Fernando Dourado

Franck Pelux, Cédric Moulot et Sarah Benahmed “Au Crocodile”.

Quase todo dia, nas deambulações que faço em ziguezague pelo Mercado de Natal de Estrasburgo, passo pela rue d´Outre. Trata-se na verdade de um beco ricamente ornamentado, bem atrás do imenso pinheiro cheio de guirlandas da praça Kléber que, ano após ano, chega de algum lugar da Floresta Negra, para assinalar o marco zero das festividades. Uma vez por lá, a depender da hora, paro para tomar uma taça de vinho no Le Schluch, um bar aconchegante onde os dois atendentes destilam uma acolhida mundana e descontraída e que, pensando bem, faz falta à paisagem alsaciana em geral. Como é de se esperar, a germânica Estrasburgo é mais dada ao formalismo e à impessoalidade do que a mediterrânea Marselha. Sentado à janela, leio o jornal local e, invariavelmente, vejo o movimento do lendário restaurante “Au Crocodile”, que fica bem na frente, a sete passos contados de uma porta à outra, nesta simpática artéria proibida para carros.

Fosse em outros tempos, o certo é que já teria cedido à curiosidade e lá teria ido jantar pelo menos uma vez, sozinho que fosse, ou na companhia de minha gentil anfitriã. Mas a encararmos os fatos como eles são, começa a me faltar a aptidão que sobrava no passado para frequentar ambientes excessivamente formais. E aqui já nem falo tanto do preço, mesmo sabendo que comer lá significa pagar por uma vez, o equivalente a quatro almoços completos em bons restaurantes da cidade. Se isso não chega a ser um despautério, incomoda mais o fato de ter que me vestir adequadamente. Não se trata no caso de colocar terno e gravata, mas, pelo menos, de não me apresentar em meus trajes de apagar fogo habituais, o que vale dizer em malhas desfiadas por dez anos de rodagem, jeans salpicados de marcas de tinta de caneta e um blazer azul-marinho a cujo punho direito falta um botão dourado, e a que teria feito bem um pouco de Lycra na composição, para comportar as oscilações de meu ventre protuberante.

Isso porque não se vai a um restaurante de celebração, a um local quase mítico pelas leis da alta gastronomia, com o mesmo traje e espírito com que se entra numa taverna de Neudorf para atacar um chucrute de linguiça, chouriço e costela, cercado muitas vezes por operários de macacão manchado de cal e por comerciários que nos acostumamos a ver do outro lado do balcão. A haute cuisine demanda algum recato e uma allure que vem de dentro. Ora, muita gente acorre a esses locais para comemorar uma ocasião importante ou para receber visitantes de prestígio. A presença de um aventureiro em flagrante desleixo, gera uma dissonância que a todos constrange. O tênis branco, adereço horroroso tão caro a brasileiros em trânsito, lá seria quase sacrílego, e só seria tolerado se o comensal fosse americano e notoriamente endinheirado, uma combinação que não surpreende e que tem seu encanto até mesmo para austeros restaurateurs gauleses.

Estava eu entretido com essas divagações, bem próprias de quem se acostumou a alimentar debates bizantinos consigo próprio, quando li ali mesmo no Le Schluch que o lendário “Au Crocodile” ganhara na véspera o título de melhor restaurante do mundo, conferido pelo site TripAdvisor. Por mais que se saiba que esses galardões podem ser anabolizados de uma forma ou de outra no universo do numérico-digital, e que se prestam mais a fazer barulho do que a significar de fato o que pretendem aos olhos de um público iniciado, era inevitável que o estabelecimento passaria a ser mais concorrido do que já é. É claro que o título não oblitera o fato de que ainda lhe faltam preciosas duas estrelas Michelin para atingir o panteão da glória suprema, trunfo que já foi seu nos anos 1990. Mas, ao que tudo indicava, os novos proprietários estavam determinados a restaurar-lhe a glória de antanho, e tinham acabado de dar um vigoroso passo nessa direção.

