Fernando da Mota Lima

Argument Over a Card Game.

Argument Over a Card Game.

A voz corrente, que dizem ser a voz de Deus, afirma de pés juntos que gosto não se discute. Se Deus tem razão, então convém abolir a estética e de resto qualquer discussão, se é que queremos ser coerentes. Afinal, se gosto não se discute, qual o propósito de discuti-lo? O fato de discutir a questão já deixa claro o que penso: gosto se discute, sim. Tanto se discute que a voz do povo, ou de Deus, vive discutindo todo tipo de gosto, sobretudo o mau gosto que envenenou e corroeu toda uma tradição de debate sempre questionável, mas calibrada por padrões que há muito desceram pelo ralo. A relatividade diluidora promovida pelo mercado chegou a extremos tais que hoje as próprias instituições portadoras da tradição (a escola, o artista, a crítica especializada, o museu, a galeria de arte etc), portanto também detentoras dos meios de canonização da obra de arte, passaram a promover abertamente a desintegração dos critérios que conferiam suporte distintivo à obra e assim legitimavam o debate no campo artístico. Hoje impera o salve-se quem puder. Por isso passei a considerar perda de tempo a discussão do gosto estético, embora tenha acima deixado claro o que penso sobre esse tipo de discussão.

A introdução um tanto embrulhada deste artigo deriva do ânimo relutante com que me decido a entrar no debate meio que empurrado por sugestões procedentes de um artigo que Sérgio Buarque escreveu sobre o filme O som ao redor. Às sugestões do artigo somaram-se vários comentários, inclusive meus. Por fim, o próprio Sérgio escreveu para Sônia Marques e para mim propondo-nos um debate ou a redação de um artigo. Apesar de minha relutância já declarada, fica evidente que me apressei a escrever o artigo tomado pela esperança de que Sônia também amplie a discussão. Mas entro noutra digressão antes de ir ao cerne da questão.

À parte a qualidade notável desta revista eletrônica, ressalto a coerência com que tem promovido o debate de ideias. Aliás, o ânimo questionador da revista está inscrito no próprio título que a identifica e vem estampado em letras nítidas no editorial definidor de suas credenciais. Sabemos que a história da mídia brasileira, talvez universal, está cheia de boas intenções programáticas. Quero dizer, é fácil pregar ideais democráticos e liberdade de opinião; o difícil é exercer uns e outra. Será? dá provas de sua coerência a partir do próprio corpo de editores e colaboradores que têm debatido livremente sem que até o momento nenhuma voz dissidente tenha sido condenada a trabalhos forçados na Sibéria, ou nos canaviais pernambucanos, para ficar em casa, por crime de opinião. Vamos agora ao que importa.

Quando me parecia estar consolidado na voz da mídia (não no gosto ao redor, segundo observação de Sônia Marques) o consenso ao redor do filme de Kleber Mendonça, Sérgio Buarque acelerou na contramão desencadeando essa arenga que não sei aonde vai dar. Aderi à voz dissidente até porque, como deixei claro, não morro de entusiasmo pelo filme. Mas paguei a carona que Sérgio me deu divergindo de passagem do que designei como o “psicologismo” de sua concepção da obra de arte. Dava já as favas por contadas quando Sônia inesperadamente se decide a discutir o gosto que não mais discuto, embora não ceda na minha convicção de que gosto se discute. O comentário de Sônia, assim como o de Homero Fonseca a propósito do meu artigo sobre Sérgio Buarque de Holanda, vale por um artigo. Entre outros méritos, ela me dispensou de esclarecer o que sumariamente anotara como sendo psicologismo, pois seus argumentos deixam claro que a emoção ou a sensação provocada pela obra de arte não é suficiente para qualificá-la.

Sérgio cita um verso de Manuel de Barros que aparentemente confirma sua concepção psicologista. Aliás, friso aqui, para não dar margem a maiores dúvidas, que entendo por psicologismo a recepção da obra reduzida a fatores puramente subjetivos. Se isso fosse suficiente para qualificar uma obra, então seria consistente dizer que uma música barata é cara simplesmente por estar associada a um grande amor perdido. A associação de raiz psicológica entre a canção e a perda do amor me comove independente da qualidade estética da canção. Se analisar ligeiramente a emoção que a música em mim desata, ficará claro que a emoção deriva de uma experiência irredutivelmente subjetiva, que nada tem a ver com a qualidade da música. Eu poderia chorar ouvindo qualquer outra canção associável à experiência da perda amorosa. Isso já aconteceu comigo, também com certeza com muita gente que teve a infelicidade de perder um amor ouvindo uma canção. Por isso convém ouvir Tom Jobim ou Chico Buarque na hora em que o amor nos deixa ou nos trai, pois é melhor chorar um amor perdido ou traído ouvindo Tom e Chico do que ouvindo Adilson Ramos ou Garota Safada. Como se já não bastasse a tortura do amor perdido! Estou apenas reiterando com exemplo e palavras próprias as observações agudas que Sônia anota no seu comentário.

