Clemente Rosas

Da série “Sertão sem fim” de Araquém Alcântara.

Literature is a criticism of life – Matthew Arnold

A publicação, na Revista Será?, do luminoso artigo de Paulo Gustavo, a propósito dos cinquenta anos da morte de Guimarães Rosa, levou-me a encarar projeto bastante antigo, para cuja realização me vinha faltando coragem.  Nada menos do que uma abordagem não-apologética do escritor tão louvado quanto pouco lido, verdadeiro monstro sagrado da nossa literatura, assim como já arrisquei com outra figura hierática que lhe faz páreo: Clarice Linspector (ver “Marília e Clarice”, Revista Será?, setembro de 2016).

Duas preliminares, por dever de honestidade, fazem-se necessárias.  Não me situo no grupo dos críticos que apenas analisam o texto literário, em seu aspecto formal.  Para mim, o que conta mesmo é o valor social da experiência transmitida, o recado que se dá.  Como diz o Prêmio Nobel Octavio Paz, “o papel da literatura não é falar solipsisticamente da linguagem, mas servir-se desta para falar de outra coisa”.  E também meu ilustre conterrâneo, o professor Hildeberto Barbosa Filho: “Um grande escritor é aquele que, através da sua obra, alarga e transforma a nossa visão do mundo”.  Por isso, li e louvo o “Retrato de um Artista Quando Jovem”, de Joyce, mas não me disponho a mergulhar nas arapucas verbais de “Ulisses”.

A outra preliminar é a postura, digamos, político-filosófica de Rosa, por ele mesmo proclamada, que se opõe diametralmente à minha, racionalista convicto.  Escreveu ele, referindo-se a seus livros: “Eles são, em essência, anti-intelectuais… e defendem o altíssimo primado da intuição, da revelação, da inspiração sobre o bruxulear presunçoso (grifo meu) da inteligência reflexiva, da razão, a megera cartesiana (idem)… Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanishad, com os Evangelistas e com São Paulo, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff – com Cristo, principalmente”.  Para um médico como ele era, além de diplomata, e portanto homem de ciência, esta opção é para mim decepcionante.  E aqui concluo o alerta contra possíveis vieses na minha abordagem analítica, recorrendo à lição de Gunnar Myrdal, para quem “o único caminho pelo qual podemos nos esforçar pela objetividade em análise teórica é trazer os juízos de valor à plena luz, fazê-los conscientes e explícitos, e permitir que determinem os pontos de vista, os enfoques e os conceitos usados”.

Vamos agora aos livros do famoso escritor.  Li, além de textos dispersos, “Sagarana”, “Grande Sertão: Veredas” e “Estas Estórias” (coletânea póstuma de contos).  Para mim, seu melhor livro é “Sagarana”, do qual guardo forte memória dos contos “O Burrinho Pedrês”, “Sarapalha”, “Conversa de Bois” e “Augusto Matraga”.  Mas também apreciei, em “Estas Estórias”, “Meu Tio, o Iauaretê”, e “Bicho Mau”.  No primeiro, o narrador (provocado por perguntas que o escritor omite) fala de sua vida de “onceiro”, caboclo contratado apenas para matar onças, vivendo isolado nas brenhas.  E sente-se a familiaridade, quase irmandade, do caboclo com os bichos com quem convive, e que respeita, apesar de ter que matá-los.  No segundo, choca e comove a ingenuidade dos matutos que veem morrer, aos poucos, o companheiro picado por cascavel, sem recorrer ao soro antiofídico, iludindo-se, confiando até o fim nas rezas do curandeiro.

Quanto a “Grande Sertão: Veredas”, considerado a obra-prima do escritor, faço restrição ao seu formato: um “tijolaço” de mais de 450 ´páginas, sem divisão em capítulos e quase sem parágrafos, com uma estrutura narrativa de vai-e-volta, que confunde o leitor, além do esforço que lhe é exigido para vencer frases tortuosas, pontuadas de neologismos e jargões desconhecidos.  Na minha modesta opinião, antes de tudo, um desrespeito ao público, para quem, afinal, é feita a literatura.

Mas vamos ser mais objetivos na crítica, recorrendo a dois exemplos concretos.  O primeiro é de um conto lido em alguma revista que, infelizmente, não pude recuperar.  Lembro apenas do título: “Manantônio, meu Tio”.  E posso dizer que, mesmo me considerando um leitor persistente, que encarou obras como “”Os Lusíadas”, “Dom Quixote” e “Os Sertões”, daquele texto não entendi nada.  O outro exemplo está no livro “Estas Estórias”, e posso comentá-lo.  Trata-se do conto “Os Chapéus Transeuntes”, cuja empulhação começa no título, pois se trata da descrição de um velório.