Ora, nos últimos anos, sempre que fazia menção a minhas intermináveis temporadas em Estrasburgo, a depender do interlocutor e de suas aptidões, era comum que ouvisse admoestações. Como é que se explicava que ainda não tivesse ido ao restaurante icônico? Ao saber agora que “Au Crocodile” atingira altitudes estratosféricas, e dentro em breve as contas seriam impagáveis, atravessei a rua e pedi uma reserva para o almoço do dia seguinte. Como esperado, a recepcionista arqueou as sobrancelhas e disse que a casa estaria lotada. Ora, um homem gordo desenvolve ao longo da vida um repertório vasto de estratagemas e caretas para mostrar que está à beira da inanição, e que talvez não sobreviva à fatalidade da notícia desalentadora. Se tem peso na casa dos três dígitos, então, significa que ele já chantageou com sucesso dezenas de estabelecimentos mundo a fora, ademais da mãe e namoradas. Deu certo. “Venha amanhã às 12:30, Monsieur“.

*

Pensando em retrospectiva, deve ser frustrante para quem vai sucumbir a uma conta de mais de cem euros, ser alojado no primeiro salão da casa, aquele onde está o púlpito da recepção. Para quem entende minimamente da simbologia dos locais, fica patente que o ambiente principal é o próximo. Pois bem, foi para lá que fui escoltado, o que atestou que as credencias frias que eu apusera com estudada displicência ao confirmar os dados de reserva, tinham surtido o efeito esperado. “Obrigado por confirmar, Mademoiselle. Com as mortes de Paul Bocuse e de Joël Robuchon, estou mesmo precisando descobrir novos grandes chefes. É pelo menos o que sempre digo a Claude Troigros quando estou no Brasil”. Eis um blefe na medida para credenciar o homem corpulento que sou e que, pelos trajes andrajosos, bem poderia estar àquela hora engrossado uma manifestação dos Coletes Amarelos, apesar do falar cheio de subtons. Seria um excêntrico? Peut-être !

Os dois grandes salões do restaurante são relativamente despojados, que ninguém se iluda. Não têm o requinte do pequeno elevador do Lasserre parisiense, onde André Malraux ia comer o famoso pombo assado que ainda leva seu nome. Mas tem sim uma imensa e esplendorosa tela de um certo AD. Grison, de 1874, retratando o que me pareceu ser um deslumbrante dia de verão numa aldeia alsaciana. Nela uma criança brinca com um cachorro e umas cinquenta pessoas parecem prestar atenção à pregação de um homem idoso que preside o abate de um porco, num mar de cores quentes que mais parecem falar, a ponto tal de ser impossível não lhe prestar atenção detida e prolongada. Mas minha chegada não caiu na indiferença desejada, hélas. Um senhor me mediu dos pés à cabeça e minha corpulência deve tê-lo incomodado a ponto de sussurrar algo à esposa que, de pronto, assentiu, sem qualquer preocupação com a discrição. Intuitivamente, levei a mão à braguilha, e percebi que o zíper estava aberto, deslize prontamente corrigido.

Se a abertura clássica para esses momentos pede uma taça de Champagne, honrei na Alsácia seu famoso Crémant, a versão local do espumante. O sommelier me serviu então uma taça de Fend, uma marca da região de Colmar que, segundo disse com pompa e alguma simpatia, deu-lhe muito trabalho para encontrar: “É um blend especial de uvas Pinot com Chardonnay, Monsieur. Acho que agradará”. Mas como não? Os três primeiros goles descem e mais parece que saciam uma sede ancestral, como se eu viesse clamando há uma vida por aquelas bolhinhas nervosas e levemente cítricas que rescendiam às primaveras luminosas do Alto-Reno. Uma garçonete gorducha, e mais aplicada do que simpática, trouxe dois pratinhos com pequenas surpresas da casa, sendo uma delas um sabayon de trufas a ser degustado com colher, servido numa casca de ovo estilizada de porcelana de Limoges. Chapeau.

Vem então a hora de examinar o menu. Na grande página da esquerda, pontificam os clássicos da casa: coxas de rã com grãos de caviar e lagosta da Bretanha com toques asiáticos. Opto pelo menu “Marché de Noël” de quatro pratos, a 82 euros, o que me parece sensato diante do que seria montar um almoço à la carte. Peço também a opção de degustação de três vinhos com os pratos, o que somará mais 41 euros à conta. Termino a taça de Crémant e os eflúvios de uma leve alegria me envolvem naquela sensação de plenitude que antecede as boas quadras da vida. Ali, à espera da chegada do primeiro prato, sinto que valeu a pena ter nascido. Afinal, recebera da vida o que tinha pedido. Se mais não chegou, foi que mais não pedi. Ou pelo menos assim me pareceu. O que teria feito de diferente, tivesse uma segunda chance? Não sei. Terminei a flûte com vontade de outra, mas me contive. Equilíbrio de sabores é tudo nessas ocasiões. Nenhum sabor pode prevalecer sobre os demais.

