Zhang Ziyi em Memórias de uma Gueixa, filme dirigido por Rob Marshall (2005)

Zhang Ziyi em Memórias de uma Gueixa, filme dirigido por Rob Marshall (2005)

Fernando Dourado

“O grande perigo da embriaguez é que ela não deixa afundar a verdade, pelo contrário. O que ela faz remontar à superfície, o que ela revela do indivíduo, não é sua vontade presente, mas sua história passada, antiga, esquecida. Ela vai até mesmo buscar no fundo obscuro da consciência, para jogá-las em plena luz, essas imaginações barrocas com que a gente se compraz no momento, sem disso guardar a lembrança. Ela negligencia o que foi corrigido e lê tudo o que é ainda perceptível no nosso coração” – Italo Svevo, in “La coscienza di Zeno” – 1923.

Fevereiro de 2015 – Alameda Casa Branca, São Paulo – SP.

Foi pouco depois da volta às aulas, quando o liceu italiano começou a se encher de gritos estridentes e a rua ficou intransitável na hora do almoço, que chegou pelo correio um envelope com nome e endereço de Mario cuidadosamente redigidos. Vinha de Kyoto, Japão, e tudo levava a crer que continha as novidades pelas quais ele ansiava desde que lá estivera pela última vez, no ano anterior. O destinatário ainda pensou em sentar em um dos bancos do jardim interno, próximos à guarita da recepção e, ali mesmo, ler o que lhe tinha a dizer o correspondente. O sol de fevereiro estava forte, mas uma brisa agradável varria São Paulo. Mesmo assim, ele preferiu subir de volta, adiar por alguns minutos os pagamentos que faria no banco, tirar os sapatos e, só então, abrir a cartinha que vinha com um selo único. Nele se via o perfil de um senhor oriental, de cavanhaque e óculos de aro, sobre um fundo amarelo-ouro. Ao lado, a autenticação mecânica de 240 ienes.

Para os padrões asiáticos, a mensagem estava longe de concisa. “Tenho o prazer de informar que, após meses de tentativas, a Srta. Komatsu aceitou reencontrá-lo na primavera. Embora a princípio tenha considerado a possibilidade de fazê-lo na época da floração das cerejeiras, segundo sua sugestão, terminou por julgá-la inadequada. Por razões de foro íntimo, descartou também a cidade de Nara. Prefere, portanto, um encontro em Tóquio no mês de maio e aguarda instruções. Estas deverão me ser enviadas o quanto antes. Por oportuno, me permito assinalar que a Srta. Komatsu continua uma mulher bonita. Ademais, levou semanas para confirmar que está pronta para sua visita. Foi ela mesma quem entrou em contato com a agência quando já tínhamos desistido da abordagem. Com poucas palavras, o que condiz com alguém de sua estirpe, foi oblíqua, mas clara. Depois de ponderar, achou que o passado merece esse gesto. Espero que a notícia o encontre com saúde. Cordialmente, Tetsuo Hirata”.

Mario viu as lentes dos óculos embaçar. Quer dizer, então, que agora estava a seu alcance revê-la? Como será que o investigador chegou à mulher certa? E como Akiko reagiu ao mensageiro que trazia notícias distantes na geografia e no tempo? Repudiou-o com um agradecimento ou, pelo contrário, o deixou falar? E por que não quis revê-lo na mais bela época do ano? Seria a conotação romântica da estação? Sim, isso fora uma provocação, admitia. Dor maior para Mario era remeter o reencontro para Tóquio. Desde que visitara Nara, onde chegara com décadas de atraso no seu encalço, ele já se vira caminhando com ela em meio aos veadinhos do templo Todaiji. Melhor seria se contentar com o que tinha à mão. Não foi pouco o que Hirata-San conseguiu. Será que ele chegou mesmo a dar o caso por perdido ou apenas valorizava o serviço? Ressaltar a beleza de Akiko Komatsu, no entanto, era redundante. Com que propósito um homem sóbrio se dava a tal transbordamento? Cumplicidade masculina japonesa? Talvez.

Aquele dia de fevereiro de 2015 custaria uma eternidade a passar. Pagas as contas, Mario telefonou para o melhor amigo e convidou-o para jantar no Sushi-Guen, na galeria de esquina da Brigadeiro Luis Antônio com a avenida Paulista. Hélio foi pontual mesmo porque morava ao lado, na virada da alameda Santos. Essa proximidade de casa era prudente quando se tratava dele. Mario deixou a cargo de Shimizu-San a elaboração dos temakis de ouriço, e Neide trouxe da cozinha uma cuia com ostras de Cananéia, temperadas com suco de limão, rabanete picado e molho de soja. Beber era importante. Para regar a ocasião, pediu uma garrafa grande de saquê Hakusan e, na companhia do amigo, Mario se embriagou com gosto até chegar ao ponto da revelação. Será que Hélio lembrava de Akiko Komatsu, a japonesa com quem namorara há 30 anos? Pois bem, ela fora localizada. Em três meses, iria revê-la. Mas o amigo já estava bêbado demais para comentários originais. Apenas balançou a cabeça em descrença.

*

Último sábado de Maio de 1985 – Rua Angatuba, Pacaembu, São Paulo.

