Luciano Oliveira
Professor Aposentado da UFPE

 

Como diria Roberto Carlos, “o show já terminou”. O show, óbvio, foi a Copa do Mundo, que terminou para nós brasileiros no dia memorável daqueles 7 gols que recebemos dos “alemães e seus canhões” (Chico Buarque). Foi uma tragédia? Foi um vexame? Oh! Oh! Para mim, pessoalmente, foi sofrimento no segundo gol, desespero no terceiro, tragédia no quarto, passou a vexame no quinto, mas, no sétimo, já tinha virado piada. Terminei às gargalhadas. Mas, enfim, a vida segue e a Copa terminou no dia 13 de julho – com a vitória, merecida, dos teutônicos. No dia seguinte, 14 de julho, comemorou-se na França a Revolução que declarou os Direitos do Homem e do Cidadão, e, no Brasil, completou-se um ano do desaparecimento de Amarildo, o pedreiro que tinha nome de bicampeão mundial de futebol. É aqui onde entra o segundo verso da canção do Rei sobre o fim do show: “vamos voltar à realidade”. Vamos.

 

E a realidade brasileira é renitente. Justamente no dia em que comecei a escrever este artigo*, tomo conhecimento, pela televisão, de mais uma ignomínia praticada pela polícia do Rio de Janeiro: os policiais Fábio Magalhães e Vinícius Lima levaram, no dia 11 de junho, três adolescentes “suspeitos” para o Alto do Sumaré, lugar habitual de execuções e “desova”, e de lá voltaram com a caçamba da viatura vazia. Um mês depois, o corpo de um dos jovens (mais um “presunto”) foi encontrado; outro, dado por morto pelos próprios policiais, sobreviveu e está hospitalizado; e um terceiro, inicialmente liberado pelos assassinos, está desde então desaparecido. Detalhe incrível: tudo (excetuando-se cerca de 10 minutos durante os quais a câmera permaneceu desligada – quando provavelmente aconteceu o que todos sabemos que aconteceu) foi filmado pela viatura dos próprios policiais e passou no Fantástico da Rede Globo. Todo o Brasil viu. Viu!

 

Como esse terceiro garoto que ninguém encontra, Amarildo de Souza é mais um “desaparecido” nas mãos da polícia brasileira – em plena democracia à brasileira! Diferentemente daqueles sumidos durante os anos mais duros da ditadura militar, esses outros são de todos os tempos e regimes, formam incontável legião e são obscuros. Deles, geralmente nem o nome fica. Desse, ficou: Amarildo de Souza, 47 anos, mulato, morador da Rocinha, ajudante de pedreiro. Um típico trabalhador braçal brasileiro. No dia 14 de julho do ano passado, foi preso e levado a uma Unidade de Polícia dita Pacificadora – Ufa!… Suspeito de esconder armas do tráfico de drogas, foi interrogado com os métodos reservados para a classe social a que pertencia: levou socos e pontapés, e passou por sessões de asfixia com saco plástico. O “interrogatório” de Amarildo, como o de Vladimir Herzog há quase 40 anos, desandou, e o ajudante de pedreiro morreu. Mais um “acidente de trabalho”, e os torturadores deram sumiço no seu corpo. A técnica do saco plástico tornou-se familiar do grande público brasileiro através do filme Tropa de Elite, de 2007. Para além do enorme sucesso de bilheteria que foi, o filme tornou-se, a meu ver, um fenômeno cultural com rebatimentos políticos de grande significação no Brasil, por causa da adesão entusiasmada do público aos métodos do Capitão Nascimento, seu herói, que incluíam a tortura e o abate de marginais ou simples suspeitos com um descaso absoluto por qualquer vestígio de um estado de direito que supostamente somos. José Padilha, diretor do filme, teria se assustado. Eu, nem tanto.

