Helga Hoffmann

Tempos atrás, se é que se entreouvia da conversa de algum grupo em reunião internacional o som “bri”, talvez falassem do queijo francês “brie”, que vai bem na baguete. Hoje é mais provável que seja BRI (a Belt & Road Initiative, algo como Iniciativa Cinturão & Estrada), a ideia chinesa de um cinturão de comunicação interligando, através de uma infinidade de projetos de infraestrutura, países na Ásia e na Eurásia ao longo da antiga Rota da Seda.[1]

O Presidente chinês Xi Jinping explicou a ideia quando deu uma palestra na Universidade de Nazarbayev, em Astana, capital do Cazaquistão, em setembro de 2013. Lembrou que a Rota da Seda foi aberta há mais de dois mil e cem anos, na dinastia Han (206 A.C.-220 D.C.), por missões de paz e cooperação enviadas à Ásia Central e contou aos estudantes que Almaty, uma cidade da antiguidade no sul do Cazaquistão, está localizada naquela antiga Rota da Seda, lembrou até que Almaty tem uma avenida com o nome de um músico chinês que ali foi parar nos 1940s. Falou na cooperação mutuamente benéfica como a inspiração que foi passada, de geração em geração, por aqueles caminhos da história.

Xi Jinping lembrou que Shaanxi, a província em que nasceu, está no começo da Rota da Seda: “quase consigo ouvir os sinos dos camelos ecoando nas montanhas e ver fumaça leve subindo do deserto, e isso me dá uma sensação boa”.[2] Mas frisou também alguns pontos básicos mais concretos: não interferência nos assuntos internos de cada país (como princípio geral), cooperação no âmbito da “Shanghai Cooperation Organization” (SCO)[3], cooperação regional ampliada e fortalecimento de laços econômicos, consultas regulares entre os países, melhoria das conexões da infraestrutura de transportes, eliminação de barreiras ao comércio, cooperação para usar moeda local no comércio internacional, e melhoria do entendimento entre os povos. Faltou observar que a antiga Rota da Seda não era uma única estrada do Oriente ao Ocidente, e sim, uma rede de estradas, que historiadores preferem chamar de Rotas da Seda, no plural.

Essa iniciativa de nome estranho, que chamaremos de BRI, é um sucesso de publicidade, dentro e fora da China. Embora lançada na China em 2013, foi aos poucos adquirindo feição concreta. Projeta uma China que comemora a época de intenso intercâmbio da antiga Rota da Seda com esta promessa de cooperação com vizinhos e outros países que ajudará boa parte do mundo moderno a prosperar: um cinturão interligado de ferrovias, portos, usinas de eletricidade e outra infraestrutura que começa por países asiáticos mas pode ir bem mais longe na direção oeste. Aliás, do mesmo modo que a antiga Rota da Seda, não é propriamente uma só via comercial internacional, e sim, uma rede de conexões.

É claro que BRI recebe atenção porque a China tem um potencial de centenas de bilhões de dólares para investir no exterior, que assim se aplicarão em projetos bilaterais de infraestrutura.  Esses projetos são concatenados com as modernas rotas marítimas de comércio internacional, pois desde meados do século XV, fechadas as Rotas da Seda no Império Otomano, a carga vai de navio. A própria natureza do empreendimento não permite dar cifras precisas: em conferência internacional sobre a BRI em Beijing em maio deste ano, o governo chinês informou que, desde 2014, empresas chinesas firmaram contratos relativos à BRI no valor de 279 bilhões de dólares. A expectativa seria de aplicações da ordem de 840 bilhões de dólares nos próximos cinco anos. Além disso, tem sido mencionada a possível participação do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB na sigla inglesa), cujo capital é de 100 bilhões de dólares. Mas a China já avisou que o AIIB é um banco multilateral, com quase 60 membros, com participação de países desenvolvidos da Ásia e da Europa, cujos financiamentos são decididos por sua diretoria, e não em relação à BRI.

A capacidade de financiamento da China causa inveja. Tanto assim que, além de projetos bilaterais de infraestrutura em países em desenvolvimento, já se apresentam assessores financeiros de países desenvolvidos oferecendo expertise em renegociação de dívidas, a advertir que parte dos financiamentos da China a países mais pobres poderão ser a fundo perdido.

Mas não é só a perspectiva de financiamento que explica o interesse. A construção de infraestrutura na China tem sido impressionante e continua se ampliando. Não só estações de metrô eficientes causam espanto faz tempo, mas a rapidez na construção de pontes, a maior rede do mundo em trens de alta velocidade, hidrelétricas de grande porte, as linhas de transmissão de energia de longa distância na tecnologia mais avançada, campeã mundial de capacidade instalada de geração de energia fotovoltaica, sede da maior empresa do mundo geradora de energia eólica no mar.