Para Mario, na verdade, era como se o passado remoto tivesse acabado de ocorrer. E, no entanto, três décadas tinham ficado para trás desde que a conhecera. Na época, era casado com Cristina, uma baiana bonita com quem estudou na Universidade de Brasília. Em São Paulo, no ano fatídico, vivia então uma quadra profissional trepidante, o que se refletia forçosamente na vida social que embalava o jovem casal. Assim, dificilmente havia uma semana em que eles não tivessem um casamento a que comparecer. Sendo maio de 1985 – passado o calvário de Tancredo Neves, falecido um mês antes -, os noivos da época pareciam estar especialmente ávidos em trocar votos no altar. Apesar de se viver tempos difíceis, a ditadura tinha ficado para trás e havia um país a reconstruir. Por macabra maquinação do destino, a presidência caíra de presente no colo de Sarney e, malgrado o bigode caricato, este fazia de tudo para se desvencilhar da imagem de capataz dos militares. Aquela era, portanto, a terceira boda que prestigiavam no mês das noivas e ambos sabiam o quanto a presença deles distinguia a festa.

As recepções tanto podiam ser as mais sofisticadas, cheias de mulheres vaporosas exalando Giorgio Beverly Hills – o adocicado perfume da moda -, quanto as cerimônias mais despojadas. Quando este era o caso, Mario não hesitava em enlaçar Cristina e ambos eram os primeiros a acompanhar os noivos nos volteios do salão. Assim fazendo, ficavam liberados para sair mais cedo, depois de marcar presença. Tratava-se de um velho truque de filha de político que ela trouxera de berço. Era essa versatilidade que os tornava indispensáveis no ciclo de amigos crescente que tinham feito em São Paulo, onde já viviam há quatro anos. Tamanha desenvoltura, vinha também das origens nordestinas. Poucos conseguem alternar elegância com simplicidade quanto os nordestinos bem-nascidos, lhe disse um puxa-saco melífluo que, no fundo, o odiava. O casamento daquela noite, contudo, poderia ter sido apenas mais um. Aconteceu no Pacaembu, nas dependências do que tinha sido um clube de tradição – o Nacional -, mas que logo viveria vertiginosa decadência. A festa, contudo, se tornaria especial e Mario ainda não sabia por quê.

Nesse contexto, se não restou traço de memória sobre quem era a noiva, ele, o noivo, tinha sido um discreto colaborador da área de logística. Era Marcos Fritsch, um metido a grã-fino cujo pai tinha planos de alçá-lo a outros voos, como de fato faria. O frio reinante na pré-temporada de inverno daquele ano, levou as mulheres a caprichar nos trajes quentes e algumas envergavam estolas de pele. Logo à entrada, mal tinha deixado o Opala areia-metálica com o manobrista, a elegância feminina foi o detalhe que mais chamou a atenção de Mario. De onde saíra tanta mulher bonita? Agora que estava ali, contudo, lamentava ter insistido com Cristina para que o acompanhasse. Sem muita dificuldade, a teria convencido de que só pretendia cumprimentar os noivos e voltaria a tempo de jantarem com amigos no La Tambouille. Se a festa estivesse boa, como parece que seria o caso, teria esticado sozinho e depois inventado uma desculpa qualquer. Mas ela viera, apesar das cólicas. Paparicada pelo carisma e por ser a mulher do chefe, Cristina estava feliz. Muito mais estaria, contudo, se o casamento não estivesse ferido de morte.

A certa altura, enquanto tomavam um Jack Daniels – ela com Coca Cola e ele on the rocks -, a esposa foi ao banheiro, deixando Mario entregue a um raro momento de solidão. Naqueles anos, quando a boate Gallery ainda era um ponto de referência importante na rua Hadock Lobo, e os casais dançavam ao som da big band que fazia várias aparições ao vivo no recinto, a cidade parecia viver festas de Glenn Miller. Alguns intérpretes tinham se tornado dominantes. Era o caso de Frank Sinatra. Tendo visitado São Paulo no começo da década e feito apresentações que marcaram a vida dos que o viram no recém-inaugurado Maksoud Plaza, o repertório inconfundível era garantia de pista cheia. Desde “New York, New York” até “My way”, as pessoas se comprimiam. Entregue a essas divagações, Mario se sentiu compelido a olhar em direção a uma mesa ao lado, a terceira à sua direita. Então percebeu que uma linda oriental parecia observá-lo há tempo. Num impulso, ele foi até ela. E, em um minuto, estavam também dançando e trocando sussurros diante de um público perplexo. Quem os visse, diria que eram íntimos.

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Última semana de Fevereiro de 2015 – São Paulo, SP.

