Frederico Toscano

Primorosa produção de “La Serva Padrona” com regência do maestro, cravista e organista Diego Fasolis, diante do conjunto I Barocchisti, e da atuação do barítono Furio Zanasi, como Umberto, e da soprano Sonya Yoncheva, como Serpina, em 2008.

As mudanças ocorridas na Europa no raiar do século XVIII provocaram profundas alterações nas relações sociais, políticas, econômicas, culturais que culminaram em rupturas significativas, especialmente, no campo ideológico. É nesse meio conturbado de incertezas e desesperanças que filósofos passaram a questionar a “ordem” social, os mandos e desmandos dos reis, a política unilateral, a falta de acesso ao conhecimento, seguidos por uma burguesia emergente que, aos poucos, ia descentralizando o poder dominado até então pelos monarcas e pela Igreja. Ganha força, então, o Iluminismo, com ideias esclarecedoras e questionamento sobre a posição do homem comum no processo social, como agente de mudanças e não uma mera peça de tabuleiro.

Foi a partir desse momento, a “Era das Luzes”, que os caminhos da vida europeia tomaram novos rumos, e na música não foi diferente. Fatos como a morte de Jean Baptiste Lully (1632-1687), que até então detinha o poder de chancela sobre toda a produção musical na França; a volta da corte para Paris, vinda de Versalhes, após a morte de Luís XIV (1638-1715); e a pressão sofrida pela corte por parte da burguesia, assim como os ideais iluministas e humanitários, acabaram por marcar o início de uma época revolucionária.

Um dos princípios da nova mentalidade que se instalava na Europa do século XVIII, apesar de contrária à Igreja e às monarquias, era acreditar que somente a verdadeira educação intelectual poderia libertar o ser humano, emancipando-o. Com isso, pessoas de todas as classes passariam a ter acesso à cultura e à educação, pois, para a emancipação do homem, não era preciso a sua submissão ? Igreja.

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi uma das principais referências do pensamento iluminista, que se intensificou a partir de 1760, influenciando profundamente os poetas e filósofos. Ele dizia que o ser humano esquecera a felicidade devido aos tantos obstáculos que enfrentava diariamente, sendo muito pouco o necessário para alcançar a felicidade.

Para a realização mais imediata dessa necessidade, novos meios e modelos de atividades foram surgindo. Na música, por exemplo, o abandono do contraponto foi marcante nesse momento, visto que era considerado algo sofisticado e, portanto, desnecessário. O contraponto aqui se refere à técnica de composição musical que consiste na sobreposição de várias vozes ou linhas de melodia, as quais apesar de conservarem a sua independência, estão integradas harmonicamente no conjunto, dando à peça uma dimensão harmônica vertical, além da dimensão melódica horizontal que cada voz possui.

O contraponto era considerado uma espécie de artefato antiquado, embora se saiba que sua prática ainda perdurou por todo o século XVIII, ainda que de forma acanhada. Era preciso uma comunicabilidade mais prática, mais direta com o público, em que as pessoas entendessem a música mesmo que não a tivessem que estudar profundamente. Nesse sentido, não se pode negar que a melodia dessa época passou a ser mais elaborada e privilegiada. O período musical entre 1720 e 1770 é  conhecido como “Rococó” ou “Estilo Galante”.

Até o final do século XVII, a ópera italiana disseminou-se por toda a Europa. Na virada do século e com as profundas mudanças que vinham acontecendo em todas as esferas, este gênero saiu de um círculo muito restrito, da alta sociedade, e passou a satisfazer outro público. Com o emergente crescimento do comércio no sul da Itália, Nápoles foi a cidade que mais se desenvolveu e onde foram construídos muitos teatros para apresentações variadas, como o Teatro dei Fiorentini, com peças em dialeto toscano.

Os gêneros drama e comédia só passaram a ser tratados separadamente no século XVIII. Os precursores dessa separação foram Pietro Metastasio (1698-1782) e Apostolo Zeno (1669-1750). O primeiro foi o que mais abraçou a ópera séria, cujos compositores baseavam suas obras em histórias de antigos reis ou em deuses da mitologia. Para os italianos, a comédia tinha um sentido mais próximo do cotidiano. Seus personagens eram pessoas simples, comuns; os assuntos de que tratavam eram tipicamente simplórios, diferentes da ópera séria.

Durante as apresentações das óperas sérias, formais e carregadas de drama, houve a ideia de incluir, entre um ato e outro, uma pequena peça, de assunto cômico, chamado “intermezzo”, que era encenado em tempo mais curto, em linguagem local, ou dialeto, e que atraía a atenção de um grande público em teatros menores.

