Luciano Oliveira

Jornaleiro.

Terminei o hebdô da semana passada pensando no problema da diferença entre o escravo e o explorado: ainda que sejam ambos uns fodidos, o segundo pode sair por aí vendo o mundo – nem que seja por uma janela de ônibus – e gostar disso! Essa pessoa existe, e se chama Mári (que nunca leu A Condição Humana, mas acho que ela e Hannah Arendt gostariam uma da outra), uma vendedora de ilusões do “Caminho da Sorte”, como relatei no meu artigo da semana passada. E terminei a reflexão anterior pensando na “liberdade” de Mári: ela seria realmente livre ou, enganada por uma “falsa consciência”, apenas se sentiria livre? “Questão prenhe de questões” – como diria Machado. Uma resposta sociológica de vocação objetivista, como é o marxismo, não hesitaria na resposta: a liberdade de Mári seria ilusória. Mas há várias filosofias no mundo. E uma delas, a fenomenologia, colocaria uma questão crucial: será que existe uma liberdade exterior à consciência de sentir-se livre?

Advirto que não sei muito bem como resolver tal questão. Mas, leitor errante de história e de literatura, sei que na Idade Média, nas regiões de língua e cultura alemãs, havia um ditado que dizia: stadtluft macht frei. Não leio alemão, mas sei que esse ditado dizia o seguinte: “o ar da cidade torna livre”. Ele dá conta do fato de que nas cidades européias daquela época, habitadas pelo que depois ficou conhecido como burguesia, as pessoas eram livres, diferentemente das zonas agrárias circundantes, onde estavam submetidas à autoridade dos senhores feudais e aos mexericos da aldeia onde viviam. Séculos depois, na mesma Alemanha, um eco sinistro dessa frase se encontra no famoso arbeit macht frei (“o trabalho torna livre”) que encimava a porta de entrada dos infernos concentracionários nazistas. Mas isso é outra história. Para o que interessa aqui, o importante é lembrar que o ditado medieval exprimia um desejo de liberdade individual. No século XIX, Victor Hugo, se não me engano n´Os Miseráveis, fala das jovens de província seduzidas e abandonadas que se tornam “perdidas” nos pequenos povoados onde vivem e migram para as grandes cidades, onde cobrem sua nudez com o “vestido do anonimato”. Mas aí, sem recursos que não a força de trabalho, tornam-se proletárias, vivendo nas condições miseráveis dessa nova classe na sociedade industrial nascente. Quando não encontram quem compre seu trabalho, vendem seus corpos. Como Fantine, personagem do clássico de Victor Hugo, que antes de recorrer a essa forma extrema de sobrevivência vende os cabelos, depois os dentes, para sustentar a filha Cosette – que, como sói acontecer nos romances da época, termina rica, feliz e bem casada. Mas, como se sabe, não é todo mundo que ganha a “acumulada” na loteria… Ou seja: pegando a contrapelo o insight de onde parti nesta série de artigos, enuncio o seu contrário: “Existe a democracia, mas– porém, todavia, contudo, não obstante – existe o capitalismo”. Estamos no mundo moderno.

Um dos aspectos mais salientes desse mundo novoé alibertação dos indivíduos dos constrangimentos de todo tipo – religiosos, intelectuais, profissionais etc. – inerentes às sociedades tradicionais. Instaura-se, com a modernidade (democrática e/mascapitalista), a liberdade religiosa e de consciência, e editam-se as grandes Declarações de Direitos. Inaugura-se, em resumo, aquilo que Kant belamente chamou de “maioridade do homem”. Correlatamente, expande-se até quase universalizar-se a experiência do trabalho livre. O trabalhador, no mundo moderno, já não é o escravo ou o servo preso à casa ou à gleba, nem o artesão preso à corporação: ele se torna um trabalhador livre detentor de um emprego na indústria, no comércio ou, mais modernamente, no setor de serviços, emprego esse que ele obtém num mercado de trabalho regido, como todo mercado, pelas áleas da economia. Nessas condições, o trabalho humanotorna-se uma mercadoria igual às outras, como tal submetida à lei universal da oferta e da procura, o que significa que ele pode tanto ser valorizado quanto desvalorizado. A depender das circunstâncias, ele pode até não ter valor algum, tornar-se um insumo dispensável como qualquer outro.

Ou seja: a libertação dos grilhões da escravidão ou da servidão, a princípio – e mesmo emprincípio – um progresso da individualidade humana, traz consigo a possibilidade de um subproduto perverso e, propriamente falando, desumano: o indivíduo não encontrar quem queira comprar o seu trabalho, e assim encontrar-se sem emprego. E como falar desse drama com a linguagem prosaica é correr o risco de não ter o que dizer, senão lugares comuns, recorro ao que disse o finado Gonzaguinha na canção Guerreiro Menino(mais conhecida como Um homem também chora): “Um homem se humilha / Se castram seus sonhos / Seu sonho é sua vida / E vida é trabalho / E sem o seu trabalho / O homem não tem honra / E sem a sua honra / Se morre, se mata”.

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Na sequência, Gonzaguinha repete várias vezes um único verso: “Não dá pra ser feliz”… Mas, como diria Odair José, “Felicidade não existe / O que existe na vida / São momentos felizes”. Ora, vejam: é nada mais, nada menos, do que a antiga querela filosófica entre os “particulares” e os “universais”. Como se vê, Gramsci estava certo: todo homem é capaz de filosofar; mas apenas alguns exercem a função de filósofos!