Luciano Oliveira

Jornaleiro.

Como professor na área das ciências sociais e humanas, tenho muitos alunos “críticos”. O qualificativo, claro, remete à filiação marxista que seu enunciado evoca. Como costuma acontecer, são também pessoas afinadas com as “novas” pautas culturaisque adentraram ruidosamente a cena pública de alguns anos para cá. São contra o machismo, o racismo e a homofobia – o que, claro, não anula o velho ethosanticapitalista. Ao contrário, dir-se-ia que o enriquece: o capitalismo, explorador e produtor de desigualdades (e ele é ambas as coisas, além de ser produtor de bugigangas que as pessoas adoram…), passa também a ser responsável pela produção dos preconceitos de sexo, de raça e de comportamento de gênero (acho que é assim que se diz). Muitas vezes me deparo com textos onde aparece o terrível inimigo a combater: o capitalismo machista, racista e homofóbico. Como tenho o hábito de ler os trabalhos dos meus alunos fazendo anotações à margem, nessas ocasiões costumo escrever algo como: “Ih… vamos com calma!”.

Como talvez meus cinco leitores já tenham percebido, não gosto do capitalismo! Não gosto do processo de mercantilização crescente e invasor de todas as relações sociais que se dão sob essa forma de produção. O processo está anunciado já na primeira frase de O Capital, e denunciado com ira de profeta n’O Manifesto Comunista, onde o barbudo alemão diz que “onde quer que tenha chegado ao poder, a burguesia […] afogou nas águas geladas do cálculo egoísta os sagrados frêmitos da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês […], e não deixou subsistir entre homem e homem outro vínculo que não o interesse nu e cru, o insensível ‘pagamento em dinheiro’” Depois vem a frase que Marshall Berman, num best-seller  dos anos 80 em que ela figura como título, tornou famosa: “Tudo que é sólido desmancha no ar”. Belo e forte, não?

Mas – como já disse a mais de um aluno que, acho, não me levou a sério – esse processo de mercantilização das relações humanas, ao dissolver todas as coisas sagradas (e con-sagradas pela tradição) nas águas não tão gélidas assim das sociedades capitalistas, tem a capacidade de trazer consigo, ambiguamente (antigamente se diria: dialeticamente), um potencial libertador! Libertador, por exemplo, dos “sagrados frêmitos” de uma tradição que subalternizava as mulheres e pessoas de cor, além de condenar “sodomitas” e “invertidos” a não sei que círculo do inferno. Por que libertador? Porque, parodiando Guimarães Rosa, mirem e vejam: omodo de produção capitalista, conforme analisado por Marx, tem como finalidade extrair mais-valia. Ora, se ela é produzida por negros ou por brancos, se por homens ou por mulheres, se por hétero ou por homossexuais, isso não tem nenhuma importância para sua lógica de funcionamento. Complementando o ciclo, a produção de mercadorias precisa de quem as compre, e mais uma vez o capitalismo está se lixando para a cor, o sexo ou o gênero de quem vai ao mercado consumir seus produtos. Ele existe e se reproduz no seio de sociedades que são, ou não, tolerantes em relação a diferenças de raça, de sexo, de comportamento. E, ao valorizar não o que as pessoas ontologicamente são, mas o que elas materialmente têm, o capitalismo termina se tornando, sem dar a mínima bola para isso, um aliado importante das lutas por reconhecimento das chamadas “minorias” – desde que elas tenham condições de efetuar o “pagamento em dinheiro” – ou em cartão de crédito, tanto faz.

Querem um exemplo empírico disso? Assistam às novelas e programas da Globo! Ou de qualquer outra grande emissora, aliás. (Ficam de fora, claro, no que diz respeito à pauta de gênero, os programas de Silas Malafaia e congêneres – inclusive os do “filosofiofó” Olavo de Carvalho.) Toda a galera LGBT tem sido muito bem acolhida nesses espaços nos últimos tempos. Afinal, mulheres, negros e gays tanto produzem mercadorias quanto as consomem, e, mercê das lutas que têm travado nos últimos anos, hoje em dia figuram também como protagonistas nesses lugares. Por outro lado, uma outra “minoria”, por estar obviamente fora do circuito, aí não cabe: aquela de miseráveis do MTST que ocupa prédios em Sampa e alhures.

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Uau! Tenho a impressão de que produzi um texto capaz de me catalogar na prateleira do “marxismo vulgar”. Ok. Já que estamos na República dos Bruzundangas, tudo bem. Danado vai ser se acharem que também produzi um texto machista, racista e homofóbico. Aí é f…!