Desde a reunião do Partido Comunista da China no mês passado, que reelegeu o presidente dos chineses, sinólogos e jornalistas especializados estão procurando identificar ou mesmo adivinhar o que está por trás do “Pensamento de Xi Jinping” que foi inscrito na Constituição do Partido Comunista da China. A busca, no caso, já não é orientada pelo interesse em saber para onde vai a política econômica chinesa e como ela vai afetar diferentes países e a economia mundial.  A preocupação com “O homem mais poderoso do mundo”, resumida no The Economist em editorial de 14 de outubro p.p. com esse título, é que a possível concentração de poderes em uma só pessoa possa ser prenúncio de um governo chinês mais autoritário ou uma ditadura.

Talvez estejam enxergando demais nessa citação nominal na Constituição do Partido Comunista. Os pensamentos de Mao Tsetung e Deng Xiaoping também estão citados nominalmente. O que não impede que um dos sete membros do recém eleito Alto Comitê da direção política (Politburo) do partido, Wang Huning, apontado como mentor intelectual do atual Presidente da China e dos dois anteriores, tenha descrito a Revolução Cultural de Mao como “uma catástrofe política sem precedentes”.[4] Preocupante poderia ser o fato de que Wang Huning, além de ter estudado nos Estados Unidos no fim dos 1980s, é de formação professor de direito, quando uma das vantagens competitivas da governança chinesa nas últimas décadas tem sido a prevalência de engenheiros.

Tem razão o Presidente Xi Jinping, respondendo a uma pergunta em entrevista pouco antes da cúpula dos BRICS em março de 2013: “Como costumo dizer, é preciso muito esforço para conhecer a China, visitar um lugar ou dois não basta. A China tem 9,6 milhões de quilômetros quadrados, 56 grupos étnicos e um total de 1,3 bilhões de pessoas. Assim, ao tentar aprender sobre China, é preciso cuidado para não tirarmos conclusões baseadas em informação parcial.” Não há como discordar.

Aliás, essa entrevista de Xi Jinping está na p. 457 de um livro que qualquer um pode ler: Xi Jinping, The governance of China, publicado por Foreign Languages Press Co. Ltd, Beijing, China. Está disponível na Amazon. É o pensamento de Xi Jiping até 2014. São discursos concretos, nas situações mais variadas, em reuniões internacionais em diferentes países, mas também em eventos chineses específicos em escolas, cooperativas, encontros de estudantes que voltam do exterior. Há também comentários a reportagens, e notas explicativas em reuniões do partido e grupos de estudo. São 515 páginas distribuídas em 18 capítulos, que tratam do socialismo com características chinesas, do “sonho chinês”, reformas, desenvolvimento, leis, cultura, educação, segurança, ecologia, defesa, paz, relações China-Estados Unidos, relações com vários países, governança, relações dos membros do partido comunista com o povo, a luta contra a corrupção (que, aliás, tornou Xi Jinping popular nos últimos anos).

Não vou mentir: não li isso tudo, mas os pedaços que li não são enfadonhos. Conheço “literatura comunista” de outrora, dos 1950s e 1960s, da pregação à UJC daqueles tempos ou das aulas da Escola do Partido junto ao Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, e havia muita proposição teórica sem cunho prático. Tanto assim que ficou a impressão de que foi a atenção à realidade empírica, aos dados e fatos, que levou a que nada sobrasse do meu comunismo juvenil além do sonho de justiça aqui na terra. Assim, me surpreendeu a natureza pragmática dos textos de Xi Jinping, ainda que por vezes sejam citados músicos e poetas. Quem sabe seja o caráter pragmático chinês expresso nos provérbios de que falam os sinólogos e não só na abertura de Den Xiaoping.

Em todo caso, para que escarafunchar ocultos desígnios ou buscar misteriosos mentores para Xi Jinping? Está tudo muito claro em The governance of China. É isso que se supõe esteja inscrito agora na constituição do Partido Comunista da China.

[1] Muitas mercadorias foram transportadas ao longo dessa rota na Antiguidade, mas o nome vem da popularidade da seda chinesa no ocidente, sobretudo Roma.

[2] Xi Jiping, “Working Together to Build the Silk Road Economic Belt”, in The Governance of China Foreign Languages Press Co. Ltd., Beijing, China, 2014. pp. 315-319.

[3] A SCO foi criada em Shanghai em 2001, inicialmente em busca da melhoria da confiança e do entendimento entre a China e membros da antiga URSS. Os membros fundadores são China, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Uzbequistão.  Em junho de 2017, Índia e Paquistão simultaneamente se tornaram membros, e a China ofereceu livre comércio com os países da SCO. Irã e Afeganistão são observadores.  Um dos “corredores econômicos” da BRI, por exemplo, de 2400 km, vai de Kashgar no oeste da China, por extensa rede ferroviária, até o porto paquistanês de Gwadar, cuja infraestrutura foi em boa parte financiada pela China.

[4] “The rise and the rise of Wang Huning”, The Economist, 4 de novembro de 2017.