmando as críticas mais radicais, ao longo desses últimos dois anos, desde o histórico dia 5 de setembro de 2015 quando decidiu não barrar na fronteira as multidões de sírios que fugiam da guerra e lhe pediam abrigo. Angela Merkel jamais deixou de defender sua decisão de 2015: fechar a fronteira naquele outono teria sido um espetáculo de violência vergonhoso para a Alemanha e teria criado uma catástrofe nos Bálcãs, além de que teria traído com isso os seus próprios valores de solidariedade. Aos críticos que exigiam limites na entrada de refugiados, respondeu uma vez que sabia o que era viver atrás de um muro.

O público externo na Europa sempre foi mais crítico da decisão de Merkel, desde os primeiros dias, quando vários governos se recusaram a receber cotas de refugiados, que Merkel pretendia redistribuir pelos países da Europa segundo capacidade econômica, tamanho da economia e taxa de desemprego. Já o sentimento dominante entre o público alemão foi mudando aos poucos, primeiro quando os números ficaram tão altos que houve medo de desordem, depois com as reclamações de prefeitos em dificuldade para oferecer acolhida. Quando mulheres alemãs sofreram ataques sexuais de imigrantes norte-africanos nas festas de comemoração do ano novo de 2016 em Colônia, o humor do público em relação aos refugiados em parte azedou. Mas o esforço dos políticos e da sociedade civil para integrá-los continuou.

Um grande número dos voluntários descobriu que a parte fácil foi dar chocolate quente, cobertores, e ursinhos para as crianças, ao dar bem-vindas às multidões cansadas e gratas que chegavam em Munique. Mesmo achar abrigo ainda foi viável, em maior ou menor grau de precariedade. Aposentados trataram de ensinar alemão aos recém-chegados, que em alguns casos conheciam apenas caracteres árabes. Até descobrirem que será preciso ensinar também valores democráticos.

O público alemão até hoje não retirou seu apoio à política de refugiados de Angela Merkel: vale lembrar que o segundo colocado nas pesquisas de opinião para esta eleição, o SPD, tradicionalmente defendeu a ajuda humanitária e as populações vulneráveis mais que o CDU/CSU. Mas a política de refugiados teve que mudar quando se viu que a avalanche foi maior que o esperado, à medida que se sentiam suas consequências concretas e o humor dentro da Alemanha foi mudando. Paradoxalmente, em momento de desespero com a queda do SPD nas pesquisas de opinião, Gabriel e Schulz chegaram a pedir endurecimento da política de refugiados.

A própria Merkel declarou que o ano de 2015, quando vieram 1 milhão de refugiados e imigrantes, não se podia repetir. Acelerou-se o exame dos pedidos de refúgio e a devolução dos imigrantes que têm os pedidos de refúgio negados por não poderem legitimamente alegar perigo. Suspenderam-se temporariamente as entradas de imigrantes por conta de relações de família. O controle administrativo das fronteiras foi restabelecido. E Angela Merkel conseguiu acertar com o presidente Erdogan um acordo controverso para manter na Turquia os refugiados sírios e devolver para a Turquia aqueles que chegassem à Grécia. Medidas de patrulhamento discutíveis dos italianos para impedir que barcos com imigrantes deixem a costa da Líbia também devem estar ajudando. E assim o número de imigrantes e refugiados que chegou em 2017 na Alemanha, até agora, é de 80 mil.

Angela Merkel é uma liderança forte, mas a permanência do centro político na Alemanha não é mera questão de personalidade do líder. O povo alemão já sofreu bastante com ambições megalômanas, visões grandiosas de geopolítica e dolorosas divisões, o que explica em alguma medida a preferência da última década pela estabilidade e previsibilidade. Merkel governou 12 anos sem grandes projetos de futuro, reagindo a graves problemas conforme vinham à tona, desde a dívida grega aos refugiados. Existem muitas perguntas em aberto sobre os caminhos futuros da Alemanha na Europa e na ordem mundial. Mais que perguntas sobre Brexit e Trump e nem apenas na economia. Mas não tiveram destaque na campanha eleitoral.

Merkel é a primeira chanceler mulher na história da Alemanha. Embora tenha o voto feminino, jamais veio dela menção de que haja algo de muito especial na participação de mulheres na política. Em um encontro com eleitores nesta campanha uma mulher jovem lhe perguntou “A senhora é feminista?” Ela fez uma pausa, pensando, e a plateia riu. Por fim respondeu que na história do feminismo algumas vezes coincidiu com suas posições, outras vezes não concordou, e encerrou: “de todo modo não gostaria de me atribuir títulos que não tenho”. É Merkel: demagogia zero, grandiloquência zero.

Ela é popular, tem o carinhoso apelido de “Mutti”, mas é claro que está longe de ser unanimidade. Em um comício recente numa pequena cidade no leste da Alemanha, um grupo de manifestantes vaiava e fazia barulho. Merkel continuou seu discurso, que mal se ouvia, e tranquilamente acrescentou, com um sorriso irônico: “Vejo que há pessoas cujo projeto é passar os próximos quatro anos gritando.” Típico Merkel. No momento o que mais causa interesse é saber quem ela poderá escolher para a nova coalizão governamental: de novo os socialdemocratas? Os Verdes? Os liberais que esperam voltar ao Parlamento passando a barreira dos 5%, depois de se fantasiarem de ultramodernos com uma campanha pop?

 

[1] O que representam as siglas partidárias: cristão-democratas do CDU Christlich Demokratische Union e do CSU Christlich Soziale Union;  social democratas do SPD Sozialdemokratische Partei Deutschlands; liberais em economia do FDP Freie Demokratische Partei; nacionalistas anti-imigrantes do AfD  Alternative für Deutschland.