“Hirata-San, Ohayo Gozaimasu. Muito obrigado pela carta em que confirma contato com a Srta. Komatsu. Folgo em saber que continua bela. Confesso que a demora em receber notícias já tinha me levado a desistir da ideia de reencontrá-la por seu intermédio. Mas em momento nenhum duvidei de seu empenho em localizá-la no universo de homônimas da região do Kansai. De acordo com suas instruções, gostaria de informar que sairei de São Paulo na segunda terça-feira de maio, chegando a Tóquio na tarde da quinta-feira. Ficarei hospedado no hotel New Otani, em Akasaka, onde já tenho reserva confirmada. Peço-lhe o obséquio de me encontrar na capital nessa mesma noite para que possamos conversar sobre esse instigante episódio. Sei bem das condições que regem nosso contrato e não pedirei detalhes que não lhe pareçam adequados ao espírito de sua missão. Quanto a ela, se nada houver que a impeça, sugiro que esteja na cafeteria do mesmo hotel às 16 horas da sexta-feira seguinte à minha chegada, portanto no dia 15. Uma suíte estará reservada em nome de Akiko Komatsu, na ala que dá para o jardim. Cordialmente, Mario”.

 

Fevereiro de 2015 – São Paulo, SP

Hélio telefonou no dia seguinte ao porre no restaurante japonês. Queria pedir desculpas pela bebedeira e disse que de um tempo para cá, a própria Graziela, que o conhecia de uma vida, vinha estranhando os apagões que o acometiam. A dificuldade em se manter lúcido era tanta que normalmente não sabia como chegava em casa. Como fazia com tudo que lhe acontecia de anormal ou atípico, já levara o caso ao médico, o confidente de todas as horas. Este simplesmente recomendara que não bebesse sem comer e, sobretudo, que tratasse de beber menos – o que era o mais difícil. Não obstante a memória turva, Hélio lembrava perfeitamente que Mario se referira a Akiko Komatsu e ele não conseguiu reprimir uma reação de incredulidade diante da resiliência de uma história que vira nascer. Isso só podia ser tara, brincou. Será que Cristina um dia se recuperou do susto? E em que medida ela atribuía o fim do casamento àquele encontro furtivo, por ocasião da festa de um dos colaboradores mais opacos da equipe? Ao longo dos anos de convivência, mais de uma vez tinham se perguntado sobre o papel dos acontecimentos fortuitos – tema caro a Polanski. De alguma forma, Hélio acompanhara o caso do marco zero.

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Maio de 1985, São Paulo, SP

Na festa de Fritsch, ao voltar do banheiro, Cristina sentou, registrou a cena, mas não passou recibo. Desde que chegaram, tinha sentido o marido ausente. Elegante em um smoking– não era rara uma festa black-tie naqueles dias -, a síndrome da abundância poderia estar deprimindo-o. A inconstância amorosa era talvez o resultado cruzado das extravagâncias periódicas – e um artigo já o alertara sobre os efeitos depressivos da bebida -, e da visível insatisfação que vinha lhe causando o casamento prematuro, seguido da chegada inesperada dos gêmeos há apenas dois anos. Ademais de tudo, as altas funções também pesavam. Até por entender claramente como esse mecanismo se operava, Cristina era tolerante para com as escorregadas recorrentes em que o pilhava. O mais grave, contudo, é que ele parecia ir cada vez mais longe na provocação. Aquela conduta, por exemplo, a desqualificava a céu aberto. Ei-lo, portanto, ali: dançando aos sussurros com uma japonesa alta, cabelo chanel, boca vermelha, colar de pérolas e lindo vestido preto. E fizera isso mal ela dera as costas. O que alegaria dessa vez? Que ela viera convidá-lo? Ora, que o casamento não ia bem, era difícil de ocultar. Daí a humilhá-la publicamente e desrespeitar até as aparências, era ir longe demais.

Terminada a música, Mario acompanhou-a à mesa e voltou à sua com ar de quem cumprira uma obrigação protocolar das mais desagradáveis. Cristina não disse palavra e foram os noivos que, sentindo o frisson do ambiente, se acercaram para tirar uma bateria de fotos. Mario aceitou o charuto que lhe trouxe Marcos Fritsch e, por muitos anos, o retrato captou a dinâmica contrastante de um casal que começava a vida naquela noite; e de outro que afundava a olhos vistos. O que era uma pena, pensando bem. Tendo Cristina um talento natural para se relacionar com pessoas influentes e, sobretudo, identificá-las com uma perspicácia treinada e testada, Mario podia se dar ao luxo de ser o que era porque o mundo também conspirava em favor de suas qualidades de jovem estadista empresarial. Formulador da política corporativa internacional de um grande Conglomerado, já era global antes mesmo do advento da palavra. No dia a dia, criara a percepção concreta do que era montar uma rede em pontos tão remotos quanto a Malásia e o Equador; a Islândia e Hong Kong. Pensar que tanto talento agregado não evitaria o naufrágio da família, os torturava cruelmente. Seriam eles vítimas do próprio sucesso? Era a tese do terapeuta de casal, Dr. Alfredo, contratado a peso de ouro. No fundo, eles pareciam concorrer.

