Fernando Dourado

Café da manhã na padaria em São Paulo.

Despertar

Até poucos anos atrás, ao despertar, eu elevava os pés o mais alto que podia e, de um salto só, colocava-os no chão com firmeza tal que eles seguravam este corpanzil sem lugar a sustos. Se fizesse isso hoje, a cabeça zuniria e não me espantaria sequer se perdesse os sentidos, e tivesse que me sentar na cama apoiado nas mãos, até debelar qualquer vestígio de zonzeira na mecânica de fluídos interna. Por outro lado, quando a máquina era mais rija e despertava com todos os apetites, eu não atentava para as lindas paisagens que quase sempre tive ao pé da janela. Hoje, tudo é diferente. Às 5 da manhã, se estamos em horário normal, os barulhos de São Paulo já povoam as ruas adjacentes e os roncos dos ônibus que resfolegam não me deixam mais indiferente. Caminho até a cozinha, ligo o velho rádio, e ajusto a antena para minimizar a estática que a proximidade da avenida Paulista provoca. Então vou à janela e vejo os edifícios – dezenas deles – banhados de uma aura rósea que não dura mais do que 5 minutos, mas que passou a constituir um momento alto do dia. Também gosto de fazer a barba, deslizando a lâmina pelas bochechas fartas e, depois disso, escolho um livro na prateleira, aleatoriamente, que lerei à guisa de inspiração, digamos assim. O banho é frio mesmo porque sempre temi sistemas de gás de prédios que são tão antigos quanto eu próprio, muito embora a morte no sono não me pareça a mais traiçoeira de todas, como acontecia até recentemente. Gosto de me enxugar diante do ventilador e não levo mais do que 3 minutos para me vestir. Isso se excetuados outros 3 que dedico às meias, um desafio patético já que tenho que sanfonar a barriga proeminente, de que já tive tanto orgulho, e cujas dobras hoje embutem os códigos de meu fim. Ligo então o celular e desço os 15 andares que me separam do térreo, torcendo para que ninguém embarque no elevador, interrompendo o bom ritmo. Ao passar pela guarita, nego o cumprimento de praxe aos porteiros porque os desprezo. Cá entre nós, são nordestinos que têm medo de mulher. Mais precisamente, de uma síndica de nome sinistro que os faz tremer. Francamente.

O gazeteiro

Toda manhã, passo pela banca de Dionísio, um jornaleiro sexagenário que transpira alcatrão. Ou seria a sudorese dos que começaram o dia tomando uma branquinha para acompanhar o primeiro cigarro? Não sei e, no fundo, não me interessa. Geralmente chego lá às 7 horas, mas pode ser 15 minutos mais tarde, depende do tempo gasto nas leituras da manhã. Em meu cronômetro interno, o procedimento é simples. Dou-lhe R$ 5,00 reais, ele me passa um exemplar de “O Globo” – tenho os demais jornais no escritório -, e sigo na mesma pisada para a padaria da alameda Casa Branca. Lá, tenho uns 20 minutos para comer um pão de queijo enorme, 2 ovos com torradas integrais e um copo de suco de abacaxi com hortelã. Pago R$ 24,00 com prazer. Mas um detalhe me perturba seriamente nesse enredo. É justamente quando Dionísio me dá o jornal, instante que refreia a evolução de nosso relato. Ao invés de pegá-lo às suas costas e me estender o jornal no mesmo movimento de braço para que ambos ganhemos tempo, ele o dobra, faz dele quase um cone – como os de batatas fritas que se servem na Bélgica -, e só então me dá, como se fosse um buquê a uma dama, nos tempos em que estas existiam, e com ares de quem serve algo frágil, que pudesse se desmanchar se não fosse tratado com cuidado de florista e meneios de galã. Ontem, explodi de irritação. Nem tanto pelos 5 segundos que toma a operação, mas pelo que ela evoca em algum lugar de meu passado: “Dionísio, você já vendeu algodão doce, cara? Quanta mesura, que saco. Parece que está com a vida ganha”. Então, ele assentiu: “Sim, senhor, eu vendia algodão doce no Playcenter nos anos 1980. Só mudei de atividade quando saí da prisão do Carandiru, onde cumpri 16 anos em regime fechado. E então me estabeleci aqui. Agora o senhor vai me dizer como sabe disso?” Baixei a pancada e fiquei manso, conciliador: “Ah, logo vi, rapaz. É que você pega o jornal com tanta graça que resolvi dar um palpite. Pelo jeito acertei, não é? Bom dia, Dionísio, vou indo”. Nessa manhã, cheguei ao escritório às 08:03. Perdi o dia, mas posso ter salvado minha pele de pior sina. Eu desconfiava que já vira uma centelha diferente refulgir nas pupilas de Dionísio. Ele só confirmou o que eu já sabia. E o que talvez nunca saberei. Dele sim, convém ter medo. Da síndica, não.