 

Essas considerações, entremeando episódios da época do regime dos generais e eventos contemporâneos, retomam uma reflexão que venho fazendo faz tempo sobre o problema dos direitos humanos no Brasil. Melhor seria, para nosso conforto ideológico e moral, que nos deparássemos com a simples oposição de um estado-torturador contra uma sociedade civil de “torturáveis”, como nos tempos da ditadura. Infelizmente não é assim. A questão da tortura no Brasil – enquanto questão, isto é, enquanto problema que a sociedade se coloca – apesar de existir desde sempre, foi levantada apenas no curso do regime militar, durante o qual a classe média brasileira perdeu suas tradicionais imunidades e caiu momentaneamente na categoria daquilo que o escritor inglês Graham Greene – no livro Nosso Homem em Havana – chamou de “classes torturáveis”. Só então a intelligentsia brasileira descobriu o problema da violência policial no país. Mas o “pau-de-arara”, o método de tortura mais emblemático dos anos de chumbo, vem de muito longe. É interessante observar que o torturador mais famoso dos anos de chumbo, aquele que se tornou símbolo de todos os seus horrores, foi um civil, o delegado Sérgio Fleury, da polícia de São Paulo – onde já exercia seu abominável métier antes de se integrar aos porões do regime. A violência estatal brasileira é algo que pertence à nossa história de “longa duração”. Ela antecede, convive e continua depois da ditadura, como se o reinado sombrio dos DOI-CODI tivesse sido, para usar uma expressão da moda, um ponto fora da curva. Acho que os facínoras que torturaram, mataram e “desapareceram” Amarildo não aprenderam seu odioso metier com os que fizeram a mesma coisa com Rubens Paiva.

 

Foi essa geração de esquerdistas torturados que descobriu a questão dos direitos humanos no Brasil e a transformou numa palavra de ordem. Com o fim da ditadura, experimentamos um transbordante otimismo. Os primeiros anos da década de 1980 assistiram a uma verdadeira proliferação de grupos de defesa desses direitos, desta feita, entretanto, voltados para a classe dos “torturáveis”. Considerando-se o prestígio acumulado na luta contra o regime militar, seria de se esperar idêntica fortuna daí para a frente. Mas foi o contrário que aconteceu. A tortura e o abate sumário de delinquentes – reais ou não – do meio popular continuaram (como dantes no quartel de Abrantes) atravessando galhardamente nossa história, independentemente do regime político vigente. Vamos a alguns números.

 

No começo dos anos 1990 o jornalista Caco Barcellos publicou o livro Rota 66, com um subtítulo bem apropriado: “A História da Polícia que Mata”. Ele se referia à ROTA (Rondas Ostensivas “Tobias de Aguiar”), esquadrão da polícia paulista que nessa época executava bandidos ou simples suspeitos praticamente às escâncaras. Segundo seus cálculos, a Polícia Militar de São Paulo, entre abril de 1970 e meados de 1992, foi responsável pela morte de mais de 4.000 pessoas. A corriqueira afirmação de que as mortes decorriam de tiros trocados entre as duas partes revelava-se uma fantasia a partir da constatação de que não há registro na história dos confrontos armados com uma desproporção tão grande entre as baixas de cada um dos lados: 97 civis mortos para cada policial morto. Dando um salto de vinte anos, Michel Misse, pesquisador do Rio de Janeiro, acaba de lançar um livro que parece repercutir o subtítulo do livro de Caco Barcellos: Quando a Polícia Mata. O subtítulo explica: “Homicídios por ‘autos de resistência’ no Rio de Janeiro (2001-2011)”. São mais de dez mil mortos. Comparando (sumariamente, reconheço) os dados de um e de outro, verifica-se uma progressão assustadora: no primeiro caso, o estudo abrange mais de vinte anos; no segundo, dez. Lá, os mortos são mais de quatro mil; aqui, mais de dez. Ou seja: enquanto o tempo foi dividido por dois, os mortos foram multiplicados igualmente por dois! Dir-se-ia que a violência letal da policia piorou. Mas o danado é que não foi só ela…

 

Por uma infeliz coincidência, a partir dos anos 1980 – justamente quando o problema dos direitos humanos emergiu entre nós – a criminalidade urbana violenta, aquela que faz as pessoas terem medo, cresceu assustadoramente no Brasil. Foi quando a defesa desses direitos começou a ser hostilizada. Os militantes que saíam em defesa dos que eram torturados e mortos pela polícia costumavam ser interpelados com uma pergunta capciosa e incômoda: “E os direitos humanos das vítimas?” A pergunta continua sendo tão insistentemente ouvida que não é exagerado dizer que estamos em presença de uma verdadeira campanha, renovada cotidianamente pelo rádio e pela televisão nos assim chamados “programas policiais”, de grande prestígio e audiência entre o público.

