Fernando da Mota Lima

O Menino e a Morte.

Retomo o fio da narrativa lembrando que meu assunto presente é ainda a função formadora dos livros. Diria ainda mais: sua função terapêutica, fonte de consolação nos momentos de dor e desamparo. Em determinadas circunstâncias, como algumas que eu próprio vivi, o livro pode desempenhar o papel do amigo ou da força de amparo e renovação que nos falta na realidade das relações pessoais. O socorro espiritual que nos presta, a companhia na solidão carente de voz significativa, por vezes o livro pode ser isso na nossa vida. Quando a doença grave sobrevém, por exemplo, e sem aviso se apossa do paciente que não tem nem onde cair morto. Quem não ama os livros, quem não lhes cultiva a companhia, está com certeza bem mais exposto ao desamparo que nos assalta na hora da fatalidade. É exatamente nessa hora, a da fatalidade, que mais precisamos do outro, da sua ajuda e companhia consoladora. Mas quantos têm de fato a ventura de contar com esses suportes humanos? Quem nos concede companhia significativa e desinteressada quando a doença nos priva de autonomia expondo-nos à dependência do outro?

Os livros nada sabem de medicina, salvo evidentemente os que versam sobre este assunto,  e portanto são impotentes para salvar um jovem enfermo, desempregado e sem vintém. Logo, a medicina salvadora não proveio deles. Deles proveio a companhia que suprime o tédio dos enfermos, do corpo e sobretudo da alma, a solidão que sobrevém quando o corpo adoece e o enfermo é condenado ao isolamento de uma cama e quarto. O que fazer então da vida e do tempo paralisados sobre o colchão do enfermo solitário? Os supostos amigos desaparecem e então fica claro que as amizades de farra, de festa e botequim, prevalecentes na nossa inconsciente experiência da amizade, nada valem. O enfermo precisa enfim lidar consigo próprio, com sua solidão e com o tédio das horas que se arrastam impiedosas no quarto vazio de vida e humanidade. Posso no entanto afirmar por experiência própria que o enfermo leitor está isento dessa forma de dor e desamparo. Ele tem os livros, a companhia do semelhante imaginário que ilumina e imprime sentido à sua doença, sua solidão, seu desamparo de enfermo.

Embora longe de depreciar o amor e a solidariedade de Rejane, minha namorada, e Semadá, amiga que conquistei na hora da adversidade, uma das mais poderosas evidências da amizade verdadeira, foi na companhia dos livros que ancorei minha carência de vida significativa. A leitura que acima de tudo ilustra essa experiência é a do Dom Quixote, de Cervantes. Li-o no momento ideal, quando dispunha de todo tempo do mundo para ler, já que forçado ao repouso absoluto, atado à cama dos enfermos. Foi então que pedi a Rejane que tomasse de empréstimo à Biblioteca de Afogados a edição em cinco volumes, primorosamente ilustrada por Gustave Doré, editada pela José Olympio. Nunca um livro me transformou de forma tão radical. Estava ainda sob o efeito sombrio da doença e do medo da morte quando comecei a ler aqueles volumes pesados. Pois logo mergulhei num mundo de transfiguração imaginária da vida tão imprevisível que cheguei ao extremo de inspirar temores a Rejane. Surpreendendo-me às gargalhadas quando o livro gargalhava, tagarela quando o alucinado Dom Quixote e seu escudeiro também delirante arengavam pelas estradas da Espanha, Rejane começou a duvidar de minha sanidade. Até Ednaldo, o médico que me salvou, precisou prescrever-me Somalium, o Lexotan da época, para induzir-me a dormir com alguma regularidade e assim estar desperto nos horários prescritos para a medicação necessária à minha cura.  À leitura do Dom Quixote acrescentei a audição continuada das sonatas e partitas para violino solo, de Bach. O intérprete era Heifetz. Ainda hoje ouço essas gravações que me comunicam uma experiência de beleza indizível. A companhia dos livros e da música tornou-se tão preciosa nesse momento difícil de minha vida que ao cabo, tendo já como certo meu regresso à vida saudável e normal, fui muitas vezes seduzido pelo desejo de continuar doente, de não mais reatar os vínculos ordinários e previsíveis com a vida.

Nas circunstâncias acima descritas, o livro nos concede mais do que companhia ou remédio para a solidão dos enfermos. Se importasse apenas para isso, poderia ser substituído pela televisão, um filme qualquer reproduzido num aparelho de DVD, assim como outras alternativas imagináveis num mundo cuja revolução tecnológica propicia múltiplas formas de anulação do isolamento individual. Para mim, a obra de Cervantes e a de Bach representaram muito mais do que mera companhia povoadora do longo estado de enfermidade que me reteve na cama. Ambas constituíram fonte de enriquecimento espiritual, de expansão da minha consciência e sensibilidade. Embora incapaz de traduzir em palavras o sentido radical dessa experiência estética, tenho ainda consciência de que a vivi e portanto sei o que significou para a minha vida, em particular para as circunstâncias adversas que então vivia.

