Sérgio C. Buarque

Ghiggia parte para fazer gol do título uruguaio em 1950 (Foto: Reprodução / SporTV)

Ghiggia parte para fazer gol do título uruguaio em 1950 (Foto: Reprodução / SporTV)

Chute forte à direita. Bola rola rasteira pelo campo buscando o canto esquerdo do travessão. O goleiro pula esquio e certo, mas um pouco tarde e a bola avança a alta velocidade. Cem mil pessoas fazem um silêncio tão atordoante que permite ouvir o silvo do deslocamento da bola no vento e o ruído do seu arranhão no gramado. Excetuando o goleiro, que se jogou com fúria e desespero na espera da bola, os 22 jogadores param e observam, naqueles segundos de incerteza e angústia, o movimento em diagonal do objeto arredondado de couro.

A poucos centímetros da barra, a bola encontra uma pequena touceira de gramas irregulares e sofre um leve desvio para a direita, se afastando por milímetros do gol. Termina sua trajetória batendo no cantinho da trave que a empurra para o lado esquerdo no pequeno espaço entre a estaca de madeira e os dedos longos e finos do goleiro. A ponta do dedo polegar esquerdo toca a parte de baixo da bola em rápida velocidade, provocando uma surpreendente subida quase na vertical e apenas um pouco para trás, no vazio que se desenha entre as linhas da trave.

Ninguém mais se move no estádio lotado, nem a torcida, nem os jogadores, sequer o ponta-direita que chutou a bola com fúria de artilheiro para alterar o resultado do jogo. Até o goleiro, já caído, movimenta apenas a cabeça para o alto, acompanhando a trajetória assustadora da bola que parece ter vontade própria aproveitando os pequenos toques em diferentes partes da sua circunferência. O tempo parou. Nada se move, ninguém arrisca um som ou movimento com medo que pudesse precipitar a entrada da bola, com vontade que tudo terminasse naquele momento, a bola no ar parada e o apito final do juiz.

Mas a bola continua subindo num movimento elíptico – para cima e também para trás – como se procurasse penetrar na barra por cima do goleiro caído e incapacitado. Não se pode mais fazer nada. O resultado já está definido e tudo agora depende da curva da bola que, por sua vez, decorre da combinação da velocidade com o ponto em que o dedo do goleiro conseguiu projetar o seu movimento.

Num nível baixo da arquibancada, um jovem não conteve mais a agonia e deu um grito – não! – sufocado e estridente, acompanhado de um sopro que atravessou o campo e, chegando à bola, provocou um levíssimo impulso para o alto. Retardando o movimento para trás, a bola bateu no travessão superior, subiu mais um pouco. Como indecisa, ela ainda flutuou no ar um interminável milésimo de segundo e, finalmente, deslizou pela rede no lado de cima e por fora.

Como ao sinal de um maestro, a multidão saltou num grito único de alívio e alegria vendo a rede balançar com a bola escorrendo por fora do gol. Poucos minutos depois, acabava o jogo com a vitória e o desfile da seleção com a taça de campeão. Barbosa chorava no canto da trave enquanto a multidão gritava seu nome e glorificava a mais importante defesa da sua vida e da história do futebol. O goleiro levantou, recolheu um punhado da grama que o ajudou a proteger o gol e o projetou para a glória. Levantou os braços expondo aquele mato verde como ostentasse a sua taça de campeão.

Parte da multidão entrou no campo correndo enlouquecida pelo resultado e pela liberação da agonia dos últimos segundos de jogo. A massa carregou o goleiro nos braços, homenageando seu salto brilhante e seus dedos iluminados. Ninguém notava o jovem do decisivo grito cujo sopro deu o impulso final para afastar a bola. Ele chorava no canto, sozinho mas convencido que tinha protegido a seleção e salvo o Brasil de um desastre.