 

Daí o grande complicador com que se defrontam os militantes dos direitos humanos no Brasil: a oposição estado-torturador versus sociedade civil-torturada, tão clara nos anos 1970, foi substituída por uma relação bem mais complexa e ambígua, pois ela varia da revolta explícita contra massacres como o de Vigário Geral, em 1993 (21 mortos), ao apoio tácito à chacina do Carandiru, em 1992 (111 mortos). Apanhada no fogo cruzado entre a violência da polícia e dos marginais, a população tanto é capaz de protestar quando as vítimas são honestos pais de família, quanto de aplaudir quando os mortos são bandidos – reais ou supostos. É verdade que opera aqui uma razão esquizofrênica: as pessoas comuns, amedrontadas com a criminalidade violenta, são capazes de aceitar qualquer tipo de solução para o problema. Mas, é bom lembrar, desde que a repressão à margem da lei não as atinja! No fundo, todo mundo, mesmo quem fala asneiras contra os direitos humanos, é seu potencial defensor, pois quando a repressão se abate sobre si a primeira coisa que invocam é o respeito aos seus direitos. Mesmo os que violam direitos humanos da maneira mais revoltante. A propósito desta tese, gosto de lembrar o caso de “Rambo”, o policial que perpetrou em 1997 horrores em Diadema, São Paulo. Lembram? Quando preso, porque não foi possível esconder a enormidade do seu crime divulgado dias seguidos pela televisão, passou a palavra ao advogado, o qual, incontinente, “comunicou que seu cliente apelaria para o direito de permanecer calado”. Bravo! Mas os anos passam, as pessoas esquecem, e as violações monotonamente se repetem.

 

Vivemos no Brasil, atualmente (a partir da instalação pelo governo federal da Comissão Nacional da Verdade), uma revisita dolorosa – mas necessária – aos acontecimentos dos “anos de chumbo”. No contexto, uma pergunta tem sido colocada com frequência: o que o caso Amarildo pode nos ensinar sobre aqueles anos? Formulada de forma inversa, o que as brutais violações de direitos humanos daqueles anos têm a ver com o caso Amarildo? Uma resposta que tem sido recorrentemente dada é a de que têm tudo a ver. Recentemente (03/04/14), Marcelo Rubens Paiva, filho do “desaparecido” Rubens Paiva, em entrevista ao jornal El País, defrontou-se com a pergunta: “A morte, ou desaparecimento de pessoas comuns como Amarildo é uma das heranças da ditadura?” Ele não titubeou na resposta: “É”. E disse mais: “A polícia aqui não é um profissional treinado para combater a violência urbana. É um guerreador, um soldado. Isso é uma evidente herança da ditadura, bastante difícil de romper”. A imagem do guerreador é, sem dúvida, apropriada; e que é bastante difícil de romper esse ethos guerreiro na polícia, não resta dúvida. Minhas dúvidas dirigem-se à afirmação de que tudo isso é uma “evidente herança da ditadura”.

 

Para mim é hora de assumir, talvez com um grão de sal e outro de ousadia, a hipótese de que essa evidência repousa mais na retórica do que na análise cuidadosa dos fatos; de que o caso Amarildo praticamente nada nos ensina sobre o regime militar, e que este e sua ferocidade, na via inversa, não servem para iluminar o sombrio evento na Rocinha. Minha hipótese, em resumo, é a de que as torturas, as execuções e os desaparecimentos perpetrados pelo regime dos generais não antecipam o que aconteceu na favela da Rocinha em 14 de julho do ano da graça de 2013 – porque o que aí aconteceu acontecia antes e durante, e continuou acontecendo depois que o general Figueiredo saiu pela porta dos fundos do Palácio do Planalto em 1985.