Fritsch pediu licença e levou Mario pelo braço ao banheiro. Você pirou, cara? O que você viu na japinha? Não sei, deu vontade, ela estava me comendo com os olhos, fiquei com medo de perder o contato, fui pra cima, ora. Sabia lá quando iria vê-la de novo? Na dúvida, avancei. Agora, pelo menos, já sei onde achá-la. Mas bastava ter me pedido, ô maluco, sem precisar se expor desse jeito. Quer saber? Vamos dar um teco aqui nessa farinha puríssima e depois de duas carreirinhas você vai dançar com sua mulher para apagar essa imagem, entendido? Cara, essa japa você encontra quando quiser, mas agora fique distante dela, certo? Ela já estava parada na tua desde que vocês chegaram. Ela te conhecia de uma palestra que você deu na faculdade. Ela é louquinha também, mas não vale seu casamento, está claro? Agora vamos voltar para a festa com uma cara boa. Vamos sair separados para não dar bandeira, falou? Pronto, vem cá, Helinho. Leva aqui nosso grande Mario de volta à mesa. Daquele dia, quantas vezes não lhe pareceu incongruente que o chefe tivesse sucumbido a uma paixão que não era páreo para Cristina? São Paulo, apesar de cosmopolita, sucumbia facilmente ao raciocínio provinciano. Décadas depois, lá vinha Mario com a mesma ladainha, matutava um pensativo Hélio.

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12 de Maio de 2015 – Tóquio, Japão

O A-380 da Lufthansa chegou ao aeroporto de Narita no começo da tarde da quinta-feira. Como aprendera desde que visitara o arquipélago pela primeira vez, no começo dos anos 80, Mario foi ao balcão do “Limousine Bus” e comprou um ticket no enorme ônibus alaranjado até Akasaka. O voo foi perfeito e a tripulação só falou o estritamente necessário. O gigantismo daquele avião que, ao ver pela primeira vez, lhe parecera tão disforme – uma imensa baleia voadora, na verdade -, era o que podia haver de confortável e silencioso. O mais impressionante era que todo o upper-deck da cabine era destinado para os passageiros de classe executiva e primeira. Se não tivera acesso a essa última, vedada a curiosos que queriam espiar as instalações nababescas dos astros da música e do futebol, a disposição das poltronas da business já era um show de conforto e Mario não conseguia conceber o dia em que o Brasil voltaria a ter uma companhia aérea que reeditasse o prestígio da finada Varig. De novo, era outro caso de malversação de força política; tudo isso vinha de longe. Na equipe de aeromoças da empresa alemã, duas japonesas garantiam tratamento na língua nativa aos nipônicos engravatados que faziam a rota semanalmente.

Quase três horas depois do pouso, chegou ao hotel. Os quartos do New Otani não eram os preferidos de Mario. Nos anos do grande boom japonês, costumava ficar no Imperial, em Ginza, o grande referencial de prestígio. Anos depois, à medida que as demandas do protocolo se tornaram menos exigentes, o Okura passou a ser a melhor opção – até mesmo por ter os quartos mais confortáveis da hotelaria da capital. Mas o New Otani – um dentre os tantos hotéis em Akasaka Mitsuke – era de longe aquele que lhe trazia as recordações mais agudas. Próximo ao escritório da sogo-shosha com que mais trabalhou nos anos 80 e 90, foi nesse hotel que esteve com Akiko Komatsu das vezes que a viu no Japão, a primeira delas dias após a assinatura do divórcio. Em tempo: o casamento de Mario e Cristina não acabou no rescaldo da festa. Um ano mais tarde, ainda estava de pé, embora adernado, e a dinâmica da vida dele tornava suportáveis as dores que normalmente teriam vitimado um casal mutuamente mais comprometido. A vida de Mario com Akiko, porém, ganhara ritmo e intimidade na semana posterior à festa. Os pais dela por certo estranhavam aquele namorado gaijin que não aparecia nos fins de semana e que, vez por outra, rebocava a filha universitária para viagens a Buenos Aires e Rio de Janeiro.

Ao entrar no quarto, Mario se entregou ao velho ritual que aprendera na juventude. Antes mesmo de tomar um banho ou dar um cochilo, convinha tirar a roupa toda e se deitar no chão frio do banheiro. Segundo lhe confidenciara um experiente comandante da Varig, então baseado em Los Angeles, ao fazer assim, se aterra eletricidade estática. Não somente se dorme melhor, quando chegar a hora, como se evitam aqueles pequenos choques que pinicam os dedos quando eles tocam na maçaneta da porta, num talher ou mesmo ao pegar o troco numa banca de revista. Procedimento cumprido, desfez a mala, tomou um demorado banho quente e vestiu a yukata e os chinelos, traje obrigatório para curtir a pleno o aconchego do apartamento. Só então preparou um chá verde e foi tomá-lo sentado ao lado do imenso janelão lacrado. No horizonte, assomava a silhueta do Monte Fuji. O cume nevado ganhava um tom róseo ao entardecer. Alguns helicópteros se deslocavam na direção de Ginza e as luzes vermelhas de sinalização aeroportuária dos prédios começavam a piscar em volta. Dali discernia Shinjuku, Shibuya, Harajuku e Akihabara. Na região de Roppongi, se destacava a Torre. Mario tinha sido muito feliz naquele colosso cujo perímetro comportava quase 40 milhões de almas. Pensar que tudo aquilo se assenta sobre uma flagrante falha de camadas tectônicas, é o caminho mais curto para a insônia. Um dia um terremoto reduzirá tudo o que a vista alcança a escombros. Salvo, talvez, a montanha sagrada.

