Marcia Alcoforado

É de Simone de Beauvoir, em sua conhecida obra Segundo Sexo de 1949, o trecho abaixo:

Se quero definir-me , sou obrigada inicialmente a declarar: “Sou uma mulher”. Essa verdade constitui o fundo sobre o qual se erguerá qualquer outra afirmação. Um homem não começa por se apresentar como um indivíduo de um determinado sexo: que seja homem é natural……….Agastou-me, por vezes, no curso de conversações abstratas, ouvir os homens dizerem-me: “Você pensa assim porque é uma mulher”. Mas eu sabia que minha única defesa era responder: “Penso-o porque é verdadeiro”, eliminando assim minha subjetividade. Não se tratava , em hipótese alguma de replicar: “E você pensa o contrário porque é um homem”, pois está subentendido que o fato de ser homem não é uma singularidade; um homem está em seu direito sendo homem, é a mulher que está errada.

Definindo-me com as suas palavras : “Sou uma mulher”, asseguro a quem me lê, que ao contrário da imortal Beauvoir não agastar-me-ei, se alguns entre vocês também assim reagir diante do que em seguida escrevo, mesmo que em divagações: “ Ela pensa assim porque é uma mulher”. Digo-lhes: ficarei na verdade feliz caso isso ocorra, pois é sob o feminino que quero escrever e ser reconhecida.

Sim, mesmo consciente de que meu modus operandi, realizações e conquistas até aqui, foram predominantemente guiados pelo meu masculino – características fortemente desenvolvidas em busca da aceitação de uma família com ideias e ideais predominantemente patriarcais – é a minha porção feminina, à que recorro e que confesso busco cada vez mais recuperar nesses anos de maturidade e maternidade de filhos pós-adolescentes.

Não pretendo aqui e agora realizar, dar a resposta certa, resolver , classificar ou controlar a situação e as inúmeras contradições que vivenciamos hoje no Brasil. Não sem antes confessar muito vir assim fazendo em conversas com amigos e familiares, com o suporte do meu desenvolvido masculino. Quero usar se me permitem, a consciência e o saber femininos, que embora possa-se esperar serem inerentes no meu caso, me permiti pouco desenvolver e hoje trabalho arduamente para recompor, confesso ajudada por boas sessões de psicanálise.

Presença incondicional e escuta mais do que atuações; complexidade; profundidade ; foco no desenvolvimento de uma vida interior; respeito à diversidade em todos os níveis –pessoal, político e espiritual – são características associadas ao sagrado feminino e ao arquétipo da Grande mãe. Este arquétipo reverencia o paradoxal, os valores de colaboração e a integração de opostos. Transcrevo abaixo um interessante poema de um monge Zen , que encontrei no livro da Gail Straub, intitulado Retorno à casa materna:

Sou um sapo nadando alegremente
Nas águas claras de um lago
E sou a cobra rasteira
Que silenciosamente aproxima-se e se alimenta do sapo
Sou a criança em Uganda, só pele e ossos
Minhas pernas tão finas quanto caules de bambus
E sou o mercador de armas
Vendendo armas para Uganda
Sou a garota de 12 anos
Refugiada num pequeno bote
Que joga-se no oceano depois de ser estuprada pelo pirata
E sou o pirata,
Meu coração ainda não capaz de ver e amar

 

O poema genial mostra claramente e de forma até simplória como temos no nosso interior, os mesmos aspectos que rejeitamos no mundo. Isso alinha-se com o conceito do sagrado feminino, que entende não haver separação! Tudo é conectado: luz e sombra, nascimento e morte, pedra e água, tudo existe de forma integrada. Nos sentimos divididos e “partidos” quando tentamos enquadrar e classificar todas as coisas em bem e mal; certo e errado; preto e branco. É exatamente o que vivenciamos no Brasil agora, um país tão complexo e multifacetado, mas no qual tenta-se o tempo todo, tudo separar em dois blocos.

Interessante, e não por acaso (será que o acaso existe?), ser de gênero, a primeira polêmica do governo interino, que não é perdoado pelas feministas, por num lance único afastar uma presidente mulher e ao mesmo tempo entregar todos os seus ministérios aos homens! Tão explícita surgiu a questão da presença ou não  da mulher na transição que irromperam gritos enfurecidos de todos os lados: “Há uma celebração da misoginia!”, “Esta é a ponta do iceberg do conservadorismo!” “Faixa de miss pode. De presidenta não!