 

As duas histórias são diversas: no contexto, nos atores, nas motivações. Que em algum momento se cruzaram, sim. Há vários exemplos disso. Um deles: em retribuição aos serviços que o delegado Fleury lhe prestava, o regime militar editou em 1973 uma lei permitindo que réus primários e com bons antecedentes (por mais surrealista que pareça, era o caso dele!) respondessem a processos penais em liberdade até o julgamento final. Isso o livrou da cadeia, para onde, pela lei antiga, seria fatalmente despachado por ter sido enviado a júri num processo movido pelo bravo Hélio Bicudo contra o “esquadrão da morte” paulista – que, como se sabe, dedicava-se a abater criminosos comuns. A lei ficou conhecida como “Lei Fleury”. Para alegria dos advogados, continua em vigor. O exemplo, óbvio, não é único. Chega mesmo a ser lógico que tenha havido outros cruzamentos promíscuos entre a repressão policial comum e a repressão política promovida pelo regime. Afinal, as duas coisas eram contemporâneas e conviviam numa boa. É perfeitamente defensável a hipótese de que a segunda tenha estimulado e reforçado a primeira. Numa quadra histórica em que a classe média (e mesmo alta) brasileira tinha caído no rol dos “torturáveis”, certamente os responsáveis pela repressão policial “normal” sentiram-se mais à vontade para dar vazão à opinião tão nossa conhecida de que “bandido bom é bandido morto”.

 

Exemplos. Em 8 de dezembro de 1970, num programa de televisão, o próprio governador de São Paulo, Abreu Sodré – um entusiasta da repressão – desancou Hélio Bicudo, à época empenhado em combater o “esquadrão da morte” paulista, negando pura e simplesmente a sua existência: “Isso é sensacionalismo: o que existe é como existe em qualquer parte do mundo: a polícia precisa se defender em termos de não morrer para que nós não morramos nas mãos dos marginais. […] Então quando vão… ou quando vai um grupo de policiais, quer da militar ou da civil, para prender um homem perigoso como esse, é evidente que é um tiroteio ferrado em cima da… do criminoso. E daí aparecer com muitos tiros. Então, aí inventam que fazem aquilo em termos de presunto, essas coisas” (cf. Meu Depoimento sobre o Esquadrão da Morte, de Hélio Bicudo). Depois de Abreu Sodré, veio outro governador-delegado do regime, Laudo Natel, que teve como secretário de segurança o espavorido coronel Erasmo Dias – que tinha participado das operações de combate à insurreição guerrilheira de Carlos Lamarca no Vale da Ribeira. Como não deduzir que sob tais autoridades a polícia tenha perdido (se é que teve algum dia) qualquer pudor em prender, torturar e matar os “desclassificados” de sempre?

 

Malgrado isso, ponho-me na contramão de certo senso comum que se tornou quase voz corrente: as violações de direitos humanos no Brasil, perpetradas ainda hoje por nossas forças policiais, fariam parte da “herança maldita” legada pelo regime militar. Claro que sei que essa é uma daquelas teses de difícil validação – para falar no jargão positivista. Mas a tese contrária, a da “herança maldita”, também não é fácil de ser validada. Ela beneficia-se de uma adesão quase espontânea, facilitada por nossa aversão ao regime dos generais. Ela é, além disso, reconfortante. Afinal, se a violência policial deita raízes no regime de 1964, a democracia brasileira, por que tanto lutamos, não é responsável por ela. Francamente, não acredito nisso. Vamos a alguns fatos incômodos.

 

Normalmente nos referimos ao regime militar como perfazendo um ciclo de vinte anos: 1964 – 1984. As balizas, no geral, estão corretas. Além disso, um número redondo como esse – 20 anos! – possui um charme retórico fácil de ser brandido e mobilizado. Mas a verdade é que dentro dessas balizas não encontramos um monobloco. Entre abril de 1964 e dezembro de 1968, por exemplo, quando a edição do AI-5 destravou pudores e tirou a focinheira dos “revolucionários sinceros, mas radicais” – como diria Geisel –, o Brasil viveu uma espécie de “ditadura envergonhada” – citando Elio Gaspari. A partir de dezembro de 1968, com o AI-5, aí sim, instalou-se o reinado dos “porões”. Mas, a meu ver ele durou “apenas” (ênfase nas aspas) até dezembro de 1976, quando ocorreu a famosa “chacina da Lapa”, em São Paulo, onde foram trucidados militantes do PC do B. Foi a última manifestação de ferocidade desse tipo de um regime, àquela altura, caminhando para o fim. Quando o general Figueiredo assumiu a presidência, em janeiro de 1978, o AI-5 já tinha sido revogado.