Já estava quase escurecendo quando o telefone tocou, interrompendo um cochilo curto, porém reparador. Era Hirata-San, pensou. Mushi-mushi. Konichi wa, Hirata desu. Irasshaimase, Hirata-San. Shotto mate, kudasai. Mario deixara a roupa separada e o terno estava no vinco. Como tinha certeza de que o investigador estava em traje social, ele também vestiu uma gravata azul-marinho, depois de hesitar por um minuto. Não, o adereço não haveria de incomodá-lo, já desinchara do voo. O compacto Hirata, um homem musculoso e de ar acolhedor, se deixou conduzir pelo longo corredor que levava à cafeteria do jardim, entre os dois blocos. Fiel ao ritual tatemae de perguntar platitudes sobre a viagem até que Mario tomasse as providências de entrar no honne, a dimensão da verdade, se contentou em enxugar o rosto com um oshibori quente e, vendo que escurecera, pediu uma cerveja Asahi. Mario pediu uma dose de uísque Suntory para evocar os velhos tempos. Quando as bebidas foram servidas e brindaram à ocasião, Mario pediu que passassem para o inglês. Agora o tema ficaria sério e ele queria pisar em terreno seguro. Hirata-San, um pouco decepcionado, começou “Ano ne …You are a very lucky man“. E abriu um sorriso. Por que Mario seria tão sortudo? Mas já era um bom começo.

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De Janeiro de 1987 a Março de 1992 – No mundo.

Com o fim do casamento, Cristina foi viver na Bahia com os gêmeos e em pouco tempo as cicatrizes estavam cauterizadas. Afinal, se estimavam e tiveram seu momento. O único senão é que o casamento deles acontecera cedo, na cola de uma paixão arrebatadora. Os amigos de Mario o advertiram de que ele era ainda novo, embora não fosse incomum na época que recém-formados quisessem começar logo a etapa seguinte da vida. Mesmo espíritos pouco convencionais como Mario, sucumbiam à tentação. Ora, quando a união começou a fazer água, os contemporâneos do casal agora é que estavam começando a casar – em torno dos 30 anos – e Mario conheceu alguns que retardaram a freada até meados da década seguinte. Pois bem, agora ele era um deles. Livre das peias familiares e no auge de uma carreira fulgurante, é claro que houve tempo para a jovem Akiko. Mas, e isso ela custou a entender, ela integrava o pacote do casamento, por paradoxal que fosse. E com o fim deste, nada mais normal que o namoro paralelo também perdesse a sustentação. Afinal, Mario queria experimentar a vida sem freios – e, por uma vez, de direito e de fato. Foi vendo o sofrimento da filha, e as incertezas que lhe pairavam sobre a juventude, que o pai de Akiko optou por mandá-la de volta para o Japão. Lá ela teria um choque de realidade. E mudaria para melhor.

Se levou um susto quando informado, logo Mario viu o lado bom das coisas. Não era Marcos, o noivo da noite histórica, quem costumava chamá-lo de Mario McCoy, numa referência divertida à vida de Sherman McCoy, o protagonista de A fogueira das vaidades, de Tom Wolfe? A comparação talvez não fosse inadequada. Nos anos que se seguiriam até 1990, quando completou 32 anos, Mario frequentava o grande circuito de Nova York, cidade onde criou uma base, e para variar, arranjou uma namorada – uma catarinense que conhecia de São Paulo. Como ela, Mario também era de apreciar a silhueta da ilha ao entardecer; tomar um dry-Martini no hotel Pierre; cultivar uma mesa no Sparks, onde os garçons faziam festa ao vê-lo e, vez por outra, dar escapadas para tardes de sexo nos quartos do Plaza – hotel que funcionou bem até se tornar a Meca da cleptocracia de Collor e expoentes. Se Tóquio e Akiko – agora, e de uma vez por todas, uma cidadã japonesa plena – eram o imã asiático, o paraíso ocidental era Manhattan. E, com ela, a voz de veludo de Tony Bennett; um solo de saxofone e, vez por outra, uma cafungada de cocaína no porão do Au Bar, inalando-a em canudinhos de cédulas.

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20 de Abril de 1994 – Nara, Japão.

“Querido Mario, Agradeço ao destino mais essa chance que nos deu de nos encontrar em Tóquio, por ocasião de seu aniversário. Tenho pensado muito desde então. Quando você me conheceu, eu tinha 21 anos e era uma menina nipo-paulistana do tipo mais mimado. Hoje eu tenho 30, as mãos ficaram calosas e já passei muito dos limites japoneses para casar. Ter tido minha vida atrelada à sua foi um presente. Por outro lado, se é verdade que o terei sempre em mim, já não posso esperar por suas definições quanto ao amanhã. Ademais, digamos que nesses sete anos que vivo na terra de meus ancestrais e onde eu própria nasci, me redescobri como cidadã de um país que precisa de mim. O Brasil terá ficado como uma utopia tropical de parte da minha família. Como o país que me permitiu viver fantasias, tendo sido você a principal delas. Em plena floração das cerejeiras, fiz uma longa reflexão e tomei decisões que terão impacto pelo resto da vida. Agora me sinto mais tranquila para saber que o perdi e que não o terei comigo em Nara, como um dia sonhei. Isso é, portanto, uma despedida. É hora também de me mudar e aceitar convites que me remetam de vez à vida adulta. Portanto, estou de mudança para a vizinha cidade de Kobe, já na próxima semana, onde assumirei a área de suprimento de uma importante loja de departamento. Você foi o que de melhor me aconteceu, mas não posso mais pesar sobre sua vida. Guarde no coração tudo o que vivemos. É uma pena que não tenha vindo a Nara. Sua sempre, Akiko Komatsu”.

