Helga Hoffmann

Dost thou think because thou art virtuous there shall be no more cakes and ale?” Na balada cantada pelo trio formado por um bêbado, um idiota e um palhaço de circo, em Shakespeare, The Twelfth Night.

Cliquei no “like” para o Editorial da “Será?” na semana passada, em 22 de abril de 2016. De fato, nossos deputados não são suíços. E depois, continuei matutando. Vi que um jornalista do qual não se vê nada escrito faz tempo chamou os deputados de “escória” na rede social (parecia que era a propósito dos erros de concordância). Interessante! Por que será que só depois do voto de 17 de abril de 2016 enxergou a “escória”? O mesmo jornalista que um dia, quando observei o quanto estavam inadequados, no século XXI, rótulos de “direita” e “esquerda” para identificar políticas públicas e a visão de mundo das pessoas, respondeu que quem duvidava da distinção entre direita e esquerda é porque era “de direita”. De lá pra cá, muita gente nem se ofende mais com esse rótulo.

Sim, naquele domingo em que a Câmara aprovou a abertura do processo de impeachment, também fiquei surpresa com o que, no próprio decorrer da sessão, senti como confirmação de que o Brasil é “país do Carnaval” e de muita retórica balofa. Dei risadas durante o espetáculo tragicômico daquela tarde de domingo, e embora considere o resultado da votação um passo correto, não deu para pular de alegria porque pelo menos os economistas andam avisando quanto sofrimento ainda tem pela frente o país inteiro. Mas o que mais me incomodou foi ignorarem que a pauta da reunião era votar a abertura de um processo de impeachment em virtude de violação da lei de responsabilidade fiscal. Como é que ninguém lembrava da responsabilidade fiscal na declaração de voto?

Felizmente existe gente mais sensata na rede digital: “Uai, só agora vocês descobriram que os deputados não são suíços?” foi um comentário bem humorado para os que comentaram a baixaria e/ou ridículo de tantas das declarações de voto naquele domingo.  E não foram apenas professores universitários ou muitos dos jornalistas que viram pela primeira vez a cara dos seus deputados: houve um recorde de audiência importante da TV naquela tarde de domingo. Os eleitores viam a cara de seus deputados: 58% de audiência na TV. Sem contar quem viu ao vivo na internet.

No dia seguinte, 18 de abril, li bem cedinho o post da amiga Hercídia Coelho, lá em Franca, Estado de S.Paulo. Um balde de água fria: “Então… teve mesmo coisas espantosas nos discursos. Com a sessão de ontem nos miramos no espelho. Aquilo tudo é exatamente a nação brasileira: ignorante, grosseira, vulgar, cooptada por fanatismos, atrasada, rancorosa, alegre, divertida, com ilhas de competência, inteligência e modernidade. Somos nós, gostemos ou não. A sessão mostrou também as razões de não conseguirmos avançar rumo à “boa sociedade”: falta educação de qualidade, hoje um antro de dogmatismos, fanatismos e atraso.” Pois é, não deu p’ra discordar.

Curiosamente, são acadêmicos os que mais furiosamente têm atacado, nesta última semana, a baixa qualidade dos nossos representantes, e que continuam tratando de desmoralizar a Câmara dos Deputados mesmo depois de passada a surpresa inicial. Como se ela tivesse deixado de ser representativa a partir de 17 de abril. Diante dessa reação de professores universitários que manifestavam seu horror pela atuação dos deputados no domingo famoso, um economista de reconhecida competência, além de vasta experiência internacional, lembrou, por assim dizer, que fora da torre de marfim há pé no chão e arroz com feijão. Concordou, é claro, com o repúdio aos casos como o de Bolsonaro e apologia ao torturador – felizmente não predominante -, mas fora esse caso, os acadêmicos estariam caindo numa armadilha de preconceito cultural e dando razão aos que falam em nosso sentimento de “vira-lata”. Lembrou que não é por acaso que existem expressões como ”pork barrel” na política norte-americana, assim como as políticas inglesa, francesa e japonesa também incluem as defesas de coisiquinhas ou bobagens dos condados e “constituencies” dos representantes democraticamente eleitos. E reclamou: “Vocês ficam imaginando um congresso formado por intelectuais que vão lá e fazem discursos profundos em um minuto sobre por que estão votando em x ou y. Que mania de professores essa de achar que deputados seriam suas réplicas… A maioria ali sabia o que fazia no contexto e o momento “estou na Globo” foi usado como podiam fazê-lo. Menos arrogância nossa seria muito bom…”. Coincidência ou não, o economista de gabarito internacional é do Sergipe e, ainda por cima, conseguiria ganhar a vida cantando e tocando violão.