O compositor italiano Giovanni Batista Pergolesi (1710-1736), um jovem de 23 anos, então escreveu o “intermezzo” “La Serva Padrona” (“A Criada Patroa”) em 1733. O tema não era novo, mas alcançou notoriedade. Era uma espécie de entretenimento, colocado no intervalo de um ato a outro da ópera para segurar o público. Esse tipo de composição era formado geralmente por dois ou três personagens.

La Serva Padrona marcou de tal forma aquele momento que passou a ser apresentada em várias versões e a servir de modelo para contemporâneos, sendo considerada a primeira “opera buffa” a ganhar vida própria na história da música. Pela impressão humorística que causava no público, esse gênero foi-se notabilizando de tal forma que compositores de gerações posteriores alcançaram projeção com composições de “intermezzo”, baseados em “La Serva Padrona” de Pergolesi.

A ópera tem início nos aposentos de Uberto, um solteirão, que se queixa a seu criado Vespone, mudo, de Serpina, sua criada mandona. Há três horas espera que ela lhe traga chocolate quente. Serpina finalmente entra, sem o chocolate, batendo em Vespone. Exige respeito de Uberto, mas a cada palavra o irrita mais. Ele adoraria acabar com tal aflição, ao cantar a ária “Sempre in contrasti”:

Uberto pede a Serpina que lhe traga as roupas para sair, mas ela exige atenção durante o dueto “Stizzoso, mio stizzoso”:

Uberto implora então a Vespone que lhe encontre uma esposa, mesmo que se pareça com um monstro. Serpina dá a entender que ele devia casar-se com ela. Uberto protesta. Ela pergunta se não a acha atraente. Uberto diz que não repetidas vezes, enquanto ela retruca que sim. Na segunda parte, Serpina instrui Vespone: vão pregar uma bela peça, convencendo o patrão a casar-se com ela. Uberto entra, vestido para sair e confiante em que a “dona” da casa permitirá. Serpina diz a Uberto que certo “Capitão Tempestade” quer se casar com ela. Desculpa-se pelo comportamento anterior, mas informa que irá embora para viver com o marido no dueto “A Serpina penserete”:

Uberto não sabe ao certo se sente amor ou pena. Serpina volta com Vespone disfarçado, explicando que ele, seu pretendente, quer o dote: 4.000 coroas. Chocado com o valor, Uberto é informado de que a alternativa é casar-se ele mesmo com Serpina. Quando aceita esta solução, o bigode falso de Vespone é retirado e Serpina admite a farsa. Mas a esta altura Uberto está certo de que a adora e deseja o casamento. Os dois festejam seu amor e Serpina se reconhece “uma criada feita patroa” no dueto final:

Em apenas 20 anos, esse simples, mas revolucionário relato do amor de um homem por sua criada encantou plateias em Florença, Veneza, Dresden, Hamburgo, Praga, Paris, Viena, Copenhague, Londres e Barcelona. Em 1752, “La Serva Padrona” foi poderosa o suficiente para desencadear em Paris a “Querelle des Bouffons” ; ou “Querela dos Bufões”, uma “guerra” de conotações políticas em torno dos méritos dos teatros musicais francêses, suntuoso e reverente, e italiano, simples e irreverente.

“La Serva Padrona” provocou reformas que levaram às óperas inovadoras de Christoph Willibald Gluck (1714-1787) ; cuja obra Orfeu e Eurídice” foi objeto de artigo na “Revista Será?”; e abriram caminho para as de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) ; notadamente “As Bodas de Fígaro”. Montada em Baltimore, Maryland, em 1790, está também entre as primeiras óperas encenadas nos Estados Unidos. No Brasil, a obra de Pergolesi foi a primeira ópera a ser filmada com pretensão cinematográfica, sob direção da cineasta Carla Camurati em 1998.

O “pai” da ópera cômica faleceu precocemente, com apenas 26 anos de idade, no mosteiro franciscano de Pozzuoli, para onde se retirou, aparentemente convencido de que a tuberculose não lhe permitiria regressar a Nápoles. Pergolesi deixou, porém, um legado de extrema qualidade, embora pouco numeroso.

A música do jovem gênio testemunha uma personalidade criativa e sofisticada. Suas obras sacras são caracterizadas pela solenidade e imponência, mas também pelo intimismo comovedor, em que o sagrado é entendido como fonte de experiência emocional e a divindade se revela através da tensão e da plenitude do sentimento. Suas óperas, sérias e cômicas, são inventivas e ricas em musicalidade, colorido e magníficas melodias. Um tesouro que está sendo redescoberto e ganhando novamente o reconhecimento que gozou há séculos.