De volta do lavabo pletórico onde poderia morar, eis que chega à mesa uma figura extraterrestre. É ela, a Maîtresse de Maison – em outros tempos esta nomenclatura indicava um métier distinto, mas igualmente intuitivo -, a jovem mulher a quem a imprensa credita parte do sucesso da casa, a figura sílfide de Sarah Benhahmed, companheira do chefe Franck Pelux. A cabeça encimada por enorme coque, mais parece que saiu de um quadro de Renoir ou de Degas. “Vous êtes du Brésil? Non…j´adore les brésiliens, moi...” Então Sarah me conta que os acolheu em profusão nos grandes restaurantes alpinos de Courchevel, à beira das pistas de neve, e às mesas de Saint-Tropez. “Uma gente de bom gosto, que não faz conta na hora de ter do bom e do melhor, uma clientela que tem o senso da amizade e que a cultiva com o mesmo carinho que devota à família”. Deveria eu admitir que não integro o clichê generoso? Não. Primeiro porque ela não acreditaria. Depois porque tudo aquilo é consigne de politesseMerci, Sarah. Isso é o que se chama de conversa de salão.

*

Mal Sarah sai para distribuir simpatia à mesa de um casal com ares de habitué, minha escudeira traz um potage alsaciano aromático a ser tomado na tigela, junto com um Dampfnudel, uma broa alsaciana deliciosa que equivaleria – tenho horror a isso, mas vá lá – a um pão de queijo muito bem assado e untuoso por dentro, o que já é raro de se ver. “É uma homenagem às nossas avós”, diz ela enquanto faíscas parecem lhe saltar dos olhos esverdeados e cintilantes. Na França, a brigada não tem por hábito identificar-se pelo nome como nos Estados Unidos, o que é um alívio. Ao cabo de 40 minutos desde que chegara, veio o primeiro prato. Um delicado carpaccio de vieiras de Port-en-Bessin, na Normandia, departamento de Calvados. As lâminas uniformes são servidas numa emulsão iodada da cozinha molecular com um molho aveludado verde e frio, próprio do agrião. A praxe manda que se examine detidamente a composição antes de usar o talher.

Para acompanhar as vieiras do Atlântico, um cálice de bom Sylvaner Rosenberg, um vinho jovem que não bebia há anos, e que felizmente não caiu em desuso como o Muscadet. Deixo então que os olhos vagueiem pelo ambiente na tentativa de me libertar da imensa tela que, afinal, é imponente mas também impositiva. Num pequeno reservado ao lado direito, uma espécie de loge, está um casal de amantes, talvez em comemoração antecipada do Natal. Sei disso porque não se tocam, mas trocam olhares excessivamente abrasivos para o ambiente de alta gastronomia. Ao pé do quadro, à esquerda, um homem pouco mais velho do que eu afaga a mão da esposa, que poderia muito bem passar por uma tia meio velhusca, vinda dos Vosges para o Mercado de Natal. Na vertente direita, vejo um idoso com ares prósperos e desabusados, acompanhado de uma mulher sem grande tempero, meio-século mais jovem. Pode ser uma neta, uma advogada da empresa ou uma moldava de ocasião.

Retirado o prato e a prataria reluzente, é a vez de o garçom passar o ramasse-miettes, aquela pequena espátula que passeia sobre a toalha de linho para recolher as migalhinhas que se soltaram das fatias do imenso pão orgânico, que foi servido ao lado de um lindo cubo de manteiga amarela de Isigny Sainte-mère, um degrau seguro para estouros no colesterol, um atalho insuspeito para um cateterismo de urgência. Vejo que às mesas cujo movimento posso acompanhar, o rito é mais ou menos o mesmo, o que significa que todo mundo – salvo o vovô que comeu o linguado da Bretanha a 128 euros – está seguindo os passos do menu de Natal. Termino a taça do Sylvaner e vejo o sommelier que se aproxima com o segundo vinho, este adequado à Daurade – o peixe sargo – que vem a caminho. Traz então um Beaujolais-Villages branco, Domaine des Nugues, ultra mineralizado, portanto sem resquícios do tinto genérico e festivo que se toma no outono. Parfait !