A conversa digital era com uspianos, mas se aplica perfeitamente a outros professores universitários. Verdade é que foram professores da USP (Universidade de São Paulo) os que deram o tiro de largada aos vários manifestos de intelectuais (e/ou artistas) contra o impeachment de Dilma Rousseff, inicialmente com a tese (já ultrapassada) de que o pedido de impeachment registrado por Bicudo et al. em 15 de outubro de 2015 se referia ao mandato anterior. Lembro que o primeiro dos “manifestos de intelectuais”, intitulado, ironicamente, “A Sociedade Brasileira Precisa Reinventar a Esperança”, lançado nas históricas dependências da USP na rua Maria Antônia em S. Paulo, no dia seguinte ao registro do pedido de Bicudo et al., entre outras frases grandiloquentes, ensinava aos deputados: “Os parlamentares brasileiros devem abandonar essa pretensão de remover presidente eleita sem que exista nenhuma prova direta, frontal de crime.” Passados exatos seis meses, mais uma tese ultrapassada. Pelo menos os signatários do manifesto não usaram “presidenta” ou cometeram erros de concordância. Quem sabe servirá para mostrar que a era em que “manifestos de intelectuais” tinham influência já passou, com o avanço da democracia e da comunicação digital. No mínimo, mostra que é preciso pensar bem antes de assinar manifestos de intelectuais, de maior ou menor renome, autodenominados ou não. Quem sabe mostra, também, porque tem tanto professor universitário que, de repente, se mostra tão “escandalizado” com nossa Câmara de Deputados.

Além da atuação lamentável de Bolsonaro (e de mais alguns, insisto, que na outra ponta do espectro político usaram linguajar de uma violência, grosseria e falta de humanidade inéditas), houve, contudo, algo mais preocupante. Apenas 16 deputados (segundo registro da imprensa) mencionaram a violação à Lei de Responsabilidade Fiscal ou à Lei Orçamentária em seu voto. Nem sequer se lembraram de explicar aos eleitores lá nos municípios do Brasil profundo que a irresponsabilidade com dinheiro público (e não só por corrupção) é em boa parte a causa remota de porque os preços estão subindo todo dia na quitanda, no armazém, na vendinha da esquina. Acharam, talvez, que seus eleitores já saberiam que a votação de 17 de abril foi sequência do relatório do Deputado Jovair Arantes na Comissão de Impeachment da Câmara, este, sim, explicando em detalhe os crimes de responsabilidade fiscal.

Não é verdade que a Presidente está sendo submetida ao processo de impeachment por “questões contábeis” e que ela não cometeu crime. A Lei de Responsabilidade Fiscal, parte do instrumental criado no Brasil para vencer a inflação que chegara a 3% ao dia, proíbe, em seu artigo 36, que o governo use recursos dos bancos públicos, ou tome empréstimos dos bancos públicos, para seus gastos. (Nos 1980s, bancos estatais, que haviam feito enormes empréstimos aos estados, tiveram grandes perdas e obrigaram o governo a imprimir moeda, o que por sua vez criou inflação.) A Presidente Rousseff violou a Lei de Responsabilidade Fiscal, fazendo as chamadas “pedaladas fiscais” em montantes e prazos cada vez maiores em 2011, 2012, 2013, 2014, e continuou em 2015.

As contas do governo federal em 2014 (o ano eleitoral) foram rejeitadas pelo Tribunal de Contas da União por causa do nível recorde da tomada de créditos pelo Tesouro. Circulou na imprensa o gráfico da curva ascendente desses financiamentos, como apareceu no relatório do TCU. Relatório do Banco Central mostrou que em novembro de 2015 a dívida acumulada pelo governo federal com suas instituições financeiras e com o FGTS, medida em proporção do PIB, era 30 vezes aquela observada no final de 2006 (fim do primeiro mandato de Lula).