Benjamim

A padaria Benjamin foi inaugurada há pouco meses e é das mais agradáveis. A bem da verdade, conheço bem os donos e posso dizer que os vejo quase todo dia, mas nunca falamos dela porque nosso meio não consagra o desvio de foco. Pelo contrário. São Paulo é cidade ativo-linear, sem direito a olhares laterais. O que incomoda sobremodo um cliente como sou – e quanto a isso os funcionários já adivinham meus pensamentos de longe -, é o treinamento ruim de quase todos eles. Parece que a mão de obra brasileira de baixa qualificação, estacionou num ponto quase irrecuperável, sem direito à inflexão. Eles se perdem nos pedidos, ficam nervosos quando se deparam com fregueses que julgam mais exigentes, e precisam recorrer ao gerente para corrigir erros de digitação, chegando a perguntar até três vezes se queremos pagar em modalidade de débito e crédito. Para lhes facilitar a vida e não ter que me repetir – coisa que abomino -, plastifiquei dois cartões de visita e colei-os frente a frente. Nos versos expostos e nus, escrevi : DÉBITO. Mesmo assim, já ocorreu de um rapaz pedir confirmação: quer dizer que é débito, não é? Nessa hora, sinto que a pressão arterial dispara nas têmporas, e temo seriamente pelo estado de meus vasos cerebrais. Entre os dois córtices da escassa massa cinzenta, sinto então que pequenos derrames estão a se produzir e basta que um pequeno trombo se incorpore ao tráfego de sangue para que eu caía duro, fulminado por excruciante dor de cabeça, os ouvidos apitando e os globos oculares a querer saltar das órbitas perplexas. Nesse instante, já me vejo perdendo 2 anos numa fisioterapia inglória, para recuperar movimentos básicos e, outros tantos com uma fonoaudióloga maçante que me dirá que estou melhor em inglês do que em português, o que é óbvio num sequelado. O pior, será escutar dos visitantes que tive sorte, que nasci de novo, e que estou com boa cor. Que estou rosado, como é de praxe dizer em Pernambuco, quando se quer dissuadir o infeliz de que já estampa os livores cadavéricos que lhe sulcarão em breve as tais bochechas espalhadas. Então fecho os olhos, respiro o mais compassadamente que posso, tento regularizar os batimentos cardíacos e aponto o cartão. Sem emitir som, facilito a leitura labial e articulo: sim, é débito. Acho que o caixa da padaria Benjamin tem medo de mim.

