Luciano Oliveira

Jornaleiro.

Acho que faltou no ?hebd?? da semana passada um post-scriptum?endere?ado ao leitor que me sugeriu escrever sobre legalidade e legitimidade. Escrevo-o agora, me valendo outra vez do pensamento de Claude Lefort ? do qual tenho me servido nessas reflex?es sobre democracia. Dentro das balizas desse pensamento, n?o creio que haveria como fazer essa distin??o, na medida em que uma das caracter?sticas essenciais do ?modo de institui??o? da sociedade democr?tica seria a ?legitimidade do debate sobre o leg?timo e o ileg?timo? ? debate ?sem fiador e sem termo?, como j? enfatizei. Colocadas essas premissas, n?o vejo como sua consequ?ncia poderia ser ?conteud?stica?: tal lei seria leg?tima por isso; tal lei seria ileg?tima por aquilo. A consequ?ncia mais significativa seria, se posso assim dizer, de ordem ?formal?: nas democracias, onde vige o ?desintrincamento? entre a Lei?e o Poder, a legalidade vigente, promulgada pela inst?ncia momentaneamente ? e apenas momentaneamente ? concentrada do ?poder?, estar? sempre sujeita ao questionamento da ?lei?, inst?ncia descentrada onde cabem as mais diversas pretens?es reivindicando legitimidade ? inclusive aquelas oriundas da esfera do?Saber, que compreende concep??es e modos de vida dissonantes.

Antes de seguir, gostaria de fazer uma observa??o te?rico-metodol?gica, como se diz nos departamentos universit?rios de onde venho. O ?marco te?rico? (como tamb?m l? se diz) que estou adotando, a concep??o lefortiana de democracia, n?o ? a ?nica coca-cola do deserto. Ela difere, por exemplo, da concep??o marxista, que v? nos interesses de uma classe com voca??o universal, o proletariado, crit?rios substantivos do que seria a verdadeira democracia. Mudando de tempo e de compasso, a ?Cidade de Deus? de Santo Agostinho, por exemplo, cont?m crit?rios de legitimidade estranhos seja aos crit?rios ?formais? de Lefort, seja aos crit?rios ?substantivos? de Marx. Como se v?, a paleta cont?m muitas cores. Adotar a concep??o lefortiana de democracia, como aqui fa?o, releva, em alguma medida, de uma escolha arbitr?ria. ?Em alguma medida? quer dizer duas coisas: de um lado, que ela se deve, sim, a uma ades?o pessoal ao que deva ser?uma democracia; de outro, ao reconhecimento de que, na hist?ria ocidental da qual bem ou mal fazemos parte, ela, a democracia, tem sido efetivamente isso: um regime que acolhe a legitimidade do debate sobre o dever-ser! Trata-se, em termos hist?ricos, de um fen?meno relativamente recente: uma ponte suspensa entre, a montante, a monarquia absoluta; a jusante, a ?tenta??o totalit?ria? ? da qual j? falei anteriormente.

Voltarei a falar disso. Por enquanto, e como que introduzindo o assunto, gostaria de fazer uma observa??o: o pensamento de Claude Lefort ? que aqui aportou no in?cio dos anos 80, mereceu ampla acolhida do p?blico universit?rio, e depois praticamente sumiu ? acomodava-se bem num contexto em que n?s da esquerda ach?vamos (mesmo que n?o tiv?ssemos parado para pensar nisso…) que o ?lugar vazio? do Poder, que havia sido empalmado pelos militares durante vinte anos, desde que se desse de novo voz e voto ao ?povo?, seria progressivamente ocupado por nossas demandas. Ora, mesmo acautelado eu diria que o per?odo abrangido pelas duas presid?ncias do PSDB (1995-2002) e as duas do primeiro PT (2003-2010) caminhou no sentido do nosso horizonte. FHC estabilizou a economia e Lula, benefici?rio inconfesso dessa estabiliza??o, investiu num projeto de distribui??o de renda que sempre demandamos. Paralelamente a isso, assistimos n?o apenas ao reconhecimento, mas tamb?m ao enfrentamento, de velhas quest?es que empurr?vamos para embaixo do tapete como a viol?ncia dom?stica (da? a Lei Maria da Penha), o racismo (da? a pol?tica de cotas nas universidades), a intoler?ncia contra ?desviantes? sexuais etc. Ou seja: tudo indicava que caminh?vamos para o ?melhor dos mundos poss?veis?, como diria Leibniz! E n?o levamos a s?rio o ceticismo do velho Voltaire…

Porque (lembrai-vos!) o ?povo? ? indefin?vel, e nem sempre est? disposto ao papel de figurante que lhe cabe no famoso quadro de Delacroix, A Liberdade Guiando o Povo, onde a ?liberdade?, claro, ?ramos n?s, liberais de esquerda ? ou esquerdistas liberais, tanto faz ?, achando que ele seria conduzido pelas Luzes que empunh?vamos. Ao cabo de dezesseis anos (1995-2010) de hegemonia socialdemocrata (pois FHC n?o ? apenas democrata, como Lula n?o ? apenas socialista), o que vemos hoje ? algo que se aproxima de uma reviravolta que n?o esper?vamos: a ascens?o, na Rep?blica dos Bruzundangas, de um fen?meno eleitoral como Jair Bolsonaro, cultor expl?cito de uma forma de pensar t?pica de extrema-direita, que, claro, sempre tivemos entre n?s, mas que, parafraseando Oscar Wilde (ali?s, um ?desviado?), n?o ousava dizer seu nome. Pois agora diz, ungida por uma significativa parcela do eleitorado brasileiro. Paralelamente a isso, e do mesmo modo ungida pelo voto, assistimos, no Congresso Nacional, ? presen?a estridente da chamada ?bancada BBB?: Boi, Bala e B?blia ? empenhada em reduzir as den?ncias de viol?ncias contra mulheres, negros e gays a mero ?mimimi?, em ridicularizar quilombolas e escancarar o que resta de ?terras ind?genas? ? voracidade da ?civiliza??o? que produziu o ?complexo do alem?o? no Rio de Janeiro. O susto, pelo menos o meu, ? grande. T?o grande que sou capaz de preferir outro tipo de BBB, aquele da Rede Gr?bo! Pornografia por pornografia, opto por aquela de que podemos nos livrar mediante um simples toque no controle remoto…

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Ou n?o: afinal, que mal o voyeurismo j? fez ao mundo?