Não é verdade que todos os governos anteriores fizeram o mesmo. Enquanto anteriormente eram pequenos atrasos nos repasses do Tesouro, no governo Dilma Rousseff foram atrasos deliberados e crescentes. Essa diferença é que explica que o TCU tenha deixado passar atrasos anteriores, mas tenha rejeitado as contas de 2014. É essa a questão que permaneceu em 2015 e serve de base legal para o pedido de impeachment. Não tem nada a ver com ter ou não conta no exterior, nem com as finanças pessoais ou a honestidade de Dona Dilma. (Além de que, falta lógica, mas não safadeza, na alegação de que crime em 2015 deixa de ser crime por já ter sido cometido antes.)

Dizer que não houve dolo nas “pedaladas fiscais” é mais uma mentira. Elas foram usadas, deliberadamente, durante vários anos, junto com outras medidas, para esconder o quanto se deteriorava o quadro fiscal no país. A “maquiagem” das contas públicas atingiu o auge na campanha eleitoral de 2014. Nesse ano, os créditos dos bancos públicos ao Tesouro foram usados para ocultar o déficit público e impedir que o eleitorado visse o grau de desorganização das contas públicas. Há estimativas de que o estoque de dívidas de “pedaladas” chegava a 1% do PIB no início de 2015. E ficaram em aberto até o fim do ano, em violação à Lei de Responsabilidade Fiscal.

O descontrole no gasto público se revelou também na violação da Lei Orçamentária, no item dos chamados créditos suplementares. Esses créditos permitem que o governo faça despesas extraordinárias não previstas no orçamento aprovado. Pela lei, tais créditos suplementares têm que ser compatíveis com a meta de superávit fiscal aprovada. Caso não sejam compatíveis com a meta fiscal, precisam de aprovação do Congresso. Em julho/agosto de 2015 o governo enviou ao Congresso 6 decretos que pediam uso de créditos suplementares, num total de quase R$97 bilhões. A maior parte desse total foi compensada por cortes de despesas em outros itens, mas sobrou um total de cerca de R$2,5 bilhões de gastos que eram incompatíveis com a meta fiscal, e para os quais, portanto, era necessária autorização do Congresso. O governo havia enviado proposta de alteração da meta fiscal, mas essa não havia sido aprovada ainda. O Congresso jamais aprovou tais decretos. Ou seja, houve desrespeito à Lei Orçamentária, o que, além de crime, é mais um indício da desorganização das contas públicas no governo Rousseff.

Quando os deputados votaram pela abertura do processo de impeachment, em maioria de 70%, foram sensíveis ao sentimento dos eleitores cansados com o pior declínio econômico de que se tem notícia, fechamento de empresas, inflação que beirava 11%, desemprego em 10%, inadimplência em alta, benefícios corroídos pela alta de preços dos alimentos, investimentos suspensos. Possivelmente poucos se dão conta de que a violação da responsabilidade fiscal e a desordem das contas públicas estão entre as causas básicas das atuais dificuldades econômicas do país. Bem poucos parlamentares explicitaram essa relação em seus votos. Mas é por isso que tantos economistas, que aprenderam o quão difícil é interromper uma espiral inflacionária, que já viram que os mais pobres são sempre os mais prejudicados pela inflação e o desemprego, estão entre os mais indignados com o quadro geral de desorganização das contas públicas agravado nos últimos governos petistas.

Uma das consequências do processo de impeachment é que ele terá impacto sobre o gasto público, ao reconstruir o respeito à responsabilidade fiscal e à lei orçamentária. Rubens Ricupero, em um raciocínio paralelo, já havia sugerido que as investigações de corrupção vão melhorar a prestação de contas, tanto no setor público como no privado. Conforme têm observado recentemente economistas importantes, como Otaviano Canuto e vários outros, uma das consequências imprevistas do processo como vem ocorrendo será a de que, de agora em diante, políticos no Brasil estarão conscientes que deixar de observar a Lei de Responsabilidade Fiscal ou equivalente virou fonte possível de vulnerabilidade política. Oxalá! mas que maneira mais dolorosa de reaprender que o Estado tem que ter limites para seus gastos, sob pena de quebrar o país.