Clemente Rosas

Recorte da A Escola de Atenas, tendo ao centro Platão e Sócrates. – Rafael, 1509/11.

Recorte da A Escola de Atenas, tendo ao centro Platão e Aristóteles. – Rafael, 1509/11.

É usual que as almas religiosas tenham dificuldade em compreender como os ateus podem ter um comportamento ético. A questão é bem-posta pelo personagem dostoievskiano: “Se Deus não existe, então tudo é permitido”.

Os fundamentos da ética, na verdade, têm sido objeto de controvérsia desde a Grécia Antiga, pelos próprios “pais fundadores” da filosofia. Ela aparece bem nos Diálogos de Platão, no debate entre Sócrates e Górgias, em que este defende o primado do instinto e do prazer sobre a recompensa, puramente psicológica, da temperança e da prática da virtude. E percebe-se a dificuldade de Sócrates em contestá-lo. O debate prosseguiu, em tempos modernos, através de pensadores como Nietzsche, que rotulava a moral de “arma dos fracos”, exaltava o tipo ideal do “super-homem”, situado acima dela, e, antes de morrer louco, contribuiu para a formação do ideário nazista da superioridade da raça alemã, fundamentador das campanhas de extermínio contra judeus e eslavos.

Como seria de esperar, a contenda impregnou também a literatura, começando pelo Marquês de Sade, e envolvendo escritores de renome como Oscar Wilde e Hermann Hesse, que conceberam personagens “especiais”, acima dos homens comuns, para quem os preceitos éticos não deviam ter qualquer sentido. O Dorian Gray, de Wilde, pela beleza física e pelo culto às artes, chegou a merecer o sortilégio de uma perene juventude, até a morte, a que o levaram sua vaidade e suas torpezas. O Demian, de Hesse, referência deslumbrada de tantos jovens “rebeldes sem causa” da minha geração, tinha o “sinal de Caim”, seguia apenas seus “impulsos interiores”, e os desígnios de “Abraxas”, “deus e demônio ao mesmo tempo”, que “não se opunha a qualquer dos seus sonhos”. No fundo, nos dois casos, uma bela pregação antiética, ainda mais preocupante pela qualidade dos dois escritores envolvidos.

Ainda hoje, tais criações são recorrentes no pensamento e na ficção ocidentais, na crista de ondas de irracionalismo que têm sido objeto de críticas em outros trabalhos meus. Mas agora, na contemporaneidade, temos melhores fundamentos para nos contrapor às propostas implícitas na caracterização desses personagens, mesmo contra todo o “glamour” que os envolve.

É compreensível a dificuldade de Sócrates, vivendo numa sociedade hedonista e escravocrata, para fundar o comportamento moral, diferenciando bem e prazer, e contestando a lei natural de prevalência do mais forte, ou mais esperto, na ausência de um Juiz Supremo. O mesmo poderíamos dizer da época de Dostoiévski, em que os nobres resolviam suas pendências nos duelos, e os servos da gleba não tinham qualquer direito – sequer o de serem recenseados com regularidade, como reporta Gógol, no seu “Almas Mortas”. Mas na sociedade complexa de hoje, não estratificada, urbanizada, aberta a todas as transformações, estamos em melhor posição para isso. Pois a única maneira de fundar uma ética sem “escoras” sobrenaturais ou divinas, é através de considerações de natureza social.

Em grande número, próximos, plenamente informados, crescentemente cônscios de nossas possibilidades, aspirando a ser mais e a ter mais, como somos hoje, a prevalência da lei dos mais fortes ou mais espertos nos levaria à autodestruição. A velha máxima dos limites de compatibilidade das liberdades individuais já nos diz tudo. E é aí que devemos estabelecer as bases da moralidade. Devemos ser, entre nós, comedidos, honestos, solidários, amistosos e empáticos, no nosso próprio interesse, e pelo futuro dos nossos filhos. Não pelo duvidoso prêmio do céu, ou pelo hipotético castigo do inferno.

E ainda: com todo o respeito aos espíritos místicos que, no plano do foro íntimo, condenam os pecados de pensamento, afirmo aqui sua absoluta irrelevância. Pelo menos no campo dos sonhos, ou de projetos inconfessáveis, podemos ser absolutamente livres. Devemos ser julgados apenas pelas nossas ações, mais precisamente pelas consequências delas em relação aos outros, incorporando-se aí a essencial distinção weberiana entre “moral de convicção” e “moral de responsabilidade”.

Que mais seria lícito exigir, como regra de conduta moral, da parte de crentes ou descrentes?

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