Luciano Oliveira

Jornaleiro.

Passei uma semana sem me desgrudar do livro Lima Barreto: triste visionário, de Lilia Schwarcz, volumosa biografia do primeiro escritor brasileiro a reivindicar a condição de “escritor negro”. Nascido em 13 de maio de 1881 (exatos oito anos antes da Lei Áurea), e morto prematuramente (em decorrência de alcoolismo crônico) em 1922, Lima viveu apenas 41 anos. Seu falecimento se deu num 1º de novembro, Dia de Todos os Santos, e o sepultamento ocorreu no dia seguinte, Dia de Finados. Aquilo que ele, pudico e envergonhado, chamava de “minhas origens” – a cor negra, eufemisticamente referida como “tez azeitonada” –, foi-lhe sempre um peso sob o qual finalmente vergou, não sem antes ter passado por duas internações no Hospício Nacional de Alienados por excessos cometidos em surtos de bebedeira. No livro inacabado que resultou dessa experiência, Cemitério dos Vivos, o personagem principal – evidente alterego de Lima – vai parar no hospício depois de uma carraspana em que passa do whisky à genebra, desta ao gin, e deste à cachaça. A passagem de uma a outra bebida – fictícia ou não –, sempre degrau abaixo, é uma metáfora poderosa da sua própria queda: de jovem promissor estudando em bons colégios, ao amanuense pobre morador de subúrbio, arrimo de família e alcoólatra – desses que de vez em quando amanhecem o dia dormindo pelas calçadas. Mas, entre uma coisa e outra, esse “visionário” escreveu Triste fim de Policarpo Quaresma, uma das obras incontornáveisda nossa literatura.

Se não teve propriamente berço, Lima Barreto teve um bom padrinho. Seu prenome, Afonso, foi uma homenagem do seu pai a Afonso Celso de Assis Figueiredo, o Visconde de Ouro Preto, político de nomeada no Segundo Reinado, membro do Conselho de Estado e um dos dignitários do Império que mantinham relações pessoais com Pedro II. O Visconde foi padrinho de casamento do pai, o tipógrafo João Henriques – que trabalhava em jornais de sua propriedade e por sua influência admitido na Tipografia Imperial –, e foi padrinho de batismo do filho. O Visconde amparou materialmente o afilhado nos estudos desde a infância até o ingresso, em 1899, na prestigiosa Escola Politécnica do Largo do São Francisco, no Rio de Janeiro, por onde tinha passado parte da fina flor do império e da nascente república. O abolicionista – e monarquista André Rebouças foi ali professor, e ali tinha estudado o republicaníssimo Euclides da Cunha. Era um colégio de escol, e Lima teve colegas que frequentavam a escola com polainas brancas, chapéu-coco e bengala com aplique de ouro, entre eles um rebento da riquíssima família Guinle, dona da Companhia Docas de Santos. Diante deles, um “constrangido” Lima nunca se sentiu à vontade. Ainda garoto, já então estudando num bom colégio, o Lyceu Popular Nietheroyense, começou a sentir as diferenças de classe e o racismo dissimulado tão típico nosso. Bem mais tarde, no seu Diário Íntimo, escreveu essa frase terrível: “É triste não ser branco”.

Sem vocação para tornar-se engenheiro, e desgostando do ambiente da Politécnica, em 1903 Lima viu-se obrigado a trabalhar para ajudar a sustentar uma família de oito pessoas (aí incluídos os agregados da casa) depois que seu pai “meu grande e infeliz pai”, acometido de uma “doença dos nervos”, foi aposentado com pequenos proventos. Lima abandonou os estudos e ingressou, por concurso, no serviço civil do exército. Apenas quatorze anos depois, em 1918, também ele se aposentou precocemente, por problemas de saúde decorrentes do alcoolismo. Livre da condição de funcionário público – que descreveu como “aquela mediana de posição e fortuna, garantindo inabalavelmente uma vida medíocre” –, sentiu-se momentaneamente feliz, já que teria o resto da vida para dedicar-se-ia inteiramente às letras. Mas esse projeto não deu muito certo. Bebendo cada vez mais, sua sobrevida de aposentado durou apenas quatro anos. Quando ainda era o jovem estudante do Largo do São Francisco, confiou ao seu Diário: “No futuro, escreverei a História da Escravidão Negra no Brasil. E acrescentou dois propósitos: “Não ser mais aluno da Escola Politécnica”, e “Não beber excesso de coisa alguma”. Só um dos propósitos foi realizado.