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14 de maio de 2015 – Tóquio, Japão.

A conversa com Hirata-San fora protocolar e este disse que todo o mais que houvesse de relevante seria narrado pela própria Miss Komatsu no dia seguinte, sexta-feira. Que ela aceitara de bom grado a suíte do New Otani e que ficaria lá até o domingo, o que lhes daria tempo de conversar o bastante. Segundo averiguara, foram difíceis os dias dela desde que tinha visto Mario da última vez, na primavera de 1994, portanto há 21 anos atrás. Instalada na bela cidade há alguns meses, Kobe foi sacudida em 17 de janeiro do ano seguinte por um terremoto violentíssimo. Se ninguém estava pronto para semelhante tragédia, ela a recebeu da forma mais dramática possível. O terremoto de Hanshin-Awaji custou a vida de quase sete mil pessoas. Sendo uma mulher elegante e modesta para admitir semelhante feito, fato é que Miss Komatsu superou todas as limitações que lhe impôs a devastação da cidade. Por razões que ela certamente lhe contaria, ela assumiu, no rescaldo da reconstrução, uma importante função no comitê de revitalização das instalações portuárias. E o fez como titular de um corpo de voluntariado. Isso lhe deu grande notoriedade nacional e, durante anos, foi uma pessoa midiática na região do Kansai. Muitas mulheres se identificaram com sua saga e empenho. Até que, com a inauguração da nova área, ela se voltou para vida privada, sem deixar rastro visível. Daí a dificuldade em encontrá-la.

Mario nunca deixara de visitar o Japão, mas jamais voltou a procurá-la. Ter respeitada sua privacidade e deixar que retomasse a vida sentimental com um japonês de bom coração, era tudo do que ela precisava. Dias depois do terremoto de Kobe, ele esteve na cidade e saiu impressionado com o que viu. Estando em Osaka a trabalho, tomou um trem para Nada e dali os caminhos ferroviários já estavam destruídos. Chegou a Kobe de ônibus e tinha que voltar até o anoitecer. Não chegou a se preocupar tanto pela sorte dela pois algo lhe dizia que estava bem. Mesmo assim, passou anos à procura de notícias. Ninguém da família ficara em São Paulo – os pais e a irmã mais nova tinham mudado de endereço. Foi assim que o tempo passou e, sem se aperceber, Mario também amadureceu. Tinham ficado para trás as farras no Kempinski, de Berlim; perderam também o apelo as noites de bebedeira no Bain Douche parisiense e, pouco a pouco, os museus voltaram a se impor. Largou as grandes empresas e se tornou consultor. Até que em 2014, resolveu passar um mês no Japão. E, numa visita a Nara, o coração da meia-idade se emocionara ao pensar em Akiko Komatsu. Daí ter contatado Hirata-San, o detetive. O reencontro seria, portanto, 21 anos depois da última vez que tinham se visto. Ali mesmo, no hotel New Otani.

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15 de Maio de 2015 – Akasaka e Ginza, Tóquio – Japão.

A temperatura reinante em Tóquio na manhã daquela sexta-feira, 15, era divina. Mario dormiu com a ajuda de um Stillnox e conseguiu atravessar a noite relativamente bem. Pela manhã, desceu ao restaurante e comeu como os locais: legumes cozidos, arroz branco, peixe ao vapor, missoshiro de moluscos e um bule de chá verde. Energizado, foi de táxi até a entrada do Palácio Imperial e deu então uma longa volta em torno do complexo, passando pelo edifício da Dieta, o parlamento japonês, de onde voltou para o hotel, revisitando em cada esquina as pegadas de uma longa história com aquelas ruas. Resistindo tenazmente ao sono, foi à elegante Mitsukoshi, de Ginza, para lhe comprar um presente bonito que assinalasse o reencontro. Ela fatalmente traria alguma coisa e ele queria que Akiko sentisse o quanto aquele momento era importante. Adoraria poder comprar um pequeno colar de pérolas na Mikimoto, mas não poderia haver presente mais inadequado e este era bem possível que ela recusasse peremptoriamente. Comprou-lhe então um lindo foulard Hermès e voltou para descansar. O que mais podia fazer até o horário aprazado, senão matar como pudesse a passagem lenta do tempo? Logo estaria na hora de descer.