Observei ainda, como por certo notou o leitor atento, que fui tomado pelo desejo de continuar doente. Volto a retomar este detalhe por me parecer que remete à compreensão da obra de arte investida de dupla funcionalidade: enquanto uma funciona como via de evasão da realidade, a outra nos devolve a esta enriquecidos pela sensibilidade e a consciência renovadas graças à obra que funde princípio de prazer e princípio de realidade, para lembrar aqui uma das polaridades conceituais propostas por Freud. Impregnado pela ideologia cientificista dominante na época de sua formação, Freud não raro se contradisse ao considerar a arte psicanaliticamente. Leitor refinado da melhor tradição do humanismo clássico, que remonta aos trágicos gregos desaguando em alguns dos seus contemporâneos, Freud expressou muitas vezes a consciência de que a dupla funcionalidade da arte acima indicada não implica, nas obras de autêntico valor estético, anulação de uma pela outra. Noutras palavras, a função evasiva funde-se à função transformadora da nossa relação com a realidade.

O próprio Freud nos fornece a melhor evidência dessa verdade. Quando recebeu o Prêmio Goethe de Literatura e foi saudado como o descobridor do inconsciente, teve a humildade, rara num homem dotado de ousado e confessado orgulho de conquistador na esfera do pensamento, de afirmar que o inconsciente foi descoberto bem antes dele pelos poetas e grandes inventores da literatura e da filosofia. Logo, a natureza fantasiosa da arte, expressão do princípio do prazer, não anula a possibilidade de a fantasia atuar sobre a realidade e portanto transformá-la. Se Freud foi por vezes incapaz de reconhecer essa verdade, o erro decorreu da impregnação da ideologia cientificista de sua época. Embora sem recorrer à psicanálise, contrário ou favorável a ela, Mario Vargas Llosa abordou frequentemente essa questão na sua obra, notadamente em La verdad de las mentiras, livro no qual estuda com sensibilidade e penetração crítica alguns dos mais importantes e influentes romances do século 20. Os textos de abertura e fecho da obra, intitulados La verdad de las mentiras e La literatura y la vida, exploram muito bem a questão que tentei esboçar acima.

E o que dizer agora da poesia, da forma como convencionalmente a representam as pessoas ajuizadas, a maioria esmagadora dos mortais aderentes aos movimentos pragmáticos da vida, à norma imperativa que nos incita a acreditar que a educação é meramente um instrumento de ascensão social e por conseguinte importa apenas na medida em que se traduz em inserção no mercado, sucesso profissional e muito dinheiro na conta bancária?  Se o intelectual, como antes ressaltei, é um tipo subordinado a representações sociais ambíguas, o poeta é definitivamente um caso perdido na história de qualquer família, um desastre corroendo os cálculos e ambições materiais de qualquer pai que tenha a desgraça de gerar esse tipo incapaz de ajustar-se aos códigos práticos da vida. Dou um outro salto no tempo para melhor ilustrar o que um inútil dessa natureza pode fazer em benefício de um gauche como eu. Uso o termo gauche bem a propósito, pois o poeta em questão é Carlos Drummond de Andrade.

Salto para o ano de 1980. O espaço dentro do qual me movo é São Paulo, a macota cidade, como diria o moleque Macunaíma. Tudo que fiz de prático ao me mudar para São Paulo foi transpor para lá, para aquela selva de concreto que me deixou aturdido durante muitos dias, a minha vida sem rumo, minha vida de judeu errante. Estava novamente sem um vintém no bolso. Literalmente à mercê do desamparo das ruas frias e indiferentes à minha desgraça, lembrei-me providencialmente de telefonar para Cleisa Maffei. Não a conhecia. Tudo que dela sabia era o seu telefone, anotado na minha agenda e fornecido por Denis Bernardes que em Olinda, pouco antes de minha partida, falou-me um pouco de Cleisa. Conheceram-se em Paris, quando eram estudantes de pós-graduação.

Liguei para Cleisa e fui generosamente acolhido. Quando lhe relatei a situação em que me encontrava, convidou-me para morar provisoriamente no seu apartamento, onde vivia sozinha. Durante meses vivemos uma relação que nos marcou muito. Levei para o seu mundo de mulher pragmática, – professora da PUC, mas sobretudo militante em defesa dos pobres e miseráveis com quem trabalhava como assistente social – a sedução transfiguradora da literatura e da música. Lembrando o título do romance hoje esquecido de Orígenes Lessa, O feijão e o sonho, enquanto ela era a provedora do feijão, eu em troca lhe dava sonho, a imaginação sedutora e vagabunda de Macunaíma, que nessa época descrevia incríveis cambalhotas na minha vida. Além dele, vivia povoado por toda a obra de Mário de Andrade, então o autor que mais intensamente lia e se infiltrou de mil modos na minha vida e na minha imaginação, até porque era o centro do meu projeto de dissertação de mestrado, a fonte irradiadora de minha vida imaginativa naquele momento.