Voltando ao verso de Manuel de Barros citado por Sérgio, aparentemente ele valida o psicologismo que critiquei. Penso, no entanto, que o sentido do verso está longe de ser unívoco. Introduzo aqui outra digressão que importa para melhor definir as linhas do debate. À diferença da linguagem científica e técnica, que visa a precisão, o rigor semântico que no limite alcança o alvo da linguagem unívoca ou de sentido único, a linguagem artística caracteriza-se precisamente pelo avesso do juízo que acabo de enunciar, isto é, quanto mais ambígua é a obra, melhor é a sua qualidade e seu poder de recontextualização e permanência. Toda grande obra de arte, noutras palavras, é composta de múltiplas camadas significativas. Evitando desdobrar o argumento, li há algum tempo uma longa entrevista concedida por Drummond a uma pesquisadora que estava então escrevendo uma tese de doutorado sobre a poesia dele. As perguntas, bem qualificadas, eram uma mescla de pergunta e comentário. Portanto, numa certa medida esclareciam de antemão parte do que o poeta respondia. Devido a essa circunstância, Drummond mais de uma vez concordou com pontos de vista contidos nas perguntas admitindo humildemente que o leitor não raro compreende o poema melhor que o autor. Há uma infinidade de exemplos dessa natureza.

Encurtando a argumentação, pois o artigo excedeu minhas expectativas, a recepção da obra de arte depende de múltiplos fatores, inclusive das nossas próprias expectativas, como novamente observa Sônia Marques. É por essas e outras razões que tantas vezes nos apressamos a dizer que gosto não se discute, ou que a qualidade da obra depende tão somente da emoção que desencadeia. Ou ainda, voltando a Manuel de Barros: o poeta não pensa, sente. Vou afinal esclarecer em que termos entendo o verso. Muitos poemas nascem de intuições, do fluxo emotivo que se apossa do poeta. Talvez por isso Manuel de Barros tenha escrito o verso endossado por Sérgio Buarque em defesa do seu argumento. Mas importa considerar que o poema que brota de uma emoção súbita, de uma sensação imprevista, obedece a princípios de composição racionalmente aprendidos. São os tais valores intrínsecos da obra de arte. No caso do poema, poderíamos lembrar o metro, a rima, o ritmo, a nuança semântica de um termo não raro arduamente extraído dos veios obscuros da língua. Nesse sentido, ser poeta é um ofício como qualquer outro, isto é, requer aprendizagem, disciplina, rigor estético e terminológico e sobretudo experiência vivida transposta para a linguagem. Parafraseando Tom Jobim, fazer poesia não é para principiante. O mesmo vale para as artes em geral.

Concluo justificando o título do artigo. O gosto artístico supõe gradações semânticas que, num certo grau, decidem até onde é ou não discutível. Para quem vai ao cinema matar o tempo (e sepultar a arte) ou fugir dos tormentos da vida, qualquer filme convém, sobretudo os que nos isentam de pensar. Para quem vê um bom filme, rico de significados, mas nisso se detém, apreende a obra dentro de limites pouco refletidos. Para quem vê esse mesmo filme com um amigo ou um grupo de pessoas e ao final livremente o discute à volta de uma mesa de bar, a própria discussão traz à tona sentidos e questões impensáveis no caso precedente. Por isso esta discussão concorre para apurar minha apreensão do filme, embora me falte o mais importante: a mesa do bar. Quem por fim vê um filme informado pelo olhar que a estética educa e refina, vê na obra imagens, sentidos, conexões e ambiguidades inexistentes para outras categorias de receptores. Tentei dizer tanto e todavia concluo consciente de que disse muito pouco. O pouco que disse eu devo em parte a Sérgio Buarque e Sônia Marques. Por que não decidimos esta questão ao redor de uma mesa de bar sem ruído ao redor?