Às três e trinta, ele já estava acomodado na cafeteria, a uma das mesas que tinha vista panorâmica sobre o jardim que se via lá embaixo. Se estava bem lembrado, tinha sido ali mesmo – numa disposição parecida – que a viu pela última vez, em 1994. Altiva e orgulhosa, Akiko não lhe tinha permitido reembolsar sequer as passagens de trem bala de Nara a Tóquio. Tampouco deixou-o pagar o caro jantar que se seguiu, apesar de ele insistir que aquilo seria lançado como despesa de pessoa jurídica. Depois dormiram e ela saiu no primeiro shinkasen de volta para a dura vida prática. Agora ele estava a minutos de revê-la e não desgrudava o olhar da longa passarela, diante da prestigiosa galeria de arte do hotel. Será que ela o acharia muito gordo? Certamente. Mas que importância tinha o detalhe a essa altura? Um grupo de senhoras em kimono típico chegou para o chá. A atendente as trouxe até uma mesa vizinha, e todas se acomodaram, menos uma. Esta, de traje marfim, se destacou do grupo e ficou a meia-distância. Mario pensou se tratar da organizadora da confraternização entre amigas. Como tudo no Japão é ritualizado, por certo esperava que todas estivessem sentadas para que ela própria puxasse uma cadeira para si. Já era quase quatro horas e Mario sentiu-se ansioso, quase irritado. De pé, a mulher de quimono de seda marfim, meias brancas e sandálias altas, permanecia estática. E parecia olhar em sua direção com um meio-sorriso. Era ela. Akiko. Miss Komatsu.

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15 de maio de 2015, 16:05 hs no bar do hotel New Otani, Tóquio – Japão.

Mario se dirigiu até onde ela estava com movimentos contidos. Ela se curvou levemente, e deixou que ele lhe apertasse as mãos entrelaçadas em que levava uma pequena bolsa. A maquiagem carregada não permitiu a Mario discernir os estragos do tempo. Conteve a vontade de abraçá-la à moda brasileira e fez sinal para que ela sentasse. Nos primeiros dez minutos, Akiko manteve o olhar baixo. Só depois, progressivamente, passou a levantá-lo um pouco. Por fim, embora japoneses evitem o contato visual direto, ela deixou que os olhares se encontrassem. A primeira coisa que pediu foi que Mario relevasse seu português que estava bastante destreinado. Puro tatemae, mera demonstração de humildade, estava ótimo. Ele rebateu que o mesmo vinha ocorrendo com seu japonês, mas que talvez não precisassem de tantas palavras. Ela assentiu sem convicção e lhe agradeceu por ter vindo de tão longe para revê-la. Sim, o pai havia falecido, mas a mãe vivia na região. A irmã casara no Brasil e o marido era grande plantador de algodão no Mato Grosso. O garçom enluvado lhe serviu o chá e trouxe um prato de docinhos. Ela então serviu Mario e perguntou como ele ia. Como estavam os gêmeos? Ora, um deles já lhe dera um neto e morava no Recife. O outro vivia com um companheiro em Toulouse, na França. So desuka? E ela? Com que trabalhava? Podia perguntar se estava casada? Nesse momento, Akiko Komatsu tirou um pequeno lenço da manga e disse que o momento pedia serenidade, mas que esperava manter a compostura enquanto relatasse o que há anos vinha ensaiando. Mario engoliu em seco e assentiu com um gesto. Ela começou.

“Semanas depois de sua partida, em maio de 1994, eu descobri que estava grávida. Se interromper uma gravidez em São Paulo meses depois de nos conhecermos foi a dor mais brutal de minha vida – e você nunca soube disso -, eu jamais deixaria que isso acontecesse pela segunda vez. Resolvi que iria até o fim e foi assim que cheguei a Kobe para assumir o emprego com que sonhava. A sociedade japonesa pode ser um pouco cruel com mães solteiras, mas não era isso o que me preocupava. Como sempre tive muito boa saúde, o período foi dos mais felizes de que tenho lembrança. Eu já não estava mais só no mundo. Se, por um lado, sabia que o tinha perdido e que seu coração já tinha outra dona, ter um filho seu era deixar um registro daquela festa maluca em que nos conhecemos e do muito que vivemos depois. O bebê – que eu sabia ser um menino – estava programado para nascer até 20 de janeiro de 1995. Eu já estava de licença desde a semana anterior e desistira de tê-lo em Nara para permanecer com o mesmo obstetra de Kobe. Naqueles dias, o inverno estava frio, mas fazia dias ensolarados. Minha melhor amiga, Kyoko, de Kanazawa, tirou férias e veio ficar comigo até o fim do mês. Seria o tempo de eu superar a primeira semana, já que meus pais ainda estavam no Brasil. Na noite de 16 de janeiro, eu já não conseguia mais achar posição para dormir. Kyoko brincou de trançar meu cabelo, como fazíamos quando éramos crianças, e, no dia seguinte, acordaríamos muito cedo para ir à clínica onde eu me internaria”.

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Anoitecer de 15 de Maio de 2015 – Bar e jardim do Hotel New Otani, Tóquio – Japão.