 

Quando, de minha parte, analiso as violações de direitos humanos da ditadura militar brasileira, costumo me restringir a esses dois marcos: abril de 1964 (pois, apesar de “envergonhada”, a ditadura torturou e matou, ainda que esporadicamente, desde o seu início) de um lado, dezembro de 1976, de outro. São doze anos. Um tempo longo. Longuíssimo, para quem sofreu. Tudo isso é verdade. Mas é também verdade que, depois disso, não há notícia, no Brasil, de torturas, assassinatos ou desaparecimentos promovidos pelo regime brasileiro por razões políticas. Costuma-se, aqui, introduzir um bemol em forma de alguns questionamentos: e a bomba na OAB que matou dona Lyda Monteiro? E as bombas em bancas de jornal que vendiam publicações de esquerda? E o atentado terrorista frustrado (às vezes existe Providência Divina…) do Riocentro? Tudo isso ocorreu entre 1980 e 1981 e foi iniciativa da “rapaziada” da chamada “Operação Cristal”, um grupo de assassinos empenhados em sabotar a “abertura” do presidente. Na minha leitura, são atos criminosos que, mesmo tendo sido acobertados pelo regime, já não eram promovidos pelo regime, como acontecia na época do reinado tenebroso dos Doi-Codi. Geisel, primeiro, acuou a “rapaziada”, e Figueiredo, o estabanado, isolou-os depois, em troca, é verdade, da sua impunidade. Mas não houve mais condecorações, como na época de Fleury… Bem, o resto da história é conhecido. E é uma verdade histórica que desde o inesquecível ano de 1984 – o das “Diretas, Já!” e da eleição de Tancredo Neves para a presidência da república – vivemos, sem solução de continuidade, praticamente trinta anos de democracia. Convenhamos que é muito mais tempo. Já não seria tempo, portanto, se a tese da “herança maldita” fosse correta, de termos dela nos livrado?

Minha tese, sem dúvida, minimiza a possível influência que a impunidade dos torturadores do regime teve sobre a sequência da história. Estou disposto, lógico, a matizar meu pensamento. Mas, ainda aqui, enfatizo o que já disse. A prática de torturar e de executar sumariamente (e eventualmente fazer desaparecer) delinquentes, no Brasil, antecede de muito o regime militar. Para não ir muito longe, retomemos a história do famoso “Esquadrão da Morte”. Tal abominação remonta aos anos 50, na aprazível cidade do Rio de Janeiro da Bossa Nova, quando, na Secretaria de Segurança Pública do então Distrito Federal (sendo presidente da república o sorridente JK), se criou um grupo conhecido como “homens de ouro” – uma unidade da policia encarregada de limpar a cidade dos seus bandidos. Isso foi nos anos 50! E isso não é uma tese minha, é simplesmente fato: essas práticas antecedem, continuam e persistem depois do regime.

A questão que resta é se, e em que medida, a impunidade dos torturadores do regime alimentou, incrementou, reforçou etc. (não sei exatamente que verbo usar) essas práticas. Aqui entram de novo as hipóteses que se contrapõem. Ambas são hipóteses, lembro, porque nenhuma das duas está provada. Aliás, nem sei como seria possível rigorosamente provar qualquer das duas. Mas, ainda aqui, acho que a minha é mais provável… Ou seja: continuo sustentando, por achá-la mais defensável, a tese de que as violações de direitos humanos durante o regime militar seriam, como já disse, um “ponto fora da curva”, porque suas práticas mais odiosas já eram amplamente usadas contra bandidos comuns ou meros suspeitos das classes populares, o “ponto fora” residindo no fato de que a classe média, inesperadamente, teria sentido na própria pele o que era corriqueiro em relação aos seus concidadãos menos afortunados pelo dinheiro, pela posição, pelas relações sociais etc. Com o fim do regime, tais práticas simplesmente refluíram para onde nunca deixaram de estar… Por quê?