O sargo vem envolto numa leve crosta de farinha de pão, acompanhado de um talo de aipo confeitado e tenro, e de um molho de manteiga branca defumada que exala mil aromas. A profusão de elementos nos pequenos pratos da alta gastronomia tem o dom de saciar nossos anseios mais secretos. É como se uma dose concentrada de cada sabor e textura fosse portadora de muitas mensagens à exigência alerta dos sentidos. Ao cabo do segundo cálice de vinho, me pergunto como as pessoas podem usufruir plenamente de uma experiência dessas sem falar muito bem o francês. Pergunto e repondo: é impossível. Não há explicação ou didática estrangeira que sintetize os pequenos recados que cada prato tenta passar. A mitologia da alta cozinha – ingredientes frescos, ênfase no terrroir, sustentabilidade e primor na execução -, dificilmente pode ser embalada em outro idioma. É como fazer sexo de fraque e cartola. É como tentar explicar futebol em javanês.

Ao terminar o peixe, vi que já estava na casa há uma hora e meia. Em qualquer restaurante da cidade, dos tantos que frequento, já teria lido nos jornais praticamente todo o noticiário do mundo e o da França em especial, enredada que está com seus Coletes Amarelos e com o sequestro do PDG da Renault. Mas no “Au Crocodile”, abrir um jornal seria uma afronta a todos aqueles cuidados. Ficar indiferente à coreografia da brigada, que poderia ter trabalhado em Versalhes em torno do Rei-sol sem fazer feio, seria um despropósito de bárbaro, e banalizaria a experiência dos convivas. Sarah sorri. “Já chego com uma surpresa que o encantará”, e sai saltitando como se estivesse no palco do Bolshoi, em “Quebra-Nozes”. Levemente embriagado, tiro uma foto do grande quadro sem sair de onde estou, e o vovô me olha com enfado. Sorrio e simulo um aplauso, apontando com o queixo a jovem. Ele retribui com ar canalha. Neta, já vi que ela não é.

*

No “Croco”, como o chamam os íntimos, cada etapa do almoço é definida como um ato. Acte é a palavra que consta do cardápio, o que é bem mais belo do que course em inglês. A caminho portanto do terceiro ato, eis que surge Sarah em seus mocassins pretos e saia esvoaçante de crépon de seda, com cara de ter saído direto das vitrines da Colette ou do ateliê de um costureiro amigo e cúmplice de sua persona. Com um sorriso, pergunta, coquette, se eu poderia cheirar uma emulsão que ela traz na ponta dos dedos longos, num pequeno pote de prata. É o molho da carne, fruto de pelo menos dez horas de redução em fogo brando, de ossos comprados de um abatedouro credenciado. São estas cocções lentas, a alma da cozinha francesa pois tudo começa com a sauceExquis, digo com ares de connaisseur, sem fazer caso das narinas sempre meio obstruídas, dois singelos dutos de ar para alimentar o fole de um corpo de dez arrobas, refém de centenas de caprichos.

As duas fatias de vitela de gado Limousin são espessas e estão quase cruas. Medem o equivalente a um isqueiro descartável dos grandes, não mais. Ao lado, temos uma declinação – é este o termo ali usado para uma coleção – de batatas Amandine, uma variedade bretã do tubérculo precoce, muito em voga hoje na mesa francesa. Para acompanhar, um tinto Chinon 2012 de Appélation Contrôlée, da casa Bernard Baudry. Ao primeiro gole, a embriaguez toma conta de mim. Sim, eu nascera para aquilo. Com tanta riqueza de sabor ao alcance da mão, estava apto para confessar diante de qualquer espelho que sim, tinha vivido. Mais um pouco de vinho, e adentrei o terreno escorregadio da autocongratulação. Fizera bem em não gostar de carros, de imóveis, de renda fixa, de previdência privada ou de colecionar aposentadorias. Dedicaria meus dias ao de sempre: trabalhar e viver, de mim tudo dando, da vida tudo tirando. Até estourar. Boum. Então, partiria sem deixar saudades, porém saciado.