Permitam-me as militantes de grupos feministas, estudiosos da questão, ou as mais jovens e instigantes blogueiras (maravilhosas, diga-se de passagem!) discordar de vocês – não sendo uma estudiosa do assunto, falo apenas como uma mulher que teve que lutar para se reconhecer como tal e encontrar e ocupar o seu espaço dentro de instituições e valores ainda marcadamente masculinos. Na minha opinião nenhum desses dois atos ( o afastamento e a nomeação dos ministérios ) está minimamente relacionado à misoginia.

Precisamos do feminino sim! Agora mais do que nunca, mas onde o encontramos? Na intransigência da presidente-afastada , que separa e instiga para o conflito entre “nós” e “eles”, ou no desejo do Temer expresso em seu pronunciamento inicial de deixar, como legado de seu mandato , um país novamente integrado e não dividido. Como tachar o Temer de misógino, ou categorizar a Dilma como feminista? Como secretário de segurança pública de São Paulo, Temer criou a delegacia da mulher; já nos mandatos de Dilma, mais recuos do que  avanços: a questão do aborto ameaça andar pra trás e com a crise da saúde e dos serviços públicos instalada, o retrocesso já ocorre com o aumento de mortalidade materna, da violência e assassinatos de mulheres, fechamento de serviços de abortamento previstos em lei, perda de 25% de leitos em maternidade, piora da qualidade do pré-natal, aumento da sífilis congênita e para coroar  o surgimento da zika, com todo o drama da microcefalia de bebês associado.

Chega a ser irônico, mas a nova chefia do Executivo inicia parecendo ter mais vocação e se inclinando mais para a colaboração e a integração do que a afastada. A questão seria então o que ocorreu na indicação dos ministérios? Por que para nenhum deles foi indicada uma mulher? O ministro Eliseu Padilha declarou sem pestanejar: “Os partidos não indicaram nenhuma!”.

O problema está lá! Sentado em cima da mesa e nos desafiando a encará-lo sem desviar o olhar! A questão da sub-representação feminina na nossa jovem democracia já foi mapeada, estudada , mas falta ser resolvida. Segundo os especialistas, há saídas através da reforma política há tanto cobrada.(https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/proc-publicacoes/2a-edicao-do-livreto-mais-mulheres-na-politica)

Em termos mundiais, a nossa representação feminina no Congresso perde até para o Afeganistão. Uma sub-representação ainda maior quando, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral de dezembro de 2015, o nosso eleitorado se apresenta majoritariamente feminino (52% dos eleitores ). Ao explicitar isso, o Temer inequivocadamente pode ter prestado um serviço muito maior ao país e também (pasmem!) à causa feminista , do que se nomeasse algumas poucas mulheres para ministérios tradicionalmente a cargo delas ( “….Eu nem esperava um Ministério da Saúde, Planejamento ou Economia… minha esperança resignava-se à história: ministérios de assistência ou de minorias.” http://www.brasilpost.com.br/debora-diniz/a-celebracao-da-misoginia_b_9939008.html), ao mesmo tempo prescindindo dos atuais líderes (senão ideais, são os que temos) do Legislativo , estratégicos para o Executivo no momento.

Não vejo o presidente Temer como um político de direita (no que se refere aos direitos humanos e sociais. Na Economia espero e acredito numa solução bem longe da heterodoxa!), como agora o querem enquadrar os grupos feministas. Concordo que tem vários aliados conservadores, mas sendo de centro, articulador astuto e experimentado, conversa com ampla parte do espectro partidário – não é à toa que foi escolhido vice duas vezes na chapa atual.

Acredito que para serem ouvidos e se fazerem representar nesse momento crucial e complexo da história brasileira, os grupos defensores dos direitos humanos e sociais precisam deixar a birra de lado: acabar com a estória de golpe e reconhecer que o governo anterior perdeu as condições de governabilidade! Entrar na luta, exigindo e influenciando as reformas que precisam ser feitas nesses próximos dois anos.