Aqui entra a hipótese adjacente de que a persistência dessas práticas de violações de direitos humanos no Brasil resulta da infeliz confluência de uma cultura, ou de um imaginário social, ou de uma mentalidade etc. escravocrata (dentro da qual os “inferiores” são naturalmente “torturáveis”) com o fenômeno da “criminalidade urbana violenta” que já se anunciava há algum tempo e explodiu nos anos 80, justamente quando o país se redemocratizava. É importante recuperar isso, porque no bojo do processo de redemocratização houve iniciativas de romper a mentalidade de gente como Abreu Sodré e o coronel Erasmo Dias vigente na política de segurança pública – que, como se sabe, é de competência dos estados. É interessante, e didático, relembrar o que ocorreu justamente em São Paulo, na sequência da primeira eleição direta para governador desde o golpe, a de 1982.

Como se sabe, com a “abertura” promovida e levada a cabo aos trancos e barrancos pelo presidente Figueiredo, os governadores dos estados voltaram a ser eleitos pelo voto direto. Em São Paulo, o eleito foi Franco Montoro, um liberal moderado, mas histórico combatente pelo retorno do país ao estado de direito. Nessa conjuntura, o novo governador anunciou algumas medidas que sinalizavam uma ruptura com a tradição de violação sistemática dos direitos humanos pelos aparelhos de repressão com a tolerância dos governos e, por que não dizer, com uma mal disfarçada aceitação da própria sociedade. Para atacar o problema da violência nas prisões, Montoro tomou uma atitude corajosa: nomeou o advogado José Carlos Dias para ocupar a Secretaria de Justiça. Antigo defensor de prisioneiros políticos, Dias anunciou abertamente desde sua investidura que iria aplicar uma política de direitos humanos na sua gestão. Os ataques não se fizeram esperar. Eles vinham da imprensa sensacionalista, dos “programas policiais”, mas também de membros do seu próprio partido. A sua política era acusada de defender os criminosos e incentivar rebeliões nas prisões. À medida que o número de crimes na cidade subia nas estatísticas, o grito “Segurança Já!” tornava-se o slogan preferido do principal adversário de Montoro, o indefectível Paulo Maluf. Aos poucos, a posição de Dias tornou-se insustentável. Nessas circunstâncias, o mais surpreendente é que tenha conseguido manter-se no cargo por mais de três anos. Em junho de 1986, entretanto, com a proximidade das novas eleições, sua hora soou. O candidato do próprio Montoro à sucessão estadual, Orestes Quércia, começou a falar a mesma linguagem dos adversários do governador. Nesse momento, Dias renunciou. Ou, o que é mais provável, “foi renunciado”… A reação do eleitorado parece ter sido positiva: Quércia ganhou as eleições. Depois dele, veio Fleury – que era o governador na época do “massacre do Carandiru”.

 

E no Rio de Janeiro, onde padeceram Amarildo e agora esses garotos no Alto do Sumaré? Também em 1982 foi eleito um dos arqui-inimigos do regime: Leonel Brizola. Todos ainda se lembram da gritaria que houve quando o novo governador anunciou que a sua polícia não iria mais adotar a política do “pé na porta” no barraco de favelados para prender bandidos. (A gritaria, obviamente, não veio dos favelados…) Depois de Brizola veio Marcello Alencar. Ele, que nos “anos de chumbo” tinha sido um dos corajosos defensores de presos políticos, nomeou para seu secretário de segurança outro coronel da estirpe de Erasmo Dias – no caso, o coronel Nilton Cerqueira, que ocupou o cargo entre 1995 e 1998. Cerqueira foi o comandante da operação que executou Carlos Lamarca no sertão da Bahia em 1971. Em 1995, quase vinte e cinco anos depois, foi chamado por um antigo defensor dos direitos humanos para se ocupar da política de segurança do estado de que era governador. Condizente com sua vocação guerreira, Cerqueira instituiu na corporação policial uma gratificação para agentes que tivessem praticado “atos de bravura”. O resultado é conhecido de todos: tais atos, na maioria das vezes, referiam-se a ações que resultavam na morte de supostos criminosos. A coisa ficou tão escancarada que os aumentos salariais ficaram conhecidos como “gratificação faroeste”. Se, de fato, a passagem do coronel Cerqueira na secretaria de segurança do Rio de Janeiro foi parte da “herança maldita”, convenhamos que foi um legado aceito de bom grado por um governador civil eleito pelo povo. Francamente, que culpa disso têm os generais que em dezembro de 1968 tiraram a focinheira dos seus torturadores? O que estou querendo dizer, em resumo, é que a sociedade brasileira, seus políticos médios, digamos assim, e seu povo (seja lá o que isso signifique) é conivente com esses horrores. Aceita-os, chega a deliciar-se com eles quando assiste a programas policiais perversos como os de José Luiz Datena, Maurício Rezende et caterva – desde que, óbvio, o Capitão Nascimento do BOPE não dê um “baculejo” no seu filho…

