Sérgio C. Buarque 

Quadro de Kandinsky, o pai da arte abstrata.

Quadro de Kandinsky, o pai da arte abstrata.

O cidadão dirigia o seu carro numa rodovia de alta velocidade, bem relaxado no volante, ouvia uma música clássica no rádio quando, de repente, o locutor interrompeu a melodia com uma grave informação: “Atenção motoristas que circulam neste momento pela rodovia: tem um motorista maluco dirigindo pela contramão, recomendamos o máximo de cuidado!” O cidadão se assustou com a advertência, olhou para o lado para se preparar e, surpreso, gritou: “Oxente! Um só não, são dezenas de motoristas loucos na contramão”.

Como este motorista, me senti sozinho na contramão quando assisti ao tão premiado e altamente elogiado filme O som ao redor de Kleber Mendonça Filho. Não gostei, não senti nenhuma emoção, olhei para o lado e me perguntei: Eu estou na contramão? Que há comigo? Como posso não ter gostado de um filme premiado e elogiado por todos os críticos e por intelectuais que muito respeito, entre eles, editores e colaboradores da Revista Será? como Teresa Sales, Claudio Marinho, Sonia Marques e Chico de Assis. Reli as suas críticas e comentários na esperança de, quem sabe, descobrir a qualidade que me parecia obscura nas cenas para mim soltas e desconexas, no enredo confuso e banal, nos diálogos pobres, nos personagens singelos. Li e reli as criticas. Não me convenceram, embora tenha assistido ao filme com orgulho pelo sucesso de um jovem pernambucano na cena nacional e internacional, portanto, com uma predisposição totalmente favorável.

Lembrei, não por acaso, dos filmes de Jean Luc Goddard que assistíamos nas décadas de 60 e 70 tão elogiados quanto incompreendidos e que exigiam interpretações e rebuscadas reflexões em torno de simbologias e supostas metáforas que nem o diretor saberia explicar. O grande poeta pantaneiro Manuel de Barros disse uma vez que o “poeta não pensa, o poeta sente”. Penso que o leitor também não pensa ao ler um poema, o leitor deve sentir junto e em sintonia com o poeta, mesmo que sua estrutura psicológica desperte sentimentos diferentes. A poesia não precisa ser pensada, apenas sentida. Isso vale para as artes em geral e para o cinema em particular: se precisamos de uma discussão racional e lógica para entender o que o diretor pretende provocar nos espectadores, o filme não tem força artística. A pintura de Kandinsky ou de Miró, para citar dois grandes pintores abstratos, provoca uma emoção estética no observador sem que este precise entender (não tem mesmo o que entender) o que o pintor quis expressar e tudo indica que ele não tinha uma intenção e propósito além de manifestar seus próprios sentimentos. O poder da obra de arte reside precisamente na sua capacidade de desatar emoções nos simples mortais, considerando que a relação entre o observador e o artista é emocional e não racional, como num texto de teoria social ou física quântica (que também tem sua beleza, é verdade).

A sensação que desperta uma obra de arte não depende apenas da sua qualidade intrínseca (nem sei se existe qualidade intrínseca) mas também da sensibilidade do observador e, portanto, da empatia e sintonia entre o artista e o receptor da sua obra. Como parece que sou o único mortal que não captou a beleza e a emoção do Som ao redor, devo concluir que me faltou sensibilidade como receptor dos estímulos emotivos do grande filme. Eu não senti (percebi) o que meus amigos viram e sentiram. Lamento não ter percebido o cineasta costurando a sequencia do filme, como comenta Teresa, “em contraste com o preto e branco das cenas inicias” que faria o elo, que seria sutil, como sútil fora o suspense do filme. Minha insensibilidade não permitiu que sentisse esta sequência, menos ainda o elo sutil de suspense que, segundo diz, é quase imperceptível. Para mim, o elo foi totalmente imperceptível e a única cena de forte emoção e beleza – o banho na cachoeira – parece um momento perdido em que neto e filho desabafam (o tédio, talvez) num grito aberto, terminando com a água vermelha. Bela cena. Mas, o quê? Simbolizar a violência no campo? Anunciar a morte final? Será?

Penso que o retrato fragmentado do cotidiano de uma cidade, mostrando o rio e o perigo de tubarão na praia de Boa Viagem pode servir para apresentar um bom documentário mas não parece uma obra de arte. E o som, “principal personagem do filme”, segundo Claudio Marinho, não me despertou a sugerida “dramaticidade crescente que a gente acompanha pelas tensões do olhar entre os dois irmãos”, menos ainda o “barulho ‘erótico’ da máquina de lavar”. Barulho ‘erótico’ da máquina de lavar? É isso mesmo? Os ruídos da vida numa cidade podem inspirar belas composições dodecafônicas; mas devo confessar que não experimentei esta sensação estética do som que estaria conduzindo o filme. Faltou sintonia entre o diretor e espectador, no caso, eu? Olhando de lado fico ainda com a sensação de centenas de pessoas andando na contramão. Ou estou mesmo na contramão?