Helga Hoffmann

Em 1º de janeiro de 2003 tomou posse o Presidente Lula da Silva. Uma equipe de transição, composta de pessoas indicadas pelo Presidente incumbente, Lula, e pelo Presidente que deixava o cargo, Fernando Henrique Cardoso, coordenada por Pedro Parente, fizera durante dois meses um trabalho exemplar para acalmar incertezas e a turbulência que haviam se instalado desde que ficara claro na campanha que a vitória seria de Lula.

Pedro Malan, que fora o Ministro da Fazenda do Brasil durante os dois mandatos do Presidente Fernando Henrique Cardoso, foi substituído por Antonio Palocci. E a partir daquele ano tivemos de Pedro Malan, regularmente por 15 anos, cada mês, a análise ponderada das medidas de política econômica conforme eram propostas, aprovadas, rejeitadas, ou omitidas durante os governos do PT e aliados, e nos poucos meses do governo Temer. Isso implicava considerar o longo prazo, as defasagens e o contexto, que não é só o da política nacional como também o panorama internacional. E Malan sempre tratou de economia em suas interrelações com a política e sempre tratou de ligar passado, presente e futuro. Imagino que sua atenção à história já era conhecida quando circulou a famosa frase “no Brasil até o passado é incerto”, atribuída ao Ministro Pedro Malan, fleumático, quando o trabalho de saneamento fiscal no governo Fernando Henrique Cardoso exigiu a federalização de dívidas estaduais e municipais e reconhecimento de dívidas antigas – que na época foram apelidadas de “esqueletos”.

No fim do mês passado, Pedro Malan lançou o seu livro “Uma certa ideia de Brasil: entre o passado e o futuro, 2003-2018” (Ed. Intrínseca, 2018). A sessão de autógrafos em São Paulo levou centenas de pessoas à Livraria da Vila. O livro traz os artigos publicados de junho de 2003 até maio de 2018. É difícil fazer uma resenha do livro, por sua natureza: todo mês uma nova situação, e uma análise feita com uma perspectiva dos próximos anos. Mas o livro não é simplesmente uma coleção de artigos. (Aliás, novos artigos de Malan continuam a aparecer mensalmente na página 2 do jornal “O Estado de S.Paulo”.) Os artigos estão em ordem cronológica, ano a ano, e para cada ano há, antes dos artigos correspondentes, uma abertura de umas 3 ou 4 páginas, com os dados básicos de taxa de crescimento, inflação, câmbio e juros, e os eventos de maior impacto, nos meses em que ocorreram. Só para dar um exemplo, vou reduzir a cápsulas o que aparece em resumo mais explicado para o ano de 2008, ano de crise econômica mundial: Fevereiro: BC anuncia que Brasil é credor externo. Março: fusão Bovespa/BMF; Pesquisa Ipsos mostra encolhimento classes D/E; ocupados com carteira assinada chegam a 43,9% do total nas principais Regiões Metropolitanas. Abril: S&P concede grau de investimento ao Brasil. Maio: Marina Silva (PT) pede demissão do cargo de Ministra do Meio Ambiente. Junho: dólar abaixo de 1,60 pela primeira vez em 9 anos. Julho: operação Satiagraha. Setembro: quebra do Lehman Brothers. Outubro: Lula diz que tsunami dos EUA chegará ao Brasil como “marolinha”; congresso americano aprova TARF de US$ 700 bilhões. Novembro: Fusão Itaú-Unibanco; BB compra Nossa Caixa; Obama é eleito. Dezembro: para enfrentar a crise o governo anuncia mudança no IR, reduz IOF pessoa física e IPI de automóveis; FED reduz juro para 0 a O,25%.

Para dar uma ideia do que é o livro vou me valer do Prefácio, didático como sempre foi o Ministro da Fazenda que não foi pai do Plano Real, mas sem cuja persistência o Plano Real não teria dado certo. O livro é tentativa de ajudar a entender os últimos 15 anos para poder lidar com o desafio dos próximos: assim resumo de modo prosaico as considerações de Malan realistas e esperançosas.

São cinco os eixos temáticos no livro: 1. “… a necessidade de ‘perspectiva’ que vá além da conjuntura e a importância de ver a ‘história’ como infindável diálogo entre passado e futuro”. 2. “as inexoráveis interações entre economia e política – que nunca deixaram de existir, mas que foram subestimadas ao longo do período de euforia que antecedeu a crise de 2008 e que desde então voltaram a assumir, no mundo como no Brasil, crescente importância”. 3. “… processos de mudança em democracias de massas urbanas, caso do Brasil, exigem um informado debate público e uma imprensa livre e independente. … AS DISCUSSÕES RELEVANTES NÃO SÃO SOBRE A IDENTIFICAÇÃO DOS OBJETIVOS MERITÓRIOS A PERSEGUIR; MAS SIM – uma vez alcançada certa convergência sobre os grandes desafios – SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS MAIS APTAS A PERMITIR QUE OS OBJETIVOS POSSAM SER ALCANÇADOS.” (destaque meu) 4. “… discussões relevantes sobre a teoria e a prática da política econômica em economias abertas voltaram a ficar interessantes” … “Nosso país … nunca experimentou a combinação de incerteza política e econômica com uma crise de valores e um processo de investigação e justiça com a profundidade e a amplitude do processo em curso desde março de 2014”. 5. “… pressão “estrutural” por maiores gastos públicos no Brasil. Há razões históricas para tal…”.

