Luciano Oliveira

Jornaleiro.

Mas vejam só: no último “hebdomadário” (11/05/18) eu citava – sem declinar o prenome – um autor que não era Groucho, mas que evidentemente era Marx, sem me dar conta de que estava fazendo o que parece ter sido uma homenagem enviesada a Karl Marx, cujo bicentenário de nascimento ocorreu no dia 7 de maio último, quando o texto que enviei à Será?já estava pronto. E agora? Bem, como sabem meus cinco leitores, o pensamento de Marx (marxismos à parte) continua sendo para mim um instrumental valioso para se analisar os processos políticos, sociais e econômicos que se dão à nossa volta. Resolvi, assim, homenageá-lo, mas, para isso, vou me valer de outro viés. Ele se chama Claude Lefort, filósofo francês nascido em 1924 e morto em 2010 (muito lido entre nós nos anos 80, e hoje bastante esquecido), cuja reflexão sobre o que ele chamava de “invenção democrática” – que fiz minha numa tese de doutorado preparada sob sua orientação nos anos 80 – marcou muito minha própria maneira de olhar o mundo.

Jovem estudante de filosofia nos anos 40, numa Paris ainda ocupada pelos nazistas, Lefort descobre o marxismo revolucionário e torna-se trotskista. Já nessa época, contudo, o stalinismo, segundo conta, lhe “inspirava uma instintiva aversão”. Mais tarde, já nos anos 50, funda com Castoriadis uma revista – Socialismo ou Barbárie– que se tornará um marco e referência obrigatória no pensamento socialista libertário daqueles anos. Depois, abandonará qualquer perspectiva “revolucionária” e fará do fenômeno democrático, até o fim da vida, o mote do seu pensamento. Nem por isso renegou a obra de Marx; ao contrário, criticou duramente os “novos filósofos” franceses (todos ex-revolucionários) que nos anos 70 passaram a tratar o velho barbudo como um cachorro morto. Pois bem. Justamente no ano da morte de Lefort publiquei um pequeno livro sobre o seu pensamento – O Enigma da Democracia (Piracicaba, Jacyntha Editores) – que foi um sucesso de estima junto aos amigos e um fracasso de público. Modéstia de banda, é um livrinho de que gosto. E o que se segue é uma transcrição de duas de suas páginas onde discorro sobre o percurso lefortiano que, nesta homenagem a Marx por intermédio dele, faço meu:

“Vale a pena lembrar que entre os anos trinta e quarenta do século que passou ? período da formação de Lefort ? a democracia liberal, essa que hoje é praticamente consensual no mundo inteiro, parecia estar com os dias contados. Era considerado um regime fraco, caótico e demagógico, que não conseguia formar governos estáveis e, além disso, não era capaz de cumprir suas promessas ? inclusive de justiça social. Houve mesmo um momento em que praticamente todos os países europeus, com exceção da Inglaterra (por ser uma ilha?…), tinham adotado formas autoritárias de regime: o fascismo na Itália, o franquismo na Espanha, o salazarismo em Portugal, o nazismo na Alemanha… E a França, no rastro da débâcle de 1940, quando praticamente sem luta entregou-se às forças de Hitler, adotou o regime pró-nazista do Marechal Pétain. Isso do lado ocidental do planeta. Do outro, havia a presença impressionante da União Soviética, o primeiro regime socialista do mundo instalado num dos maiores países da terra. E que, pelo menos nessa época ? é bom relembrar isso às novas gerações ?, parecia funcionar! O stalinismo, malgrado sua brutalidade, tinha feito de uma nação medieval, a Rússia dos czares, uma potência industrial ? e, ao fim da segunda guerra mundial, uma das superpotências vencedoras. Era o tempo dos grandes engajamentos. Quem tinha uma sensibilidade conservadora, alinhava-se à direita; quem queria mudar o mundo, alinhava-se à esquerda ? aquela e esta incarnadas em ditaduras. A democracia, como hoje a conhecemos, tinha perdido qualquer charme.

Tudo isso hoje nos parece insensato. Mas nos parece insensato depois de tudo o que se passou. Houve um tempo em que os homens de boa vontade acreditavam nas virtudes purificadoras da Revolução e do seu rebento, a ‘ditadura do proletariado’. É ligeireza condená-los a partir do nosso desencanto de hoje. Há, na verdade, um anacronismo em jogar sobre o passado critérios de validade do presente. Se hoje estamos advertidos contra a ilusão de que seria fácil instaurar a felicidade sobre a terra através do stalinismo, do maoísmo, do castrismo ? no caso do Lefort juvenil, do trotskismo ?, é porque escrevemos depois do que foi a sua experiência. Temos, em relação a essa geração, o ‘privilégio’ de ter conhecido a realidade trágica que as idéias a que aderiram foram capazes de engendrar. No contexto de então, um engajamento como foi o de Lefort fazia sentido. Como relata ele próprio ao fazer um resumo do seu percurso intelectual, num texto de 1979, ‘durante um tempo acreditei ver desenhar-se uma revolução que seria obra dos próprios oprimidos e que ela saberia se defender contra os que pretendessem dirigi-la.’ Mas, na sequência, faz uma drástica revisão desse projeto: ‘Atualmente, sei que estava enganado. Essas ilusões começaram a se dissipar em 1958, assim que se deu minha ruptura com Socialismo ou Barbárie, e desde então me empenhei em destruí-las.’

Malgrado isso, Lefort sempre recusou a postura simplificadora de atribuir a Marx a paternidade do totalitarismo stalinista, como tornou-se moda em certos círculos intelectuais franceses por volta dos anos 70, com o aparecimento dos chamados ‘novos filósofos’. Como ressalta no mesmo texto de 1979 em forma de pergunta, defendendo-se da acusação que um jornalista lhe fizera de ser um ‘marxista retardado’ – “Vou eu explicar que se pode recusar o marxismo e guardar uma paixão pela obra de Marx?’”

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Um dia desses tive o seguinte diálogo imaginário com um velho amigo ex-revolucionário:

– Você ainda é marxista?

– No Brasil, sou.

– No Brasil, por quê?

– Porque eu ando de metrô no Recife!