 

Mas não quero concluir de modo pessimista. Por um dever de justiça – além do dever da honestidade intelectual –, devo lembrar que os tempos, pelos dias que correm, já não são os mesmos. Os que mataram Amarildo o ano passado estão presos, à disposição da justiça. Os atuais assassinos do Alto do Sumaré, também. O secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, pela televisão, qualificou-os de “bandidos ao quadrado”. Uma frase dessas parece impensável na boca de um Erasmo Dias ou de um Nilton Cerqueira. Será que não há, apesar de aberrações como esses dois casos, significativas diferenças entre as UPPs e os “homens de ouro” que matavam delinqüentes como Mineirinho e tantos e tantos outros nos anos 50 e 60, e eram publicamente enaltecidos por seus superiores? Tudo isso na total indiferença do Judiciário e do Ministério Público?

 

Abro um parêntese, em atenção aos mais jovens, para dizer uma palavra sobre Mineirinho. (Afinal de contas, como se diz, “o diabo sabe de muitas coisas não por ser diabo, mas por ser velho”.) Quem foi Mineirinho? Hoje em dia é fácil. Basta ir ao Google e digitar: “Mineirinho e Clarice Lispector”. Sim, Clarice Lispector! Mineirinho foi, no começo dos anos 60 do século passado, um bandido carioca que virou o que, de quando em vez, a polícia elevava à categoria de “inimigo público n° 1” – e, portanto, tornava-se alguém destinado ao abate. Foi abatido, em 1962 – repito: em 1962, dois anos antes de 1964 –, com treze tiros. Na ocasião, Clarice Lispector escreveu uma crônica impactante, da qual realço o seguinte trecho, que considero uma pequena obra-prima:

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina. […] Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela.

O que estou querendo dizer com isso é que, a meu ver, já havia ferocidade bastante na sociedade brasileira dos dourados anos 50 e amenos primeiros anos 60 para, com ou sem ditadura militar, desembocar nos crimes de máquinas mortíferas estatais como a ROTA e o BOPE, semiestatais como os “esquadrões da morte”, e civis como os justiceiros e os linchadores. Se a ditadura reforçou essa ferocidade, trata-se, evidentemente, de uma hipótese razoável. Mas se a ditadura acabou há trinta anos, por que essa ferocidade lhe sobreviveu? A minha resposta é simples: porque lhe antecedeu! Amarildo, aquele que tinha nome de bicampeão mundial de futebol, tinha 47 anos quando foi torturado e morto pela polícia encarregada de pacificar a favela onde morava. Viveu, portanto, a maior parte da sua vida relativamente breve sob um regime democrático. É à democracia brasileira – uma democracia à brasileira – que devemos dirigir nossas cobranças.

 

*Este artigo começou a ser matutado quando, no início do ano, recebi um convite de Túlio Barreto e Celma Tavares, da Fundação Joaquim Nabuco, para escrever um texto sobre o caso Amarildo e o que ele podia nos ensinar sobre o regime militar. O convite aflorou divergências entre nós três, geradoras de uma discussão fraterna, honesta e produtiva. Para mim, a controvérsia provou que nem toda divergência tem de derrapar na tática da trincheira: um atira de lá, outro atira de cá. Por sugestão minha, desistimos do artigo naquele momento. Posteriormente, convidado pelo professor Bruno Galindo para participar de um debate na Faculdade de Direito do Recife sobre os 50 anos do golpe militar, retomei as reflexões que tinha deixado de lado. Mas o artigo continuou sem ser escrito. Agora, finalmente, pus a mão na massa. Sou muito grato aos três pela oportunidade de pensar nessas coisas e, finalmente, pô-las (espero) em boa e devida forma.