Lívido, talvez sem uma única gota de sangue no rosto, Mario pediu ao garçom que trouxesse uma dose dupla de uísque Suntory e ela fez sinal que estava bem, que por enquanto nada queria. Discretamente, a ponto de achar que Akiko sequer tinha percebido, ele levou um Rivotril até a boca e acompanhou o relato, de tudo fazendo para não queimar as etapas. Ela continuou no mesmo tom cadenciado, sem um laivo de dramaticidade. “Não conseguimos chegar ao hospital e você já deve estar imaginando por quê. Pois bem, Kyoko tinha terminado de fazer o chá e eu me certificava de que tudo que deveria estar na malinha, lá estava. O sol ainda estava escondido, se é que lembro bem de cada detalhe. A televisão estava sintonizada na NHK. Foi então, pouco antes das seis da manhã, que a terra começou a tremer. É fácil hoje as pessoas dizerem que o terremoto principal durou vinte segundos. Para nós, foi a própria eternidade e eu ainda tinha mais alguém com quem me preocupar. Com a cidade devastada, fria, escura, ameaçadora e o pequeno prédio em que eu morava rachado de uma lateral a outra, entrei em trabalho de parto. Kyoko gritou. Uma vizinha e um paramédico improvisaram uma instalação no andar térreo. Eu tinha levado uma pancada forte na cabeça, o cheiro ferruginoso do sangue me deixou enjoada, mas nada daquilo contava naquele instante. Eu só não queria desmaiar, perder o momento, colocá-lo em risco. Lembro, então, da aproximação da ambulância. Em meio a tanta algazarra, incêndios e várias detonações fortes, eu vivi o mais dramático da vida. Nunca mais terei outro igual. Veja você, Mario-San, como uma festa no Pacaembu pode terminar”.

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Mario não sabia o que dizer. O remédio fazia efeito lentamente, mas ele sorvia o uísque a grandes goles. Com cuidado para não borrar os olhos, ela vez por outra enxugava uma lágrima no canto da pálpebra. Afinal, ele lhe segurou uma mão sem muita preocupação com o que ela podia achar. Akiko empertigou-se e partiu para estocada final. Mario dependia das próximas palavras para saber se tinha mais um filho um não. “No caos, eu me senti feliz por aquele momento e jurei que, se nos salvássemos, eu ofereceria uma parte de minha vida para ajudar a reconstruir aquela cidade que me tinha dado tudo – a chance de uma nova vida, um bom emprego e um menino forte e valente. E que, logo percebi, tinha a fome do pai. E foi assim que nasceu Konosuke – em homenagem ao japonês que sempre admirei, lembra? Konosuke Matsushita. Sendo que o meu, o nosso, se chama Konosuke Komatsu. Tem vinte anos e quase cinco meses. Tem muito do pai, mas tem também a teimosia da mãe. Sempre foi aluno dedicado e dos brasileiros herdou a doçura. Atualmente mora aqui em Tóquio e foi admitido na universidade de Waseda. Com o dinheiro que meu pai me deixou, pude comprar um pequeno apartamento em Omote-Sando, onde ele está instalado. Antes que você pergunte, me desculpe por nunca lhe ter dito nada a respeito, mas é que nós mulheres temos muitas vezes um jeito próprio de ver as coisas. Quando soube que você queria me localizar, muita coisa me passou pela cabeça. Inclusive que você já soubesse da existência de nosso filho. Daí eu ter ligado para Hirata-San e tê-lo encontrado mais de uma vez para sentir o que você realmente queria. Suportei um terremoto, mas não suportaria um litígio. Quando Hirata-San me assegurou que você sequer sabia de Konosuke, fiquei mais aliviada. Talvez você só quisesse ver uma japonesa de 50 anos. Desculpe, é brincadeira. Então contei parte da história para ele. Agradeço que tenha vindo. Com isso, tiro uma culpa de mais de vinte anos nas costas. E nunca me senti mais leve. Gomenasai.

Mais recomposto, Mario tomou um longo gole do copo redondo. Então, Akiko Komatsu arrematou. “Agora enxugue bem as lágrimas e vamos esperar até que você recupere a cor. Eu também vou aceitar uma bebida; não foi nada fácil lhe dizer tudo isso. Pasme, mas em japonês teria sido impossível. Não teríamos saído da introdução a essa altura. Posso dar uma sugestão? Quando terminarmos esse drinque, talvez você queira descer até o jardim. Está vendo a pequena ponte de pedra onde o casal de noivos está fazendo pose? Vê um rapaz sentado no banco, olhando as carpas? É ele, nosso Konosuke. Acho que ele gostará de conhecê-lo”.

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Com sentimentos totalmente confusos, mas grato à vida e ao destino, Mario viu lá embaixo um rapaz alto, de mochila nas costas e paletó escuro. Só conseguiu perguntar: ele não tem nome brasileiro? “Claro que tem. Tem um nome ligado à distância, a quem nunca está onde queríamos que estivesse. Nome brasileiro, mas cujas quatro primeiras letras significam longe, muito distante, em língua germânica”. Ambos se dirigiram ao elevador e formavam um estranho casal naquele ambiente. Chegando ao jardim acidentado, se aproximaram lentamente do rapaz que, ao vê-los, se levantou de um pulo. Então Akiko disse: Konosuke, kore wa otosan desu. Esse é seu pai. Os dois homens se olharam fixamente sem se tocar. Foi Mario que, passados quase dois minutos, disse: Dozo yoroshiko – ou prazer em conhecê-lo. O jovem repetiu a fórmula. Aliás, o nome brasileiro de Konosuke era, por alguma razão, Fernando.

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