Luciano Oliveira

Conversas recentes com um velho amigo e professor da Universidade Federal de Sergipe, Afonso Nascimento, têm revirado minha memória e feito virem à tona acontecimentos do tempo em que estudávamos Direito na velha e saudosa Faculdade na Rua da Frente em Aracaju, no início dos anos 70 – apogeu da ditadura militar. Três acontecimentos especialmente, dos quais nem me lembrava mais (esquecimento que certamente Freud explica…), vieram incomodar minha velha e boa consciência de opositor ao regime dos generais. Hoje vou relatar o primeiro deles.

Antes, porém, um pequeno parêntese. Vejam! O regime militar brasileiro foi o mais longo entre aqueles que se instalaram no chamado Cone Sul naquela época. Iniciado em 1964 e radicalizado em 1968, durou pelo menos até o governo de Figueiredo, que assumiu o poder em 1979 já sem os poderes excepcionais do AI-5, revogado por Geisel. Temos então, calculando por baixo, quinze anos de ditadura. Foi um período em que, apesar de submetida a rígidos controles, a atividade política não desapareceu, as instituições da democracia liberal mal ou bem (mais mal que bem, é verdade) funcionavam, e a classe média brasileira ascendeu ao céu do consumo. O que quero dizer com isso é que um regime tão longo não se sustenta no vácuo; que ele, para durar tanto, precisa contar com a cumplicidade da sociedade sobre a qual exerce seu poder exorbitante, mas da qual, em retorno, é merecedor de acomodação, para dizer o mínimo. Tal acomodação é um gradiente: vai do servilismo puro e simples a pequenas atitudes de pusilanimidade, como a que vou relatar, para minha vergonha, quase quarenta anos depois.

Corria o ano de 1973 e houve uma excursão de ônibus (hoje seria de avião) a três estados brasileiros que, leitores do Pasquim, conhecíamos por Sul Maravilha: Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro. Teoricamente, íamos conhecer experiências presidiárias inovadoras nesses estados. Transporte pago, hospedagem paga etc. Tudo lero-lero. Pessoalmente, não me lembro de ter ido a nenhuma prisão-modelo. De minha parte pelo menos, simplesmente queria conhecer o frio de Curitiba, a garoa do Vale do Anhangabaú e, para deleite final, a Cidade Maravilhosa. Quem podia, se inscreveu para a excursão.

Entre os inscritos, havia um certo João Ferreira Lima – que chamávamos pelas costas de João-Papa-Doce, apelido cuja procedência não sei até hoje. Pouco importa. Importa é que João Ferreira era esquerdista “das antigas”, um daqueles que na época do secundário tinham se envolvido em atividades então chamadas de subversivas, e o seu nome foi vetado pelo assessor de segurança e informações da UFS, um tipo mirrado de nome Hélio Leão (do qual falarei num outro momento). Ele, João Ferreira, não poderia fazer parte da excursão. Um colega nosso, e barrado! E o que fizemos? Dissemos todos que isso era um absurdo, uma injustiça etc., mas pusemos todos a viola de Geraldo Vandré no saco e fomos. Ninguém fez greve de fome, ninguém fez ato público de protesto, ninguém pichou qualquer parede em apoio a João-Papa-Doce. Enfim, para não ser muito exigente, ninguém mandou sequer tirar o nome da lista de felizardos. Fomos!

Fomos, nos divertimos e voltamos. Estávamos e continuamos todos felizes. Somos todos democratas e alguns de nós querem ajustar contas com o passado. Mas acho que muita gente não se lembra de muita coisa… Depois continuo com essas lembranças pouco heróicas.

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