Precisei ralar a paciência do leitor esboçando acima o contexto autobiográfico necessário para adequadamente introduzir a poesia de Drummond nas trepidações que então assaltavam minha vida. Uma noite o telefone toca. Era minha irmã Zuleide ligando do Recife. Deus sabe, já não eu, como conseguira me localizar. Ligou para me dizer que papai estava gravemente enfermo, internado num hospital e tinha provavelmente poucos dias de vida. Até aquele momento me iludira supondo que tecera e emendara em mim os fios entrançados que me prendiam a meu pai. Afinal, remoí e sofri durante anos, nas lutas surdas com a vida e minha memória de família atormentada, tudo que podia retraçar, ordenar e tecer com uma lucidez e capacidade de sofrer e decantar a experiência que tinham muito de ilusório. Os vínculos com o passado, os traumas de família ainda me pesavam tanto que de repente me vi sentado no chão, o telefone ao ouvido, e as lágrimas escorrendo dos meus olhos. O telefonema de Zai, como carinhosamente ainda costumo chamar minha irmã, foi um choque tão grande que perdi a capacidade de dormir. Durante vários dias fiquei sem pregar olho, lutando com meus fantasmas, bebendo, pois então bebia muito, e nada de me pacificar, de me reconciliar com o sono tão necessário.

E eis que de repente o milagre desce sobre mim. Tão próximo, tão íntimo naquelas noites frias e embriagadas sofridas na macota São Paulo, que nem dei por ele nas primeiras linhas do poema. A fonte do milagre foi um poema de Drummond: Os últimos dias, incluído em A rosa do povo. O poema foi gradualmente me penetrando as camadas mais profundas da sensibilidade fatigada pelo peso da insônia. Dele fluíam em ondas líricas os sentidos profundos do fim último da nossa condição, a finitude da matéria “que a terra há de comer”, como diz o verso de abertura do poema. Pela primeira vez lia este poema, Os últimos dias, não mais como um poema neutramente belo e tocante. Naquele momento intraduzível ele vibrou nas camadas mais líricas e íntimas do meu ser. E então vi meu pai, a matéria finita, desdobrando-se no tempo imaginário, atravessando o longo e tumultuoso rio do tempo para afinal dissolver-se na corrente que também a mim um dia me tragará. E uma grande serenidade, uma grande paz desceu sobre a minha noite de insônia e pude enfim, depois de ainda lutar contra a insônia de tantos dias, pude enfim dormir em paz.

Nas noites seguintes, entretanto, a insônia voltou a rondar o quarto. Uma intuição inexplicável, como tantas que irrompem na vida, salvou-me de vez das garras da insônia. Tive a luminosa ideia de gravar minha própria voz lendo uma seleção dos poemas de Drummond eleitos como meus favoritos. Comecei com Os últimos dias e assim gravei uma fita inteira de 60 minutos. Concluída a gravação, acionei a tecla play, apaguei as luzes e me deitei completamente receptivo à audição dos versos de Drummond que me foram acalmando, ajustando as peças soltas do caos interior, remendando fios rompidos, recobrindo meus desertos com a luminosidade lírica de uma beleza, uma luz pacificadora que me transportaram à sonhada e necessária morte momentânea propiciada pelo sono. Assim, graças ao poder milagroso da grande poesia lírica, reacomodei a memória do meu pai em mim, prendi minha mão na sua mão invisível e cansada, tão doce e passivamente sofrida, e no fundo da noite insondável me vi refletido no espelho das águas imaginárias onde também se desenhava a figura comovente do meu pai.

A poesia, a inútil poesia desprezada pelo burguês sempre pragmático, mesquinhamente reduzido a seus cálculos, que vão das operações elementares da matemática ao saldo bancário acumulado durante uma vida inteira impermeável à poesia, a qualquer experiência de ordem gratuita, a poesia é sem dúvida inútil mensurada segundo esses princípios estreitos. Fazendo justiça ao burguês, que aqui reponta bem mais como uma caricatura, não é ele o único a desprezar a poesia, a simplesmente ignorar-lhe a existência inútil. A maioria das pessoas, aqui incluídos muitos intelectuais demasiado pragmáticos para perder um minuto do seu tempo lendo um soneto ou um poema curto, acha simploriamente que a poesia não tem nenhuma importância. Talvez tenha para seduzir uma mulher, ou para propiciar um momento de brilho narcisista durante um sarau literário. Restrita a essas funções mundanas, contudo, ela está ainda subordinada ao cálculo mesquinho dos pragmáticos.

O que pretendi sugerir relatando as circunstâncias que me levaram a assimilar de forma mais profunda um poema de Drummond foi algo de natureza mais decisiva para nossa condição humana. A poesia, assim como a filosofia, remete no fundo às questões últimas da nossa existência. Abstraídas as especulações mirabolantes dos técnicos, não poucos filósofos profissionais, também alguns poetas que fazem do ensino da poesia um meio de sobrevivência, a poesia e a filosofia constituem, na sua expressão mais radical, uma interrogação sobre a experiência substantiva do ser humano. E essa experiência pode ser resumida nestes termos que identificam nossa experiência essencial e inescapável: o sentido da vida, o amor, o tempo, a perda, o sofrimento e por fim a morte. É claro que poderia acrescentar mais alguns substantivos que em síntese definem nossa condição e passagem por esse mundo. Mas fiquemos com a poesia assim mal formulada. Na voz dos grandes poetas, ela diz tudo que importa.