São 36 páginas, longo percurso para descrever, em linguagem rebuscada, a vigília e o sepultamento de um morto, com o registro da presença de familiares de nomes arrevesados: Junhoberto, Maricocas, Nearquineias, Marmarina, Panegírica, Reneném, Veratriz, Etcetera, Ratapulgo Bugubu…  Entre estes, um certo tio Nestornestório, cujo nome é referido 41 vezes, com variações alternadas: Nestorionestor, Nestornestório, Nestorionestor… Ora, amigos, o que é isto, além de maneirismo, ludismo verbal inconsequente, trato leviano do nosso idioma?

Fala-se, em tom de louvor, que Rosa, com seus neologismos e sua sintaxe inusitada, construiu uma nova linguagem.  E eu pergunto: que mérito há nisso?  A missão da literatura não deve ser essa, como afirmou Octavio Paz, já aqui citado.  Ou vamos fazer coro a Paulo Leminski, que declarou, em relação a seu caudaloso livro “Catatau”, que seu único objetivo era “torturar palavras, e a sintaxe”?  Concluo com Merquior: “O formalismo é o nome geral da consciência estética acometida por indiferença ou insensibilidade em relação à problemática da civilização”.

Por outro lado, faço distinção entre os escritores que viveram a realidade de onde extraem a matéria de sua ficção, e os que a investigam e reportam, como pesquisadores ou jornalistas.  Ariano morou até a adolescência no sertão paraibano, José Lins foi criado num engenho do Vale do Paraíba.  É o caso também de Melville e Conrad, marujos que falam de suas vivências em “Moby Dick” e “Lord Jim”.  E, embora não conheça as vidas pregressas deles, imagino situação semelhante em José Cândido de Carvalho (“O Coronel e o Lobisomem”) e Mário Palmério (“Vila dos Confins”), este, mineiro como Rosa, injustamente esquecido.  Todos esses não configuram o caso do nosso comentado, que apenas seguiu, por 45 dias, uma “comitiva” de gado, com um caderninho ao pescoço, anotando dizeres e falares, que depois reproduziu em seus textos, retrabalhados com sofisticação.

Cabe aqui outro registro, do crítico espanhol Antonio Vilanova: “Os escritores que não têm uma verdade no sangue, raízes, origens, espaço/tempo a que se sintam pertencer e que aceitem ou repudiem, não realizam uma obra.  Apenas escrevem livros que até podem ser bons, interessantes ou emocionantes no ato da leitura…mas que não duram na memória do tempo”.

Finalizo com uma especulação que, espero, não magoe os admiradores incondicionais do autor de “Sagarana”.  Arrisco uma hipótese explicativa para a notoriedade desse ficcionista, lido por pouca gente e compreendido por ainda menos.  Não haveria, mesmo que subconsciente, uma motivação política para exaltá-lo, em contraposição a romancistas “”engajados” de alguma forma, como Jorge Amado, Graciliano, José Lins, Rachel de Queiroz (por algum tempo), e outros menos conhecidos?  Todos esses escritores tratam de problemas sociais, mais ou menos diretamente, e podem ter sido incômodos, em período histórico de exacerbação de tendências políticas.  Enquanto em Rosa, tomando como principal referência “Grande Sertão: Veredas”, não há qualquer indicação, por exemplo, das motivações dos grupos armados que se digladiavam no interior mineiro, nem da condição social dos combatentes.  Por que combatiam eles?  O substrato histórico-social permanece oculto, intocado.  Seus personagens parecem atores sem papel, num picadeiro ao léu.  Por isso, o autor seria uma alternativa mais palatável para os conservadores e os que veem a literatura apenas como “o sorriso da sociedade”.

Não desconheço a nobre atitude dele, enquanto nosso diplomata na Alemanha, ao facilitar a emigração para o Brasil de judeus perseguidos pelo Nazismo – para o que foi motivado, ressalve-se, pela sua esposa, funcionária do Consulado.  Mas, além do declarado misticismo a que me referi, com expresso desacordo, inicialmente, não se conhece manifestação político-filosófica sua.  Seria pela condição de diplomata?  Na tônica interrogativa desta Revista, deixo a questão. Terá sido mesmo?