A breve Apresentação de Edmar Bacha destaca o papel-chave que Malan desempenhou como garantia da transição ordeira em meio ao tumulto financeiro causado pelos resultados da eleição de 2002. O otimismo inicial desaparece nos artigos quando, depois da queda de Palocci e a ascensão de Mantega, a responsabilidade fiscal é abandonada, como sintetizado na frase da nova chefe da Casa Civil “Gasto é vida”.

Vários artigos de Malan nessa nova fase do governo Lula são dedicados a desfazer ilusões ou, como diz Edmar Bacha, procuram zelar para que a racionalidade continuasse a prevalecer na política econômica do país. Há delicada ironia com os famosos arroubos retóricos do presidente Lula em campanha pela reeleição, como na coluna de maio de 2006: “Deixo ao leitor opinar sobre a recente observação presidencial acerca da saúde em seu governo: ‘Acho que não está longe da gente atingir a perfeição no tratamento de saúde neste país’.” Há centelhas de otimismo, como no artigo “Elusivo ‘quase consenso’” de agosto de 2006, em que nos lembra que o Brasil tem “uma sociedade com um importante e amplo setor privado no agronegócio, na indústria e nos serviços. Essas características hoje impõem restrições e limites a arroubos populistas e ao poder discricionário dos governos.”

Pedro Malan foi um Ministro da Fazenda didático. Explicava as medidas em detalhe, insistia que variáveis econômicas são inter-relacionadas e não mudam na base da canetada, esforçava-se por convencer pessoalmente deputados e senadores quando o Executivo enviava uma proposta ao Congresso. Continuou didático. O artigo de fevereiro de 2015 é um primor, ao mostrar como a Lava Jato não é o maior dos problemas da Petrobrás. Muito mais grave é a insistência, no século XXI, apesar de todas as evidências de fracasso, em ideias que talvez tenham dado algum resultado no imediato pós-guerra, nos anos 1950s. E isso citando Jarred Diamond e Eduardo Gianetti.

Os temas abordados são muitos, só mesmo indo ao livro. Ainda lembraria que Malan, por sua disposição ao diálogo, a chamar para o futuro, não só é pessoa que ouve o interlocutor, como é de leitura variada e atenta. São lindas, nos artigos, suas citações de poetas e escritores, adequadas, sem menção forçada, fluem naturalmente no texto elegante. Não foi depois de ser Ministro da Fazenda e ao deixar de sê-lo que Pedro Malan passou a contribuir para a análise dos problemas da economia brasileira. Lembro de um artigo de 1978[1], sobre distribuição de renda, um tema intensamente discutido nos 1970s por vários autores, quando apareceu nas estatísticas o forte aumento da concentração de renda ocorrido na década anterior. Já então a análise de Malan incluía a política, a história, e o papel do estado.

Sua atenção para o processo decisório nas democracias de massas e a necessidade de um estado “razoavelmente eficiente”, revela-se de novo em um artigo de 1981[2], precisamente sobre o papel de mediador que o estado precisa desempenhar. Ele era então professor da PUC-Rio e Presidente do Instituto de Economistas do Rio de Janeiro.

Pedro Malan foi durante um breve período meu chefe na ONU, na passagem dos 1980s para os 1990s, quando ele dirigiu a equipe que preparava o “World Economic Survey”, que abrangia todos os países que formavam a “economia mundial”. Fazia o pessoal trabalhar tanto que brincavam com ele, “a good slave driver”, mas todos ficaram tristes (inclusive o ASG Göran Ohlin) quando ele nos abandonou na ONU, para ser o negociador da dívida externa do Brasil. Analisava problemas concretos em dado país, no texto de cada membro da equipe, e às vezes os comentários vinham junto com alguma demonstração teórica de uma interrelação entre variáveis econômicas. Ainda que domine as teorias, não se dedicou a discutir grandes desenhos interpretativos de desenvolvimento abrangentes com pretensões de aplicação geral. Aprendemos que cada caso é um caso, mas não pode ser examinado sem embasamento teórico. Em seus textos não encontraremos receitas gerais, pretensamente aplicáveis em qualquer país.

Menciono algo de uma época anterior à sua passagem pelo Ministério da Fazenda para mostrar que competência não se improvisa. Como notou André Lara Rezende na contracapa, os escritos de Pedro Malan em “Uma certa ideia de Brasil”, mesclam a vasta experiência de homem público com a cultura de um sofisticado intelectual. No caso não é exagero, lembrando que Malan rejeita retórica. Encerro com Eduardo Giannetti, outro autor de belas reflexões sobre “ser brasileiro”: o livro de Pedro Malan é “um presente da inteligência a todos que não desistem do anacronismo-promessa chamado Brasil”. Sim, nos piores momentos nacionais subsiste a esperança no futuro. É preciso discutir o passado, porém mais importante é o diálogo que permite preparar o futuro.

[1] Pedro Sampaio Malan, Distribuição de Renda e Desenvolvimento: Novas Evidências e uma Tentativa de Clarificação da Controvérsia no Brasil, Revista Dados no. 21 (1978) pp.33-38.

[2] Pedro Sampaio Malan, Desenvolvimento econômico e democracia: a problemática mediação do estado, in B. Lamounier, F.C. Weffort e Maria Victoria Benevides (org.) Direito, Cidadania e Participação, T.A. Queiroz Ed, S.Paulo 1981.