Fernando Dourado

Labrador.

Quem já teve um labrador em casa ou mesmo no apartamento, sabe da doçura dessa raça de índole hiperativa, incansável na hora de correr atrás de uma bolinha para devolvê-la ao arremessador. Como lhe ignorar, ademais, a euforia contagiante quando o dono pega a coleira na gaveta, anunciando um passeio para alongar os músculos em que, afoito, ele dispersará bandos de pássaros e se aplicará em farejar pistas insondáveis? Nessas ocasiões, é raro um passante que não pare e lhes faça um afago no focinho, permeado de muxoxos e exortações carinhosas, o que os torna mais gregários e mimados do que a natureza já os fez. Além de todas essas características, raramente são agressivos, o que leva muitos a se tornar cães-guia confiáveis, e a doçura do olhar confirma o milenar conluio que une os humanos aos caninos de forma geral, em que graças às suas habilidades e empatia, estes conseguiram escapar da panela para pontificar, quase sempre agradecidos, ao lado de uma poltrona na sala de estar.

Não foi por acaso que, ao levar uma ex-namorada ao cemitério de cachorros de Asnières-sur-Seine, a uma hora de Paris, constatamos que muitos dos cães homenageados ali eram justamente labradores. Se ao São Bernardo cabia feitos épicos de resgates em montanhas geladas, onde levaram um providencial barrilete de vinho a esquiadores perdidos que pereciam à beira da hipotermia, aos labradores vinham os preitos de reconhecimento pela companhia incondicional que fizeram aos donos. “Astor, meu filho eterno, diante de cuja grandeza e altruísmo percebi o quão vis eram os humanos que me cercavam, receba a eterna gratidão de Dominique, sua maman“. Divertidos, alguns lhes atribuem dons curativos e no Brasil reedita-se hoje a conduta dos europeus dos anos 1960, que, a nossos olhos, davam aos bichos valor extremado, quando não caricatural, fato então atribuído à deterioração das relações humanas nesta parte do mundo, um fenômeno cujo mérito deixo aos mais doutos o privilégio de explicar.

Seja como for, mal cheguei à Europa no dia de Natal deste 2018, e eis que encontrei uma comoção generalizada. Por trás dela, um labrador. Tudo começou no dia 18 de dezembro na Gran Via, de Barcelona. Ora, só este fato já teria me chamado a atenção pois fui hóspede contumaz do endereço durante uma boa década e, por coincidência, sempre prestei atenção a um pastor alemão que figurava ao lado de um mendigo na frente da loja Zara, na esquina com o Passeig de Gràcia. Com a majestade da raça, ele parecia ter seu dono em enorme conta, fato que me comovia deveras na medida em que o dito cujo era, para efeitos do julgamento dos passantes, um perdedor nato, um rebotalho a quem só coubera o recurso de explorar o garbo do acompanhante impávido. Até eu costumava cumprimentar a dupla quando por ali transitava, um costume que associei ao agradecimento por uma dádiva. Pois se estava ali, era sinal de que os negócios iam bem, logo mereciam um óbulo. E jogava uma moeda na cuia do mendigo.

Mas voltemos aos fatos. Naquele dia fatídico, há menos de duas semanas, um policial pediu a determinado morador de rua que prendesse a cadela pela coleira, conforme manda a lei. Ao fazê-lo, diz o agente que foi atacado pelo animal rebelde – que talvez tomasse para si as reservas do dono contra os homens fardados -, o que o levou a matá-lo com um tiro de pistola. Ela, uma cadela labrador chamada “Sota”, agonizou no passeio público, o que levou o pedinte a alardear aos passantes que se tratara de uma execução torpe, sumária, injustificada e covarde. A despeito de ter passagens pela polícia, o testemunho do proprietário de “Sota” vem sendo levado a sério pelos movimentos de defesa dos direitos dos animais e já chegou ao gabinete da prefeita Ada Colau. Daí os inúmeros protestos que espocaram na Espanha na semana natalina. A observar que todos ecoam uma alegada falta de empatia animal por parte da autoridade constituída, o que por si só abre novos caminhos no elenco de pré-requisitos dos policiais.

Pergunto-me e já me apresso em responder: quem sou eu para opinar sobre semelhante mérito? Ninguém, absolutamente ninguém. Atacado por cachorros três vezes na vida, embora jamais assaltado por um semelhante humano (o que faz de mim uma aberração estatística, admito), não lhes tenho nem simpatia nem antipatia. Poderia viver sem cachorros ou gatos o resto de meus dias, e não me fariam qualquer falta. Admiro, contudo, que possam ser companhia para tantos dos passantes que vejo da janela onde quer que esteja. Meu amigo Robertinho, que estava longe de ser um homem de posses, chegou a voltar de uma viagem ao Mato Grosso porque seu pequeno Bóris fora atacado por um cão maior na fazenda onde aconteceria uma grande festa. Confesso que na época achei o gesto extravagante já que ele investira bom dinheiro para estar presente na boda de seu colega de trabalho. Mas também admito que hoje o entendo um pouco mais do que há 15 anos, quando se deu o relatado.

Seja como for, pelo menos por alguns dias, “Sota” esteve para a Catalunha como os Coletes Amarelos estiveram para a França. O tempora, o mores.