Clemente Rosas

Ainda sob o trauma da decisão final do STF sobre o cabimento dos “embargos infringentes” na ação penal do “mensalão”, volto a atormentar-me com o enigma: o que faz um homem jogar fora a chance de, com um simples gesto, passar à galeria dos heróis do seu país?

Raramente a História oferece a alguém essa oportunidade.  Aconteceu com de Gaulle, com Churchill, com o rei Juan Carlos e o primeiro ministro Adolfo Suarez, e até com o beberrão Boris Yeltsin (já abordei o tema antes: “A Hora e a Vez do STF”, JC, 31.10.2010).  E eles souberam bem aproveitá-la.  O nosso ministro Celso de Mello não o soube.  Ou pior: não o quis. E destruiu a esperança de uma nação que luta por fazer jus ao nome que ostenta: República Federativa do Brasil.

É difícil estimar o mal que sua decisão causou a todos nós, cidadãos deste bisonho país, cujas leis penais – tem-se dito recorrentemente – só valem para pobres e desfavorecidos.  Agora esse ignominioso epíteto está, mais do que nunca, colado ao nosso rosto.  Agora o descrédito, o desprezo, a indignação popular vão chegar também ao terceiro poder da República, fechando o circuito da desolação.  Agora, enfim, aqueles jovens que, equivocadamente, protestam destruindo os símbolos do poder e do dinheiro, terão mais combustível para o seu insano vandalismo.  E será mais penoso o simples uso da razão para contê-los.

Minha formação acadêmica e meus quase nove anos à frente da Procuradoria da Sudene me permitem comentar o feito também pelo ângulo jurídico, o que farei resumidamente, fugindo à regra dos caudalosos arrazoados dos meus colegas de profissão.  Duas interpretações do caso dividiram ao meio o STF: para uns, determinada lei derrogou o cabimento dos malsinados embargos infringentes; para outros, estes teriam sido “recepcionados” por aquela.  Há que se recorrer, assim, a outros critérios interpretativos complementares, como o sistêmico e o teleológico.  Pelo primeiro, a tese da “recepção” subverteria a hierarquia dos tribunais: como o STJ não admite os tais embargos, embora julgue governadores, teria mais poder que o STF; além disso, o princípio da isonomia de tratamento entre autoridades da Federação estaria quebrado.  Pelo segundo, assumindo-se que o Direito existe para realizar a Justiça – seu supremo valor – a admissão dos embargos frustraria esse objetivo: a protelação da decisão final levará, na prática, à não punição dos culpados.

É, pois, com o coração pesado que anuncio: é tempo de dar adeus às ilusões.  Já é pacífico que o novo julgamento só se dará em 2014.  Sofrerá todas as protelações possíveis, pois essa é a sua finalidade.  E há mais uma chicana que ninguém ainda referiu: havendo nova sentença, ela será passível de novos embargos declaratórios, como não?  Os advogados dos réus vão imaginar nela obscuridades, contradições ou omissões, que retardarão ainda mais seu trânsito em julgado.  As penas prescreverão.  Nenhum dos notórios delinquentes irá para a cadeia.

Volto à minha indagação.  Afastada a hipótese da prevaricação – pois o ministro é um homem honrado – resta a da arrogância.  Esse desprezo pelo clamor das ruas, essa ideia de que alguém pensa e decide sem o concurso de nenhuma opinião circunstante já foram magistralmente espinafrados por Arnaldo Jabor (JC, 17.09.2013): são “falta de humildade, narcisismo esperando iluminação divina”.

O ministro Celso de Mello poderia ser hoje o paladino da Justiça Brasileira, o arauto de um novo tempo para a sua pátria, um autêntico cavaleiro da esperança.  Mas rejeitou o pedestal. Optou pelo entulho.  Dizem que vai aposentar-se e recolher-se à sua cidade natal, nos confins do Estado de São Paulo. Faz muito bem. Lá poderá esconder-se e, com sorte, ser esquecido pelos milhões de compatriotas que decepcionou.