Marighella e o edifício Casa Blanca

Ao sair da padaria, já terei passado em revista boa parte de “O Globo”, e praticamente não mais o tocarei até o fim do dia. Mesmo assim, como gosto dos escritos de Arnaldo Bloch e de Cora Rónai, sempre guardo as páginas amarfanhadas e as levo comigo para o escritório. Na lixeira da esquina da alameda Lorena, jogo fora o primeiro caderno e fico imaginando como um sujeito pode ser tão óbvio e viver de prosa tão escandalosamente diarreica como o imortal Merval Pereira. Feita essa caminhada de 2 minutos, até a altura de onde mataram o baiano Carlos Marighella, na noite de 4 de novembro de 1969, estaco porque é hora de pensar no táxi. Em táxi de verdade, com direito a motorista de cabelos brancos e pançudo. Não esses suburbanos de Uber que são escravos de aplicativos, e tentam disfarçar o despreparo com conversas anódinas, tão insinceras quanto o bom dia das aeromoças dos voos de carreira. Enquanto ele não aparece, revejo o lugar fatídico e rememoro tudo o que ouvi desde que cheguei a São Paulo: “Deveriam mudar o nome da rua e batizá-la em homenagem a ele, um guerreiro na acepção da palavra”. De outros tantos, ouvi: “Era guerra total. Fizeram bem em abatê-lo. Parte da cidade comemorou muito naquela noite a morte daquele celerado. Os negócios iam bem e só tendiam a melhorar. Era um terrorista perigoso”. Aboletado no carro, desço a rua em silêncio, mas tento ocasionalmente apressar o motorista: “Vamos lá, chefe, deixe as gentilezas para depois, não ceda passagem, não é hora de distribuir simpatia. Tenho que estar no escritório 5 minutos antes as 8, entendeu?”. Passando diante do edifício Casa Blanca, onde morei nos anos 1990, rememoro aquela mulher de sobrenome tcheco que tinha uma veia azulada visível no lindo seio esquerdo. Era engraçado que ia me visitar; conversávamos uma infinidade e eu a levava até o elevador. Então, já na despedida, ela se pendurava em meu pescoço. Então, voltávamos para a sala e só muito tempo depois, ela ia embora. Eu pensava: da próxima vez, simplificaremos o rito. Mas a verdade é que tudo se repetiu mês após mês, ano após ano. Rio então pela primeira e última vez na parte da manhã. Mas o medo de nunca mais viver isso me faz engolir em seco.

Da Honduras à rua México

Geralmente o relógio marca 07:50 hs quando embicamos à direita na rua Honduras, ladeando o muro extenso do Club Athletico Paulistano. Na faixa de pedestres e de ciclistas da esquerda, sempre haverá uma alma solitária a correr a passos curtos, lavada de suor. Queria entender a razão pela qual tenho tanto desprezo por esse pessoal quando, na verdade, deveria invejar-lhes a silhueta e o luxo de poder começar o dia entregues a folguedos tão mundanos. Faltando 5 minutos para as 8, atravessamos a avenida Brasil, com a catedral logo à direita, e suas bizarras torres bizantinas. Na esquina das ruas México com Costa Rica, assoma a mansão de Paulo Maluf. Temporariamente privada de seu califa, que passa temporada no Planalto Central, quase nunca tem movimento, mas parece respirar certa normalidade de rotinas, a tirar pelas cortinas corridas e pelo jardim esmerado. R$12,00 mais pobre, salto mais à frente, próximo à casa da Manchete, na rua Groenlândia, local onde Juscelino dormiu a última noite, sonhou com Lúcia Pedroso e, indo a seu encontro, morreu na via Dutra, em Guaratinguetá. Enfim, chego ao escritório onde, às 8 em ponto, cumprimento Ivete, a copeira do Araripe, que me traz um chá verde e já deixou os três jornais sobre a mesa. Só então abro o computador. Enquanto o Dell Vostro 1000 de teclado banguelo aquece, dou uma olhada rápida nas manchetes e vou direto aos colunistas preferidos. A máquina leva um minuto de relógio para me pedir a senha de entrada. E o chá, não menos de 3 minutos até que esfrie e que eu possa dar o primeiro gole. A essa altura, meu dia terá começado há quase três horas. O horário ainda é um pouco inóspito para os jovens com quem trabalho e os primeiros só começam a despontar depois das 9 horas, o que me dá uma margem de tempo para que responda o que houver de mais urgente, e para estar pronto para recebê-los, e ouvir o que me dizem do mundo deles, que cada vez é menos o meu. Mas quem disse que eu queria que fosse? Temo, porém, que não seja uma questão de opção.