Frederico Toscano

Nas artes, o mar fascinou fortemente os músicos e pintores impressionistas, como os homônimos Claude Debussy e Claude Monet – acima está sua obra “Bateaux devant les falaises de Pourville”, pintada em 1882.

As peças de Claude Debussy(1862-1918), representante principal do movimento musical impressionista surgido na França, provocaram opiniões bem conflitantes e ferozes polêmicas, mas no início do século XX, ele se firmou como figura de destaque no novo movimento musical. É considerado um renovador da música, tornando-se o precursor da modernidade. A música impressionista – vale a pena ressaltar – é caracterizada por sugestão e atmosferas melódicas sensuais e etéreas, que buscam retratar imagens, especialmente paisagens naturais.

Superando sua formação simples e a falta de tradição musical da família, Debussy entrou no prestigioso Conservatório de Paris aos 12 anos. Aspirações precoces por uma careira como pianista de concerto não se realizaram, contudo, e suas tendências inconformadas não agradaram. Embora tendo recebido o Grand Prixde Roma de composição de 1884, suas primeiras obras obtiveram pouco sucesso. Em grande parte autodidata, viajou pela Europa absorvendo as culturas orientais recém-reveladas aos ocidentais e entrando em contato com artistas importantes da época. A partir de 1892, sua música começou a atrair mais atenção, embora apenas uma década depois a relevância de suas concepções revolucionárias viesse a ser plenamente reconhecida.

Debussy começou a compor O Mar, três esboços sinfônicos para orquestra(La mer, trois esquisses symphoniques pour orchestre, em francês) – ou simplesmente La Mer, como é mais conhecida a obra – em setembro de 1903, na Borgonha. Continuou a trabalhar nela em Paris, e a concluiu em Eastbourne, Inglaterra, às margens do Canal da Mancha, no dia 5 de março de 1905. Apoiava-se em inúmeras lembranças: “Isso é melhor (…) do que uma realidade cujo encanto geralmente torna-se muito pesado em nosso pensamento”.

A sua estréia se deu nos populares Concertos Lamoureux, em 15 de outubro de 1905, mas foi pouco compreendida por seus conterrâneos naquela ocasião. O comentário mais famoso da época foi escrito por Pierre Lalo, polêmico crítico francês, que escreveu: “Não ouço, não vejo e não sinto o mar”. Na realidade, a obra não é uma composição sobre o mar, mas sim sobre lembranças e sentimentos que evocam o mar, segundo o seu autor.

No plano pessoal, porém, Debussy passava por um momento turbulento: em junho de 1904 abandonou sua esposa Lily, com quem estava casado havia cinco anos, e passou a viver com a cantora Emma Bardac. Em razão disso, Lily tentou suicídio em outubro. Foi um escândalo social. A despeito disso, Debussy e Emma Bardac continuaram juntos. No outono de 1905, nascia a única filha do casal, Claude-Emma, a quem Debussy chamava carinhosamente Chouchou. La Mernão foi bem recebida – nem tampouco as outras da mesma safra – talvez muito em função do escândalo de seu rompimento com Lily e de sua união com Emma Bardac.

La Meré considerada por muitos a obra-prima de Debussy e seu trabalho mais próximo de uma sinfonia, com o qual revolucionou a maneira de compor e dispor dos elementos da orquestra em uma peça. No plano da harmonia, ele também foi revolucionário, já que ao fugir da tonalidade tradicional o compositor criou um novo universo harmônico, empregando modos e escalas antigas e não europeias. A peça não se prende a qualquer estrutura formal e utiliza novas concepções rítmicas para a sua época. Este é o Debussy puramente impressionista, autor de uma música vaga “que se ouve com a cabeça reclinada nas mãos”, de acordo com o grande poeta, cineasta e dramaturgo francês Jean Cocteau (1889-1963).

Desde sempre, Debussy fora um enamorado do mar. Para aquele sonhador “de horizontes quiméricos”, o mar era ao mesmo tempo o símbolo da mãe e uma coquettesedutora: “O mar foi muito bom para mim, ele me mostrou todas as suas vestimentas. Ainda estou completamente aturdido…” (1906). Encontra-se o mar em várias obras de Debussy: nos Nocturnes, na sua ópera Pelléas et Mélisande, nos Préludes. Durante toda a sua vida, o compositor teve saudades do mar, e com La Merele conseguiu, de forma profunda e refinada, descrevê-lo musicalmente: a amplitude infinita, seu atordoante marulhar, o ir e vir das ondas quebrando na praia.

A execução de La Mer, peça mais puramente orquestral de Debussy, leva em torno de 24 minutos, sendo dividida em três movimentos. O primeiro deles segue a lenta progressão da luz, desde o esboço tateante dos primeiros motivos, até a apoteose dos últimos compassos, sob o sol ofuscante do meio-dia. É como se acompanhasse a progressão do sol matinal, dos primeiros raios de luz até o seu zênite:

I. De l’aube à midi sur la mer (Da alvorada ao meio-dia no mar)

A segunda parte de La Merexplora as diversas perspectivas do mar através do jogo de luz sobre a água: a batida das ondas, as superfícies difusas, o espocar da espuma. A dispersão sonora chega ao ápice; a orquestra inunda todos os lados ao mesmo tempo: o fluxo das flautas e dos clarinetes, o chamado velado das trompas, a frase perturbadora do corne inglês, retomada adiante pelos calorosos violoncelos, o frêmito das cordas, o hábil emprego das percussões finas (címbalos, triângulo, glockenspiel). Aquele mundo fluido e constantemente em movimento, aquela orquestra inatingível transportam o ouvinte para um sentimento de tempo musical indeterminado:

II. Jeux de vagues (Jogo das ondas)

O último movimento retorna certos elementos da primeira seção, cujos desenvolvimentos levam a uma brilhante coda. Descreve-se drasticamente a interação do vento e da água:

III. Dialogue du vent et de la mer (Diálogo do vento com o mar)

Em La Mer, sente-se um fluxo ininterrupto, parecendo construir-se na audição. As obras de Debussy se tornaram pinturas sonoras, espalhando cores nas quais estados de espírito e atmosfera são “pintados” com sons. Nos próprios títulos de suas peças é possível perceber que o que ele tentava representar não era tangível, que surgia e desaparecia, se dissolve em meio a uma iluminação mutante e se dilui: nuvens, reflexos na água, jardim na chuva, luar, jogo das ondas.

Nesse sentido, Debussy foi o primeiro compositor a preocupar-se com uma imagem sonora global da obra musical, agenciando matérias musicais à maneira de um jogo complexo de construções. Finalmente, inscrevendo-se na linhagem de Frédéric Chopin (1810-1849), fez avançar a escrita pianística rumo a uma maior precisão (posta a serviço da expressão) e ampliou a utilização do teclado, preparando assim o caminho das futuras gerações.

Em 1917, Debussy fez sua última apresentação em público. Após uma operação sem sucesso, ele praticamente não tinha mais forças para compor. “A música me abandonou por completo”, escreveu o mestre francês, pouco antes de morrer. Partiu meses antes do término da Primeira Guerra, já um compositor consagrado – sem jamais imaginar que, décadas depois, o seu rosto estaria estampado na cédula de 20 francos do seu país natal.