José Roberto Pinto de Góes

Estive em Cuba em 2003, num congresso de História. A primeira impressão foi de estar diante de uma pobreza generalizada. Começou a tomar forma já na aeronave da Cubana de Aviación, quando o indivíduo sentado ao meu lado, muito constrangidamente, perguntou se eu não ia comer o segundo pacote de três biscoitos servido a bordo. Em seguida, passeando por Havana Velha, o centro histórico da capital, me vi cercado pelas ruínas da cidade que deve ter sido Havana na década de 1950. Ruínas ocupadas, transformadas em cortiços habitados por pessoas muito pobres.

Morando no Rio de Janeiro, estou acostumado com a pobreza. Sou vizinho de quatro favelas infernizadas por gangues criminosas. No dia a dia, convivo e me relaciono com inúmeros indivíduos bem mais pobres do que eu e, com muitos, mantenho vínculos de estima e amizade. O que me chamou a atenção em Havana não foi a pobreza, mas o seu caráter generalizado – está em todos e em todo canto – e agudo.

Uma noite eu e minha mulher fomos passear no centro histórico. Na volta, um cubano se ofereceu para nos transportar ao hotel num daqueles triciclos movidos a pedaladas.  Minha primeira reação foi recusar, lembrando os desenhos de Debret do cotidiano da cidade do Rio no início do século XIX, onde escravos carregavam em liteiras e cadeirinhas homens e mulheres brancos (sim, o cubano era um negão). Mas logo me refiz e pensei melhor: o cara estava trabalhando, tentando descolar uns trocados, e eu com vergonha de ser transportado numa cadeirinha colonial. Subimos e ele deu de pedalar Malecon acima.

Malecon é a avenida que corre pela orla de Havana Velha. Tem o dobro de extensão da Avenida Atlântica, oito quilômetros. Mas está (estava em 2003) longe da iluminação e do movimento dessa última. Por volta das 22 horas, a iluminação vinha basicamente dos postes. Não havia quase luz do outro lado da praia, embora fosse possível divisar edificações. Além disso, para meu tormento, o Malecon não é plano como a Avenida Atlântica.

Deus dá o tormento, mas também a cura, nem que seja na forma de uma birosca mal iluminada. No meio do trajeto o nosso condutor já estava muito cansado. Os aclives do Malecon são longos e difíceis para quem conduz, apenas com esforço físico, uma carga de dois adultos bem nutridos. Vi uma birosca, inventei que estava com sede e todos pudemos nos recuperar. Ao voltarmos ao triciclo, reparei que ao cubano faltava uma parte de uma mão.

Quando penso em Cuba, sempre lembro desse cubano, que parecia saído de um inventário post-mortem de proprietários de escravos brasileiros do século XIX. Como esse tipo de fonte histórica frequentemente menciona o estado de saúde dos escravos (porque da saúde também dependia o valor monetário da pessoa), é possível ver o que a escravidão fazia com o corpo dos cativos. Vários, muitos, eram “rendidos da virilha”, o que remete a hérnias contraídas no esforço físico desproporcional exigido pelo trabalho. Outros haviam perdido a mão, o pé, ou eram descritos simplesmente como aleijados.

O cubano que nos transportou não era de uma pobreza do século XIX porque lhe faltasse diligência, empenho ou vontade. Era assim porque a ditadura do partido comunista o impedia de melhorar de vida e prosperar. Com a disposição para o trabalho que demonstrava, em qualquer lugar do mundo capitalista estaria dirigindo um táxi ou uma empresa de táxis. Mas não em Cuba. Lá quase tudo é do governo. Para dirigir um táxi, só com a permissão do partido (o partido é o governo). É preciso entrar numa fila, esperar e procurar agradar autoridades.

Evidentemente, um governo tão hostil ao povo só pode sustentar-se pela supressão da liberdade e a imposição do medo. Eis outro motivo pelo qual quando penso em Cuba, penso naquele cubano e penso na escravidão. O domínio senhorial baseava-se no medo. Joaquim Nabuco foi no ponto: o domínio do senhor dependia da sua capacidade de infundir terror no espírito dos escravos. É como governa a ditadura cubana há 60 anos. Discordar do partido-governo-patrão é crime, cuja pena pode chegar até a morte. As prisões cubanas estão cheias de prisioneiros maltratados por crime de opinião. Uma semana em Cuba foi suficiente para que me deparasse também com um estado policial e sentisse medo.

Como quaisquer turistas, tivemos vontade de conhecer a Havana não oficial, não maquiada para receber turistas. Perguntei a alguém aonde devíamos ir para ver uma noite tipicamente habanera. Foi vã tentativa, pois nos indicaram uma casa de show que mais parecia a antiga Plataforma, churrascaria e casa de espetáculos carioca onde brilhavam as mulatas de Osvaldo Sargentelli. Os mais velhos me compreendem, os mais novos recorram ao google.

Devo dizer que as mulheres cubanas nada ficam a dever às nossas, mas, entre um morrito e outro, fui me sentindo o mais idiota dos turistas. Até que me surgiu a dúvida se seria possível encontrar naquele lugar algum sinal da verdadeira Cuba, da Cuba do dia a dia dos cubanos. Uma livre associação de ideias e algum morrito me trouxeram à mente o banheiro. Faz sentido: o banheiro é um lugar de recato, fica meio escondido. Peguei a máquina fotográfica (naquele tempo isso ainda existia) e me dirigi ao cuarto de baño.

Minha hipótese estava certa: o banheiro falava pelos cotovelos e confessava abertamente toda a tragédia cubana. Palco, iluminação, som, artistas, mesas, garçons, tudo isso se assemelhava a uma imitação razoável de um show do velho Plataforma. Mas o banheiro era um mundo a parte, um mundo bem cubano: encardido, sujo (produtos de limpeza custam dinheiro), vasos sanitários rachados, portas quebradas, a miséria de sempre. Tirei várias fotografias, fleches espocaram.

Devo ter saído do banheiro contente, carregado de provas (as fotografias) de que não era mais um turista idiota. Porém, antes que chegasse à mesa onde minha mulher me aguardava, dois agentes policiais me abordaram e me conduziram a uma sala reservada, onde me interrogaram sobre meu comportamento. Folhearam, folhearam, leram e releram meu passaporte. O que eu podia dizer? Que me interessava por banheiros, ora. Inventei que era meio arquiteto, meio historiador, aficionado por banheiros. Após intermináveis minutos (não passou de meia hora) me deixaram ir.

Todos naquela sala estavam sendo vigiados por uma autoridade policial. É assim que o partido comunista governa os cubanos, procurando vigiá-los o tempo todo. A Revolução não foi capaz de preservar o riquíssimo patrimônio histórico dos cubanos, hoje reduzido a ruínas, mas criou um estado policial de dar inveja à antiga Alemanha Oriental. Todo bairro possui um Comitê de Defesa da Revolução, formado por vizinhos dispostos a acompanhar a conduta dos demais moradores no que diz respeito à lealdade ao partido.

Esse pesadelo, que mistura miséria e opressão ilimitadas, é cultuado pela esquerda brasileira.

Quem diria? Jair Bolsonaro virou abolicionista. As voltas que o mundo dá!