João Rego

Aqueles capturados pelos significantes do líder operário depositaram nele todas suas certezas e esperanças. Finalmente, a justiça se faria para todos os despossuídos da nação: milhares de sem-terra; nordestinos cronicamente famélicos, fadados a vagarem, através da História, marcando sua existência severina pelas secas, sob o tacão de arcaicas formas de dominação política.  Os operários – estes um pouco mais organizados – com as famosas greves do ABC, liderados por Lula, construíram um capítulo na recente história política, dando um importante chute final na porta envelhecida da Ditadura Militar de 1964, forçando, em boa medida, a transição para a democracia — ainda que lenta e gradual.

Surge, como uma estrela que aponta para um novo horizonte libertário da História, o PT, partido que herda, por gravidade, a adesão de um conjunto de forças de esquerda que tinha sofrido o exílio, a tortura e a morte de muitos de seus militantes. São intelectuais e artistas de peso e densidade, todos atraídos pelo canto misterioso e sedutor da sereia, materializado na trajetória de vida de Lula, na sua coragem em liderar as greves contra um Estado autoritário e repressor e, principalmente, pela a sua privilegiada inteligência em estabelecer negociações e articulações políticas, potencializada pela invejável capacidade de comunicação do seu discurso. Até a barba castrista ajudava a compor o personagem que relembrava os ares da Revolução Cubana de 1958, fluxo histórico que incendiou corações e mentes em toda a América Latina.

Lula assumir a presidência foi um momento de devaneio e êxtase para muitos que passaram   toda a sua vida militando, pensando e estudando soluções para um Brasil socialmente mais justo. Um Brasil liberto das garras dominadoras do imperialismo americano, agente do mal que urdiu o Golpe de 64.

Era a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar (Geraldo Vandré)

Mas a realidade histórica tem seus mistérios também. Com a desmantelamento da União Soviética, durante o governo de Mikhail Gorbachev, a esquerda mundial, principalmente a menos desavisada da insuficiência das suas ideologias, vê atônita a humanidade viver um novo período marxiano – tudo que era sólido desmanchou-se no ar. A queda do Muro de Berlim seria o símbolo do fracasso da Revolução Russa de 1917, e de sua tentativa de construir uma sociedade socialista na terra. O modo de produção capitalista, por fim, e agora estava bem claro, era único e hegemônico – como sempre foi.

No Brasil, na era Lula, tudo era crença e fé de que a América latina seria o último reduto de um novo socialismo – uma farsa do clássico e danoso populismo, tão caro em encontrar terreno fértil por essas bandas. Se a História não colaborava, às favas com ela. Tínhamos nossos líderes, com seus discursos inflamando os corações dos incautos – intelectuais, artistas e operários — e de um povo sofrido e sem esperança.

O primeiro alarme veio com o mensalão, com um valioso anti-herói — a história também se constrói com eles — Roberto Jefferson, denunciando o esquema de compra de votos por parte dos eminentes líderes do PT, José Dirceu e outros. Todos, com disciplina militar, blindaram o general Lula e foram para a cadeia — valia o sacrifício, afinal era um projeto de perpetuação no poder, e a Justiça contra os ricos e poderosos era tímida e limitada, diante dos recursos e piruetas comandadas por caros e inescrupulosos advogados.

E a militância protestando, arranjando teorias malucas para conservar seus castelos de cartas, os quais fragilmente sustentavam o determinismo histórico da função salvífica do PT em favor das classes oprimidas e alijadas socialmente. Havia as políticas sociais, bolsa família e outras, que estavam aí para demonstrar que estavam certos em seu percurso de poder transformador da realidade social.

Muitos se emocionaram com José Genoíno, em cadeira de rodas, qual um Trotsky tupiniquim e inválido, ao entrar na cadeia com punhos cerrados, como um signo de luta, e de que ia preso por combater pelos ideais do Partido — neste gesto, os fatos revelavam que a corrupção já era explicitamente parte deste ideal.

A luta (ilusão) continua….

Lula consegue eleger Dilma Rousseff, um poste, como se dizia. Dilma conseguiu juntar, num gesto fortuito da natureza humana, três substâncias perigosíssimas para um governante: a incompetência, a arrogância e a incapacidade de articulação política, fundamental em qualquer democracia.

Estava feito o estrago. O desgoverno, jogando a economia em um abismo profundo, fecunda o terreno do impeachment. Enquanto isso, na Sala de Justiça, uma nova geração de juízes e procuradores começam a investigar, sem nenhuma pretensão inicial, um fluxo de propina na Petrobrás. Não sabiam que ali estavam puxando um fio sem fim, longo e velho que só a fome: a cultura das relações promíscuas entre o grande capital e o Estado. Não, não fora originalmente urdido pelo PT, é coisa de séculos, traço dominante do DNA da história política da nação, mas com o PT transformou-se em uma política de governo, estratégia suprema para a reprodução ad infinitum no poder.

E o impeachment rolando, enquanto que a militância – os incautos zumbis ideológicos – ia às ruas para ouvir Lula e seus discursos acalentadores, única ferramenta de defesa do mito dos pés de barro, rachados que só a terra seca do seu sertão de origem.

A nação se divide, famílias suspendem os almoços de domingo, amizades de décadas se desfazem, pois, a crença e a fé da militância são cegas, cheias de certezas, impermeáveis aos fatos. A paranoia se instala, ajudando-os a ver, de forma delirante, uma justiça seletiva, que só tem a intenção de atingir Lula e o PT. Alguns levam seu delírio ao extremo, ressuscitando fantasmas de 1964, fazendo alusões aos interesses americanos por trás do impeachment. Quanta energia gasta em vão! Quanto ódio e rancor, expressos de forma estúpida nas redes sociais!

Assume Temer, dando, desde o início, um sentido no caos, convocando o que tem de melhor para colocar a economia de volta aos trilhos do crescimento. Dilma cai e promete uma oposição implacável contra o governo Temer. Lula, calado e angustiado, sabendo que sua era acabou, espera a hora de ir para o cadafalso da Justiça.

Na semana passada, a força tarefa da Lava Jato ofereceu denúncia contra Lula, acusando-o de ter sido o mestre, o general do exército da corrupção durante todo o período em que esteve no poder, prolongando-se na era Dilma. Apresentaram a denúncia de forma didática e espetacular. Tinha que ser espetacular, pois era a primeira vez na História que se desmascarava um esquema de corrupção desse porte, liderado por um líder como Lula.

Penso nos militantes e simpatizantes, ainda capturados nos esgarçados significantes do PT, pessoas de boa vontade que, de fato, inquietam-se com as radicais disparidades sociais, sentem em seu íntimo o fogo e o desejo de justiça. Todos traídos pela propinocracia que o PT instalou com seus votos — inclusive o meu, no primeiro governo Lula.

O último refúgio para acalmarem suas decepções e angústias, antes de mergulharem no vazio das incertezas, é se convencerem de que a Lava Jato vai parar no PT, e daí começam a vociferar contra cada passo que o Dallagnol ou Sérgio Moro e sua equipe dão.

Mal sabem eles que da angústia e do medo de Lula, de ser execrado, processado e até preso, transformando-se em um cadáver político, muitos compartilham, e estão espalhados por todo o espectro político-partidário, em todas as esferas de poder e em todas as latitudes geográficas.

THE UNION, Brasília.

20 de setembro de 2016.

João Rego é membro do Movimento Ética e Democracia

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