Espalhando as últimas colheradas do molho condimentado sobre as batatas rendilhadas, peguei-me contemplando o vinho que ainda enchia um sexto da imensa taça. Quando cheguei, antes mesmo do primeiro ato, dera uma olhada na carta do sommelier, um cartapácio de oitenta páginas, um terço delas dedicadas à Alsácia. A imensa maioria das garrafas estava na faixa dos três dígitos. O Châtauneuf-du-Pape, queridíssimo entre brasileiros endinheirados pela ressonância do nome longo que impressiona, vai de duzentos a seiscentos euros, segundo a appélation. Já o vinho que valeu antipatias generalizadas a Lula, o Romanée-Conti, um grand cru por excelência, está a doze mil euros, ou quase sessenta mil reais, mimo que para o presenteador, o baiano Duda Mendonça, estava mais do que bem pago. A brigada me observa com ares de quem parece adivinhar meus pensamentos. Sim, Monsieur, ainda teremos sobremesa.

Eis que Sarah aparece mais uma vez. “Et alors, como estão as coisas até agora?” Na verdade, já transcorrera o tempo de um voo entre São Paulo e Salvador desde que chegara ali. Resolvo dessa feita tomar a iniciativa e dar vazão à minha curiosidade. Pergunto-lhe se já foi bailarina. “Mais bien sûr”, responde como se eu tivesse perguntado uma tolice, como se não fosse obrigação dos clientes saber que ela, Sarah Benahmed, já dançara. “Na preleção que faço duas vezes ao dia à nossa brigada, dou muita ênfase ao gestual, Monsieur. Não basta conhecer os vinhos e a riqueza do cardápio, senão servir os pratos com uma coreografia que realce todo seu esplendor”. Por um momento, olho-a no fundo das pupilas e a imagino nua, estatelada sobre um lençol de seda preto, repetindo cada sílaba daquela explicação à minha orelha, com a mesma voz sussurrante. Divago, ela percebe. Vous allez bien? Sim, claro, desculpe, muito bem. Passemos ao quarto ato. Penso então em Rita Lee: de quatro no ato. No quarto, ao ato. Velho senil.

Tomo então um copo inteiro de água mineral Lisbeth e tenho a sensação de que comi uma enormidade, e que nada mais pode me interessar àquela altura. Pessoas mais moderadas, pedem nessas horas a conta e tentam em desespero fugir do local. Não que os pratos tenham sido abundantes. Em qualquer churrascaria, eles pesariam tanto quanto uma porção de salada. É que a riqueza gustativa talvez leve à saciedade. Não é à-toa que praticamente não há rico obeso. A obesidade é própria daquele cardápio de batalha que empanturra, mas não alimenta. Percebo certa movimentação em torno do chef pâtissier que viverá logo mais seu momento de glória. Pois pelo menos os comensais que consigo ver da mesa, quase todos se preparam para a anunciada tartelette d´enfance au chocolat. Que crianças privilegiadas, então, foram os alsacianos. Sarah evita meu olhar ébrio e percebe que estou quase levitando. Mas vejo que sorri com o canto da boca.

*

Quando aterrissou no prato o pequeno disco de torta de chocolate, pensei sim nas mulheres que amei de verdade. É reflexo condicionado, quase instantâneo de um homem de outras épocas. Da mesma forma que ainda consagro a prática de destacar os suplementos ditos femininos dos jornais domingueiros e passá-los de imediato às mãos de uma mulher que esteja próxima – pois era assim que papai fazia com mamãe -, os doces para mim são caprichos eminentemente femininos. Só em São Paulo descobri essa estranha propensão dos homens de se confessarem chocólatras assumidos, cacoete que nunca assimilei a pleno. Gostar de doce é feminino. Mas a tartelette era extraplanetária. Sobre uma composição de quatro texturas de chocolates, dançava uma gota enorme de sorvete frio de uma certa fava de Tonka, a quintessência da harmonia, do casamento feliz, da criação sem mácula. O que fizera para merecer tanto? Senti uma lágrima embaçar a lente dos óculos.

À espera do café, lembrei do velho Barbosinha, amigo-irmão de Nilo Coelho, o brioso pernambucano de Petrolina, nosso ex-Governador, que conheci nos anos 1980. Um conhecido dele, brasileiro, residente em Londres, trabalhava no Lloyds Bank. Toda manhã, lia o tabloide no trem, a caminho da City. Então deparou certa feita com uma resenha elogiosa sobre um restaurante em Lyon. Ligou para a esposa, ela reservou uma mesa para o sábado seguinte, compraram as passagens e chegaram ao local com o cardápio do jornal. “Reproduza isso aqui tal e qual, Monsieur“. O patron cumpriu tudo à risca. E veio à mesa colher os comentários do casal que viera de longe para prestigiar seu bouchon. Encantado com as apreciações do brasileiro, um homem que via comida como arte e não como combustível, ofereceu um Armagnac e ambos celebraram o feliz encontro como se fossem amigos de longa data. Mas o pior da noite estava por vir.