Em particular as feministas, cuja identificação com as forças ora afastadas vem de um outro  momento histórico[1] , precisam desvencilhar-se delas e reconhecer-se em novos tempos. Da mesma forma que outros representantes progressistas[2] poderiam atuar já, incorporando as suas demandas e pressionando as forças de Centro que ora assumem o poder. No caso do governo interino ter sucesso na Economia, arrumando minimamente as Contas Públicas e melhorando os principais indicadores econômicos tanto melhor para toda a sociedade. Isto deve nos proteger da aparição de algum salvacionista de extremos, que eleito em situação de convulsão social,  possa vir a  eliminar muitos dos avanços arduamente conseguidos.

Clarice Lispector em seu conto Praça Mauá, usa apenas algumas poucas páginas, para balançar todas as estruturas da identidade feminina, construindo-a e a descontruindo de uma vez só . Com os seus protagonistas:  – Luísa, uma mulher casada sem filhos  que dança à noite num cabaré e que não sabe fritar um ovo , “atingida na sua feminilidade mais íntima”, por Celsinho um travesti com valores alinhados à sociedade tradicional, descrito como um “homem que não era homem…..uma verdadeira mãe….de uma meninazinha de quatro anos“, ao dizer-se (ele, Celsinho)  “mais mulher que ela (Luísa)”  –  mergulha na questão da identidade de gêneros, e não deixa pedra sobre pedra.

Os dois protagonistas assumem diversas identidades a um só tempo e mostram que Clarice já sentia, há mais de 40 anos atrás (o conto data de 1974), a mudança estrutural que vem, desde o século passado, nos transformando em sujeitos fragmentados, ou seja, com várias identidades . Segundo Stuart Hall, em seu livro A identidade cultural na Pós-Modernidade , as paisagens culturais de gênero, classe, sexualidade, raça , etnia e nacionalidade estão todas fragmentadas e não nos fornecem mais localizações sólidas como indivíduos sociais.

Dessa forma a mulher, o homossexual, o negro, o travesti, podem sim assumir várias identidades, que não só a de minoria. Sendo sujeitos ex-cêntricos – expressão de Linda Hutcheon “para nomear os que estão na margemficam dentro e apesar disso fora – agregam uma perspectiva diferente e sempre estariam alterando seu foco, por não possuir uma força centralizadora”. Dessa forma sempre dariam voz às diferenças, e com sua “visão alienígena e crítica”, a meu ver, têm um papel fundamental neste momento.

O movimento feminista especialmente, experimentado e habilidoso em lidar com grandes diferenças – de grupo étnico, classe social e orientação sexual – dentro de seus próprios domínios, agregaria muito ao se fazer presente e influenciar neste mandato. Começaram mal, mas há tempo para corrigir rumos, mesmo que não seja muito….. O tempo é curto!!!

PS> Antes de finalizar este texto na quinta passada (19/05) pela manhã, soube pelos jornais que  a então recém-nomeada secretária nacional de Direitos Humanos Flávia Piovesan, havia defendido na quarta anterior uma revisão da legislação do aborto, de forma a livrar mulheres de punições pela prática! O Comitê Latino americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher no Brasil no entanto, do qual Flávia é membro-fundadora, repudiou a sua nomeação. As militantes do movimento feminista já manifestaram o desacordo com a decisão de Flávia de assumir o cargo e se declararam chocadas. Oxalá mais militantes pensem como Flávia e se façam cada vez mais presentes!

[1] Segundo Ana Paula Comissário e Tania Lima da UFRN: “A quarta onda do feminismo se dá por volta dos anos 70 e se  configura principalmente como resistência e oposição à Ditadura Militar. Enquanto no restante do mundo o movimento feminista luta pela igualdade de direitos, no Brasil além da igualdade as mulheres lutam contra a censura e a favor da redemocratização.”

[2] Tendo tido suas ideias utilizadas no plano de Temer, Ricardo Paes e Barros foi arquiteto do bolsa família do Lula, e já aponta caminhos para um ajuste fiscal, que não penalize os pobres e também de como pode ser aumentada a efetividade da política social. http://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/13/economia/1463160432_264703.html