Sérgio C. Buarque

Não sendo sequer advogado, careço de capacidade técnica para avaliar decisões do Supremo Tribunal Federal que reúne as maiores autoridades jurídicas do Brasil. No entanto, de uma simples leitura da Constituição Federal de 1988, tenho razões para estranhar as conclusões sobre o rito do processo de impeachment da Presidente da República, aprovado por maioria simples no STF. O artigo 86 da constituição, tratando de crimes de responsabilidade do Presidente, diz explicitamente que “admitida a acusação por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade”. Afirmando que, no caso da admissão da acusação pela Câmara de Deputados, o Presidente será submetido a julgamento pelo Senado, a Constituição não deixa aberta qualquer possibilidade desta Casa do Congresso simplesmente arquivar o processo. Além disso, ainda no artigo 86, a Constituição acrescenta que “admitida a acusação contra o Presidente da República”, “o Presidente ficará suspenso de suas funções” por 180 dias (…) “após a instauração do processo no Senado Federal”.

Duvido que exista alguma sutileza jurídica neste artigo que não seja perceptível aos simples mortais, estando tão escondida que apenas os iluminados membros do Supremo Tribunal Federal conseguem descobrir. Em nenhuma passagem, artigo ou parágrafo da Constituição, está dito que o Senado pode deixar de instaurar processo depois de admitida a acusação por dois terços da Câmara de Deputados. E, no entanto, pela resolução do STF o Senado recebeu o poder para, com maioria simples, sustar um processo admitido por dois terços dos deputados, depois de passar por uma Comissão especial¹. O que constitui uma descabida desproporção de poder que, além do mais, difere do que está previsto na Constituição. O Supremo inventou um passo não previsto na Carta Magna entre a admissão pela Câmara e a instauração do processo pelo Senado que passa agora a rediscutir a admissibilidade.

Na verdade, pelo menos no que se refere às responsabilidades das duas casas do Congresso, a Constituição define claramente o rito de impeachment; e mais, explicita um procedimento bastante equilibrado, com a distribuição entre o que admite a acusação (Câmara de Deputados) e aquele que julga (Senado). A Câmara decide por larga maioria se é cabível a abertura de um processo de impeachment mas remete para o Senado a prerrogativa de julgamento final. Que, evidentemente, terá que instaurar o processo e, portanto, levar a votação para o plenário, votação esta que terá que ser decidida também por 2/3 dos senadores. A divisão de papéis assegura um perfeito equilíbrio do processo.

Além destes aspectos do artigo 86, quando trata das responsabilidades da Câmara de Deputados e do Senado, a Constituição diz com todas as letras no Art. 51 da Seção III que “compete privativamente à Câmara dos Deputados (parágrafo I) autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-presidente da República e os Ministros de Estado”. Sendo uma decisão privativa, não pode ser rejeitada, ignorada ou arquivada pelo Senado.

Se li a mesma Constituição que o STF, com os artigos apresentados acima, parece muito estranho o voto da maioria dos ilustres ministros da suprema corte em relação às responsabilidades da Câmara e do Senado no processo de impeachment. Eles devem estar certos. Mas, fica uma dúvida: quem avalia o julgamento do STF?


¹ Esta versão corrige o texto anterior com referência feita, incorretamente, a poderes concedidos ao Presidente do Senado, como foi advertido pelo comentário do leitor Gerbasi. A correção não altera, contudo, a essência do argumento.