Isso porque, quando o amigo de Barbosinha pediu a conta, o dono do restaurante riscou o ar com um gesto e respondeu que estava paga, que era convite da casa. A esposa, a única sobrevivente do episódio nos anos 1980 – década em que ouvi inúmeras vezes o relato, na narração inigualável do pelotense José Francisco Barbosa -, disse que o marido e o comerciante quase chegaram às portas do pugilato. Um insistia que era um homem próspero. O outro rebatia que aquela fora sua maior alegria, a de ver o casal comer com prazer, e que, naquela noite, receber dinheiro por sua arte era o mesmo que se deixar prostituir. Ele sim podia se permitir dar um presente. Numa versão, o francês aceitou o dinheiro a contragosto. Em outra, só o pagamento das bebidas. Na última, o banqueiro nada pagara. No dia seguinte, diante da catedral de Lyon, o brasileiro se ajoelhou e recuperou a fé perdida há meio-século. Reatara com a divindade graças à comida.

Então chega o café. Ao lado, vejo uma baga de cacau em prata, salpicada por um pó marrom que lembrava achocolatado. Efetivamente, ao abri-la, a gordinha me avisa com um ar de pesar na voz lacrimosa: “Pérolas de chocolate venezuelano com 75% de pureza”. Vendo a minha perplexidade, ela assente. No fundo, todos ali devem ter se perguntado: como é que aqueles pedacinhos de chocolate tinham sobrevivido à débâcle do pais vizinho? Quer dizer que alguma coisa ainda tinha se salvado da sanha dos populistas? Com um misto de pudor e compaixão, deixei-os se dissolver na boca como hóstia, com o pensamento no sicário do Nicolás Maduro que, ainda meses atrás, se empanturrava em Istambul das carnes do chefe Salt Bae, enquanto em Caracas não havia farinha de milho para se fazer uma mísera arepa. Passava das 3 da tarde quando pedi a conta. O número veio cravado: 151 euros, ou uns seiscentos reais.

 

Chegava ao fim minha aventura, a extravagância da temporada. Se o “Au Crocodile” se manterá como o melhor do mundo para a TripAdvisor, isso já não me interessa. Se eu tinha hesitado entre ir ao restaurante e comprar um pulôver para substituir o azul-marinho, ou ainda adquirir uma edição de “La Pléiade” com a obra de Roger Martin du Gard, algo me diz que a experiência valeu mais do que qualquer investimento em coisas. À saída, Sarah veio para a sessão de fotos. Vous êtes adorable, me disse. Ao lado dela, o chefe Franck Pelux, seu marido, sua aposta, o parceiro de empreitada. Pousamos e, feitos dois disparos, recebi o menu autografado, personalizado e datado. Na despedida, não há dúvida que uma emoção perpassou o ar. Como voltar à vida normal, como me diluir no meio da multidão de Natal da rue de l´ Outre? Era um monarca destronado, um príncipe tornado sapo, o encanto se quebrara. Podia ir ao Le Schluch e tomar um álcool forte. Ou poderia escrever a respeito.

Foi o que fiz.

*

Muita gente diz que veio à França, gastou uma fortuna e saiu do restaurante com fome, de lá indo direto a uma pizzaria. Efetivamente, o valor gasto no “Au Crocodile” por este escriba – bastante modesto, aliás, para os padrões da haute cuisine francesa-, daria para alimentar dez bocas na mesma rua, com copiosas porções de quiche, salsicha com chucrute e/ou com um sem número de iguarias que pontuam o copioso roteiro alsaciano. Não seria demais dizer que ninguém deve ir a um restaurante de haute cuisine para matar a fome. Trata-se de uma experiência multissensorial, tão inebriante quanto podem ser nossas boas churrascarias aos olhos de visitantes do mundo todo. De mais, ninguém faz isso todo dia. É difícil, na verdade, conceber uma vida sem arte. Pior mesmo, porém, é morrer sem ter descoberto seu capítulo preferido nos misteres da art de vivre. Neste particular, acho que não me equivoquei. O mais será só cinza fria. Cinzas sem brasa.