A ärvore da Vida - Gustav Klimt - Recorte

A ärvore da Vida – Gustav Klimt – Recorte

Teresa Sales

Voltei para o Recife em 2006. Um desejo que foi tomando corpo desde a minha aposentadoria da Unicamp. Decisão tomada, casa vendida, filhos encaminhados, eis que um velho amor me reencontra pelas ondas da internet. Por artes da constelação de aquário, ele tomara essa mesma decisão antes de mim.

A expectativa do reencontro foi antecedida de uma intensa correspondência e um prelúdio ainda em São Paulo. Quando cheguei ao Recife, ele viajava. Escrevi à época:

“Ela se vestiu de sereia e foi até a varanda do apartamento. Viu que a lua ainda estava no céu, embora envolta em núvens. Estava minguante, mas, mesmo assim, minguante e envolta em núvens, se refletia no mar imenso. Um carro ou outro interrompia o barulho das ondas do mar. Por isso preferiu deixar todos esses sons de fora e se concentrou no sax alto, no sax tenor, no piano e na bateria que acompanhavam Charles Mingus nas suas raízes do blue com seu baixo inconfundível.

Pensou na vida que viveram separados um do outro guardando fragmentos de um encontro fortuito e impossível que os uniu em uma espécie de casamento virtual celebrado em muitos olhares apaixonados, encontros clandestinos, palavras ditas em momentos de lucidez e loucura com a bênção de seus orixás. Ela guardou sempre a certeza de que um novo encontro aconteceria um dia.

Só não sabia da intensidade desse novo encontro e que ele seria a síntese do primeiro e de tudo o que os dois guardaram cuidadosamente em suas vidas e seus amores, sabendo por anunciações de anjos e arcanjos que um dia viriam a realizar essa síntese em um ente poderoso.

Foi dormir quando a lua já atingira o mais alto do céu, já quase não existiam carros na avenida e o barulho das ondas era acompanhado por uma balada dolente no sax de Gerry Mulligan e Stan Gertz.”

Ele não era de muito escrever. Expressava seu amor por palavras ditas, músicas tocadas no violão. Mandou de volta um poema de Cora Coralina. Respondi: “Um dia ainda escrevo algo tão ou mais bonito para você. É só você continuar ao meu lado, dentro de mim, me tocando e me possuindo de um jeito que ninguém fez até agora e nem fará nunca. Só a tua claridade, sol sertanejo, para fazer desabrochar em mim uma paixão que quer a beleza, a arte, a natureza, o universo. Somente você, meu amor.”

Vou contar como foi a nossa noite recifense na sua chegada. Era verão. Jantamos em casa ouvindo jazz e tomando um Bordeaux tinto trazido de Paris. Queríamos noite escura sem luzes elétricas e somente estrelas no céu. Em vez, saímos no seu carro de capota arriada e janelas abertas à brisa recifense. Temeridade, sabíamos.

Fomos percorrer meus lugares, seus lugares. Casa Forte e Poço da Panela quase desertos àquela hora da noite. A praça de Burle Max guardando seus mistérios. Saímos do carro e caminhamos por toda a praça de mãos dadas e aos beijos. Fomos depois em direção a Parnamirim, Av. Rui Barbosa,  seguindo, no mesmo rumo do rio Capibaribe, caminho do mar. Passamos pela praça da Jaqueira, onde o rio espiou, menino, João Cabral de Melo Neto.

Academia Pernambucana de Letras hoje, no meu tempo de colégio uma casa onde pastavam vacas no terreno abandonado. Ponte D’Uchoa, em frente ao Colégio das Damas. O Museu do Estado, os casarões que se conservam à sombra de muitas árvores não derrubadas, até chegar à Praça do Entroncamento. O Canal do Derby, reproduzindo a alta e a baixa das marés. A Avenida Agamenon Magalhães não existia no seu tempo e no meu tempo, antes da emigração de um e de outra para São Paulo. Tentamos, com seu senso apurado de espaço, reconstituir o entorno sem a grande avenida que hoje norteia a cidade e abriu outro caminho para a vizinha Olinda. Impossível.

Então tomamos a direção da Ilha de Santo Antônio pela rua Fernandes Vieira. Em vez de seguir pela Oliveira Lima, dobramos à esquerda, na altura da Igreja da Soledade, para passar em frente à antiga FAFIPE das muitas assembleias estudantis em 1968. E seguimos pela rua do Príncipe, passando em frente à Universidade Católica. Como era muito tarde da noite, a rua do Hospício já tinha acalmado a sua balbúrdia de hoje em dia. O prédio da Faculdade de Engenharia permanece, sem mais vestígios das antigas lutas estudantis.

A ponte Duarte Coelho não é a mais bonita do Recife. E eu sequer sei dizer por que, desde sempre, é a que mais gosto. Tenho uma especial relação afetiva com essa ponte. Por ela passamos, depois de algumas voltas pelo Bairro da Boa Vista. E fomos em direção à Praça Joaquim Nabuco, onde não existe mais o Cinema Moderno, para chegar à Ponte Velha, rua Velha, antigo Hospital Pedro II, Cais José Mariano, rua da Aurora. Uma única cena que poderia ser perigosa, mas não passou de burlesca. Passávamos em frente à Antiga Casa de Detenção, hoje Casa da Cultura. Travestis no outro lado da rua se ofereciam. Ficaram atônitos ao verem um carro àquela hora com janelas e capô abertos. Um deles mostrou a bunda, o que nos fez gargalhar, tanto quanto ele.

Os primeiros clarões do sol nasciam do mar quando voltamos da nossa noite recifense cheia de brisa.