Sérgio C. Buarque

O ex-Papa Bento XVI e agora peregrino Joseph Ratzinger é um filósofo, um pensador culto e brilhante como demonstram os discursos, os pronunciamentos e as encíclicas publicadas, mesmo quando despertaram protestos e controvérsias. Este perfil intelectual não deve ter ajudado o Papa na sua tarefa de administração do Vaticano, de gestão das disputas políticas e dos desvios éticos no meio da Igreja Católica, e do posicionamento da Igreja no mundo em intensas mudanças culturais e com a multiplicidade de tendências religiosas. No final da vida e no seu curto papado, Ratzinger pode entrar na história não apenas pela inusitada renúncia, mas, principalmente, pelas suas opiniões, como cardeal e como Papa, que expressam uma intensa inquietação intelectual e dúvidas existenciais que pareciam leva-lo ao agnosticismo.

“Onde está Deus?” Em vários momentos, o ex-Papa formulou esta pergunta desesperada. Na sua visita ao campo de concentração de Auschwitz, em maio de 2006, ele meditou sobre a violência e o sofrimento humano e manifestou sua angústia dizendo: “Num lugar como este, as palavras falham. No fim, só pode haver um terrível silêncio, um silêncio que é um sentido grito dirigido a Deus: Por quê, Senhor, permaneceste em silêncio? Com pudeste tolerar isto? Onde estava Deus nesses dias? Porque esteve ele silencioso? Como pôde ele permitir esta matança sem fim, este triunfo do demónio?” Este doloroso desalento diante da ausência de Deus se manifesta também na sua despedida da mais alta hierarquia da Igreja católica, quando falou que “o Senhor parecia dormir” no momento em que as águas estavam agitadas e o vento contrário na Igreja. Nas suas rezas e meditações, o filósofo deve ter invocado a ajuda divina para enfrentar estas águas turvas e agitadas, pode ter se sentido abandonado e deve ter se perguntado “Por que me abandonas?” Como pode Deus abandonar aquele que seria, na sua visão religiosa, o seu mais alto representante na terra? Será que, em nenhum momento, teria passado pela sua mente inquieta e culta que Deus, na verdade, não existe, uma vez que, existindo, não o deixaria incapacitado para lidar com os grandes desafios da Igreja?

A propagação das denúncias de pedofilia no seio da Igreja, praticadas por religiosos católicos, pode ter inspirado o Papa a falar dos desvios e falhas da Igreja em mais de um pronunciamento. Mas parece mais evidente na sua referência a outro filósofo alemão – Friedriech Nietzsche – incluída na sua Encíclica “Deus caritas est”. “Segundo Friedrich Nietzsche”, dizia a Encíclica, “o cristianismo teria dado veneno a beber ao eros, que, embora não tivesse morrido, daí teria recebido o impulso para degenerar em vício. Este filósofo alemão exprimia assim uma sensação muito generalizada: com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não nos torna porventura amarga a coisa mais bela da vida? Porventura não assinala ela proibições precisamente onde a alegria, preparada para nós pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir algo do Divino?” Embora conteste a visão de Nietzsche, estas perguntas que o Papa se faz na Encíclica evidenciam uma preocupação real com um fenômeno que já se manifestava fortemente no papado de João Paulo II e que seria a degeneração em vício do veneno que o cristianismo teria dado a Eros.

Entre os mais fortes venenos destaca-se o celibato que o ex-papa Bento XVI parece, paradoxalmente, rejeitar (ainda na Encíclica) quando diz que “se o homem aspira a ser somente espírito e quer rejeitar a carne como uma herança apenas animalesca, então espírito e corpo perdem a sua dignidade. E se ele, por outro lado, renega o espírito e consequentemente considera a matéria, o corpo, como realidade exclusiva, perde igualmente a sua grandeza”.

As “patologias na religião” foram citadas por Joseph Ratzinger bem antes, ainda como Cardeal de Munique, em um debate sobre ciência e religião com Jürgen Habermas, um dos maiores filósofos alemães contemporâneos. Para o Cardeal, a Igreja constituía uma referência ética que fiscaliza a produção científica e a utilização do conhecimento. Mas ele lembrava que existem “… patologias na religião que são extremamente perigosas e que tornam necessário encarar a luz divina da razão como um, por assim dizer, órgão de controle, a partir do qual a religião sempre deve se deixar purificar e organizar novamente”. A “luz da razão”, dizia o cardeal, deve controlar a religião (e suas perigosas patologias), da mesma forma que a ética (não exatamente a religião, mas a ética no sentido mais geral) deve orientar a atividade científica e, principalmente, a utilização das descobertas e inovações tecnológicas.