Elimar Pinheiro do Nascimento

Quando tudo parece sem saída sempre se pode cantar. Por essa razão escrevo.

Caio Fernando Abreu

 

O discurso de Jair Bolsonaro na posse do Palácio do Planalto foi marcado, sobretudo, pelo messianismo (“As eleições deram voz a quem não era ouvido. E a voz das ruas e das urnas foi muito clara”) e pelo conservadorismo retardado (“Não podemos deixar que ideologias nefastas venham dividir os brasileiros”). Estranho, sempre pensei que todo país democrático fosse plural. Há também um incontestável tom liberal (tirar a desconfiança e o peso do governo sobre quem trabalha e quem produz”).

Mas o tom populista – governar para os pobres – esteve ausente. Felizmente. Presidente eleito é de todos os brasileiros, ricos e pobres, e deve facilitar aos ricos, enquanto empresários, produzirem emprego, renda e divisas; desestimular os rentistas, aumentando os seus impostos; e lutar para cumprir os objetivos constitucionais, entre os quais se encontram: extinguir a pobreza e reduzir a desigualdade, preferencialmente por meio de políticas de inserção produtiva.

Outro ponto positivo é que o Presidente eleito não deixou de reafirmar seu compromisso com a democracia: “Respeitando os princípios do Estado democrático, guiados pela nossa Constituição e com Deus no coração”.

O novo presidente do Brasil discursou duas vezes no dia primeiro de janeiro, como de praxe: primeiro, no Congresso, e depois, no Palácio do Planalto. Nesta ocasião, já com a faixa presidencial e antecedido por sua mulher que, rompendo o protocolo, falou, e em linguagem de libras. Foi o fato novo mais importante de uma cerimônia marcada por incongruências e chatice. Enquanto o Presidente falava para um Poder Legislativo mal representado pela ausência de parlamentares, e inócuo, pois não tomaram posse ainda os novos legisladores com os quais o Presidente irá governar, funcionários circulavam e conversavam nas suas costas, e da plateia uns energúmenos gritavam ninguém sabe o que. Definitivamente, não há como ter ritos de imponência em país tropical. Espanta-me como tivemos o imperador mais longevo do século XIX.

O discurso do Palácio do Planalto é considerado o mais importante, porque em tal momento o Presidente fala para o povo que se encontra na Praça dos Três Poderes, mantido na devida distância, e enquadrado por um forte aparato de segurança, como jamais se viu neste país. Os jornalistas que o digam, a maioria obrigada a chegar com mais de 7 horas de antecedência.

O discurso nada teve a ver com aqueles, célebres, de Fidel Castro, que demoravam horas. Ou mesmo os de Samora Machel, em Moçambique. O discurso presidencial teve 824 palavras, e as mais citadas foram “brasileiros” (nove vezes), “Brasil” (sete) e “Deus” (seis). Aliás, este é o Estado laico que mais cita Deus em todo o planeta. Desde a Constituição até os tribunais, nos discursos das mais diversas autoridades, de qualquer naipe ideológico, Deus ou deus, para alguns, está sempre presente. Claro que isso não representa os 10% de ateus e agnósticos, em movimento de ascensão, do País.

A ideia de uma grande pátria, “o Brasil de nossos sonhos”, “fazer o Brasil ocupar o lugar que ele merece no mundo”, uma herança militar, está presente desde o primeiro parágrafo. Reafirmado, logo em seguida, na promessa de tornar o nosso País “uma das maiores nações do Planeta”.

Chama atenção, também, as menções diretas ou indiretas à necessidade de mudança ou transformação do país (sete menções). E o Presidente se compromete “…com esse desejo de mudança”, que será possível “…se trabalharmos juntos…”. Afinal, são transformações que o “país precisa”.[1]E para isso, segundo ele, temos força de trabalho e recursos naturais. E a razão e o início da mudança devem-se ao fato de que o “povo começou a se libertar do socialismo, se libertar da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”. Frase no mínimo estranha. O socialismo evidentemente é um fantasma do século XX, pois os últimos países socialistas, Cuba inclusive, praticamente já desapareceram enquanto tais. O gigantismo estatal deve-se em parte aos militares, que agora retornam ao poder pelas urnas – quem poderia imaginar algo semelhante há vinte anos? A inversão de valores, imagino, deve estar relacionada à má interpretação de que os humanos são iguais perante a lei, independentemente de suas opções. Contudo, para alguns da base presidencial, mulheres, negros e gays não podem ser considerados como iguais, pelo simples fato de que não o são (a autoverdade). Afinal, são mulheres, negros e gays. A referência ao politicamente correto deve-se ao fato de que a cultura brasileira começou a ampliar sua adesão ao respeito às diferenças, inclusive rejeitando piadas com estes supracitados atores de forma negativa e pejorativa? Ao que se poderiam agregar as loiras, os portugueses, os nordestinos – aliás, ausentes do governo formado por personalidades advindas basicamente de seis dos 27 estados da federação: o RS, PR, SP, RJ, MG e MS.

