Paulo Gustavo (*)

Marcel Proust (1871-1922).

Primeiro Encontro: Acordar para Proust

Durante muito tempo, não li Proust. Sinto não ter tido um mestre que tivesse me dito: “Leia Proust”. Mas esse mestre curiosamente apareceu na figura de um jovem e amadurecido estudante de Letras, hoje autor de um belo livro de contos, Pedro Moura, um emigrado do Recife na distante e sedutora Londres. O entusiasmo de Pedro por Em busca do tempo perdido foi fatal: inoculou-me o vírus de uma devoção. Até então, Proust era apenas um nome, e um nome, para citar nosso autor, é um “desenhista fantasioso” quando solto em nossa imaginação e, assim, nos induz a equívocos os mais reluzentes. Bem, à parte isso, desconfio que o “mestre” que retrospectivamente imaginei nunca pôde existir por uma simples razão: meus mestres também nunca haviam lido Proust…

Ocorre que Pernambuco nos deu grandes mestres em Proust: Gilberto Freyre, Gláucio Veiga, Evaldo Coutinho e Álvaro Lins. Freyre, embora, até onde sei, nada tenha escrito sobre o francês, gostava de ser considerado um “parente pobre” de Proust, e isso muito provavelmente pelo fato de o crítico Roberto Alvim tê-lo chamado de “o Proust da sociologia”. Gláucio Veiga, jurista de formação, escreveu um interessante ensaio Do conceito de realidade em Marcel Proust, premiado pela Academia Pernambucana de Letras. Por sua vez, Evaldo Coutinho, o filósofo da obra A ordem fisionômica, a quem conheci já em longeva idade e sobre quem escrevi alguns artigos, tinha por Proust uma admiração que se traduziu, segundo já tentei expor alhures, numa influência inarredável; influência que tanto se encontra na obra citada quanto no livro O espaço da arquitetura. Finalmente, é preciso salientar que Álvaro Lins, já então radicado no Rio de Janeiro, escreveu, em 1951, A técnica do romance em Marcel Proust, enterrando de vez a impressão dos incautos de que a Busca não seria ficção, mas tão somente um livro de memórias, como de resto também se pensou fora do Brasil.

Durante algum tempo, acordei cedo para ler Proust. Era preciso recuperar o meu tempo perdido. Talvez o início da manhã seja a melhor hora pra se ler a Busca. A leveza da manhã, quando o dia ainda não nos entregou sua fadiga, quando os sonhos ainda não nos deixaram por completo, será talvez a hora propícia de ouvir a longa e exuberante “conversa” do narrador do romance.

Conta Woody Allen a piada de que ele fez um curso de leitura dinâmica e, logo em seguida, havia lido o volumoso Guerra e paz, de Tolstói. Questionado sobre a obra, respondeu: “Parece que tem a ver com a Rússia”! Talvez de Proust pudesse ter dito: “Parece que é sobre os salões parisienses da Belle Époque!”. Basta essa rápida caricatura para sabermos o que deixar de lado na leitura de Proust: a pressa, todas as pressas. Como diz o filósofo Alain de Botton, uma das primeiras lições do nosso autor é: vá devagar, menos rápido.

Diante dos sete volumes da Busca (o maior romance já escrito!), mesmo leitores experientes hesitam ou simplesmente desistem. Mas isso, ora, implica justamente a primeira e sutil exigência proustiana. A Busca — que tão inteligentemente tematiza, dentre tantos assuntos, o próprio ciúme humano — é, por assim dizer, uma obra ciumenta: exige do leitor uma fidelidade, uma dedicação, uma espécie de imolação no seu altar florido e perturbador, onde os neófitos e iniciados devem se deixar levar pela torrente das palavras.

E é como uma suave torrente que a Busca começa. Um princípio que parece inicialmente ingênuo. Uma voz que se confessa sem qualquer pretensão, como uma discreta nascente de um rio que logo se tornará espantosamente caudaloso: “Durante muito tempo, fui dormir cedo”. É um big bang que nada tem de ruidoso, mas que, por uma associação de impressões de um tempo indefinido, como se oscilasse entre sonho e realidade, vai criar, daí por diante, um mundo que rivaliza com o próprio mundo, pouco importando que o discurso mude de tom, de ritmo, de gênero, e, ainda melhor, desprezando, em sua narrativa, a cronologia factual, caprichando em descrições filigranadas, movendo um enredo que se afoga em reflexões morais, esculpindo com humor e filosofia personagens que o tempo histórico já parece querer sepultar, e, ao mesmo tempo, revelando um lirismo ainda possível, uma estética até então oculta, um olhar que faz os olhares se mirarem sem desconfiarem que todas as cenas podem ser (e são) outras cenas insuspeitadas…

Desculpem, mas preciso dizer como o mestre que nunca tive: Leia Proust. Até o próximo encontro.

(*) Paulo Gustavo, da Academia Pernambucana de Letras, é autor do livro A tartaruga e a borboleta: um caminho para Proust.