Os sinais de mudança já estão se efetivando, segundo o Presidente, por meio da “campanha mais barata da história”; a constituição de um “governo sem conchavos ou acertos políticos”, “um time de ministros técnicos”. Que não deixa de ser verdade. E se concretizará por meio do restabelecimento dos “padrões éticos e morais” e a eliminação da “corrupção, os privilégios e as vantagens”. O que é duvidoso. Outros já tentaram, sem sucesso. Entretanto, não custa tentar. Veremos.

Afirma, no mesmo sentido, o Presidente que “Os favores politizados, partidarizados, devem ficar no passado”. O tom moralista, da velha UDN, que muito agradava aos militares nos anos 1950,  é nítido. Não se pode deixar de lembrar Jânio Quadros, com sua famosa vassoura. Ou o mais recente, cognominado de o “caçador de marajás”.

O Presidente, de forma um pouco messiânica, sabe “aonde queremos chegar”, para alcançar o “Brasil do sonho dos brasileiros”. E sabe também o seu caminho, para isso basta “implementar as reformas necessárias”, que nem durante a campanha eleitoral, nem agora, são esclarecidas, e mesmo aqui, citadas. O noticiário jornalístico, e alguns dos eminentes do novo governo, falam constantemente nas reformas da Previdência, tributária e do Estado. Mas, no discurso, nada consta. E ainda ninguém sabe em que consistem estas reformas.

Os desafios e prioridades do próprio governo merecem um espaço exíguo. São basicamente três, além de destruir as ideologias fantasmas, denominadas de socialistas, em país onde a socialdemocracia foi o traço marcante, aliado a políticas socioliberais.

No campo da Segurança Pública, que tem muito destaque, será preciso “acabar com a ideologia que defende bandidos e criminaliza policiais”. Que poderá se traduzir na liberdade de matar, a ser acordada aos policiais. Afinal, como dizem os setores mais conservadores do país (parece que a maioria): bandido bom é bandido morto. De toda forma, a Segurança Pública não deixa de ser uma grande demanda da sociedade, que se traduz em aumentar a sensação de segurança, e que, se apresentar resultados, será um feito do novo governo, que os anteriores não souberam efetivar.

Uma prioridade, sem dúvida correta, é a da educação e, particularmente, “a educação básica, que é a que realmente transforma o presente e faz o futuro de nossos filhos”. Neste sentido, promete retomar a prioridade que FHC havia estabelecido e Lula reverteu. Jair Bolsonaro, neste sentido, tem uma sintonia clara, no discurso, com as mudanças mundiais.  Afinal, os países desenvolvidos têm apenas duas coisas em comum, que não são população volumosa, mercado amplo, acesso ao mar ou detenção de fartos recursos naturais, mas alto grau de escolaridade da população e instituições seguras e confiáveis.

A terceira prioridade é a retomada do crescimento econômico, superando “os efeitos da crise econômica”, para poder criar emprego, uma das principais demandas da sociedade no momento. Para isso, além de desburocratizar o Estado, será necessário “retirar o viés ideológico de nossas relações internacionais”. Que alguns já temem ser a grande armadilha que o governo estaria armando contra si mesmo. Os governos adoram preparar caminhos de autodestruição. Trocar a China pelos Estados Unidos ou os países árabes por Israel são movimentos kamikazes.

Não houve menção às chamadas “heranças malditas” de governos anteriores, salvo no plano ideológico. Herança maldita, no caso, a do FHC, que alimentou os governos petistas à exaustão.

Não se pode deixar de sinalizar que o discurso presidencial denota a blindagem de sua proposta governamental, constituída pelas três instituições de maior confiança do povo brasileiro: as forças armadas, as igrejas e a família. Rompê-las, para a oposição, não será fácil.

[1]O p minúsculo para se referir ao Brasil não é do autor, mas do discurso presidencial.